O título do livro diz quase tudo. “O delator: A história de J. Hawilla, o corruptor devorado pela corrupção no futebol”, conta a história do jornalista que se transformou no maior empresário do marketing esportivo do Brasil, e, também, do maior escândalo de corrupção do futebol mundial, conhecido como Fifagate.
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Os autores Allan de Abreu (direita) e Carlos Petrocilo. |
Os autores,
Allan de Abreu e Carlos Petrocilo, mergulharam fundo em uma
pesquisa para desvendar a ascensão, queda e destruição do império criado por J.
Hawilla.
Pela sinopse
apresentada pela Editora Record, já temos a dimensão deste trabalho primoroso
de investigação jornalística.
Sinopse (da editora)
Os labirintos de uma história essencial para a compreensão dos avanços e
mazelas do nosso futebol.
José Hawilla, o maior empresário do
marketing esportivo do Brasil, dono de uma fortuna estimada em R$ 1,6 bilhão,
foi preso em 2013, em Miami, por agentes do FBI. Era o início de uma saga
surpreendente: para escapar de uma condenação judicial quase certa, o
brasileiro decidiu tornar-se um delator e, mais do que isso, um espião a
serviço do governo norte-americano. A conversão de corruptor em delator seria a
segunda grande metamorfose na vida de J. Hawilla. Por décadas, o ex-radialista
nascido no interior paulista e convertido do dia para a noite em poderoso
empresário lubrificou uma engrenagem de propinas com sofisticados esquemas de
corrupção que desviaram muitos milhões para os bolsos de cartolas mundo afora,
sem contar o dele mesmo. Flagrado, implodiu seus próprios métodos criminosos.
Ao longo de dois anos, por meio de dezenas de entrevistas e pesquisa em
milhares de páginas de documentos, os repórteres Allan de Abreu e Carlos
Petrocilo investigaram a fundo a vida do empresário.
O livro causou tanta repercussão que
vai virar até série de televisão e, talvez, em filme longa-metragem. Os
direitos de O Delator foram
adquiridos pela Paris Entretenimento e em breve deverá estrear.
Hawilla ficou pouco tempo preso, nos
Estados Unidos, porque fez um acordo com a justiça norte-americana. Além de
confessar crimes de formação de quadrilha, obstrução de Justiça, lavagem de
dinheiro e fraude bancária de milhões de dólares em contratos de marketing,
teve de pagar 151 milhões de dólares de multa.
Hawilla começou a carreira de
jornalista bem jovem. Era repórter, em rádios do interior paulista, na década
de 1960, até que, em 1968, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou em grandes
emissoras, como a Bandeirantes e a Globo.
Em 1979, quando já trabalhava na TV
Globo, foi demitido da emissora, por participar da greve dos jornalistas. No
ano seguinte, começaria uma verdadeira saga empresarial, utilizando talento, e,
ao mesmo tempo, negócios inescrupulosos. A porta de entrada no mundo dos
negócios foi a criação da Traffic, que começou como simples vendedora de placas
em estádios de futebol até chegar a contratos multimilionários pelos direitos
de transmissões esportivas.
Foi inocentado em duas CPIs, no ano
2.000, após a revelação de um contrato de
160 milhões de reais, entre sua empresa e a CBF, presidida por Ricardo
Teixeira, com a Nike para o fornecimento de material esportivo para a Seleção.
Em 2003, ampliaria ainda mais
seu quase império, quando criou a rede TV TEM, com a compra de quatro afiliadas
da Rede Globo. Dois anos depois, virou dono da rede de jornais Bom Dia, no interior
paulista.
E não parou por aí. Hawilla
também foi proprietário de uma construtora, montou uma luxuosa produtora de
tevê, além de adquirir várias fazendas no interior de São Paulo e Mato Grosso.
Desde 2013, ano de sua prisão
e, até a sua morte, em maio de 2018, a vida de Hawilla foi do céu ao inferno.
Se curou de um câncer na garganta, mas não resistiu a uma doença grave nos
pulmões.
O Delator é um gol
de letra na história da literatura esportiva e, porque não, do jornalismo
investigativo brasileiro.
Pouco antes de seu
lançamento, exatamente um ano atrás, a revista piauí, disponibilizou na íntegra
um dos capítulos da obra.
E só por estes trechos,
percebe-se a qualidade do trabalho apresentado pelos dois autores, Allan de
Abreu e Carlos Petrocilo.
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Trecho do livro O Delator.
Bem ao seu estilo Galvão Bueno, microfone a tiracolo,
caprichava no tom das palavras e no discurso repleto de deferências ao grande
amigo Jotinha.
“Hawilla, você não precisa mais
de dinheiro”, disse o locutor, virando-se para o protagonista da festa com um
sorriso largo.
“Preciso, sim”, disse o
empresário.
Explodiu no ambiente uma sonora
gargalhada.
O empresário inaugurava naquela
tarde de 10 de março de 2009 um moderníssimo centro de treinamento em Porto Feliz,
interior de São Paulo, de números superlativos: 156 mil metros quadrados,
alojamento para 144 jogadores, salas de fisioterapia, musculação, fisiologia,
piscina e refeitório para servir até 800 refeições por dia. Com um investimento
de 18 milhões de reais, o CT seria uma grande incubadora de atletas nas
categorias de base para o Desportivo Brasil, clube-empresa de Hawilla. A ideia
era construir outros dez CTs semelhantes pelo país, para descobrir craques em
potencial.
“Nasce aqui o primeiro clube
essencialmente empresa do Brasil. Acho que vamos ser um modelo, porque o futuro
pede a profissionalização do futebol”, discursou o empresário.
Para tanto, Hawilla havia
recorrido ao então consultor Carlos Alberto Parreira. “O Hawilla sempre foi
muito caprichoso. Quando fazia as coisas, fazia muito bem-feito. Foi um centro
de treinamento muito bem montado”, disse Parreira, técnico da Seleção na
conquista da Copa do Mundo de 1994 e que, no comando da África do Sul no
Mundial de 2010, levou sua equipe por duas semanas para se refugiar em Porto
Feliz.
José Hawilla vivia o apogeu de
sua fortuna e prestígio. Em maio de 2008, a revista inglesa World
Soccer o colocou na 56ª posição dos
homens mais influentes do mundo do futebol. Dois anos depois, a revista Placar fez um ranking dos “poderosos chefões” do futebol
brasileiro. Ele ficou em segundo lugar, atrás apenas do então presidente da
Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira. “Nenhum personagem pode
influenciar em tantos setores do futebol brasileiro como J. Hawilla. Sua
atuação vai dos vestiários aos corredores da Fifa, passando por redações de
meios de comunicação. É um dos poucos que Ricardo Teixeira ouve antes de tomar
decisões”, escreveram os repórteres Ricardo Perrone e Bernardo Itri na Placar.
A Traffic, empresa de Hawilla,
era, de longe, a maior empresa de marketing esportivo do Brasil, com
faturamento médio anual de 100 milhões de reais, mas que por vezes superava os
300 milhões. Com filiais nos Estados Unidos e na Holanda e clientes na Europa,
Ásia e nas três Américas, a empresa vendia os direitos de transmissão de 300
jogos por ano, de torneios como as eliminatórias da Copa do Mundo, Libertadores
e Copa América.
Hawilla era dono do Desportivo
Brasil, do Miami FC, na Flórida, e do Estoril Praia, na época um clube da
segunda divisão do futebol português. Atuava no projeto da nova arena do
Palmeiras e, ao lado do grupo Sonda, sua Traffic era a maior investidora do
futebol brasileiro, administrando um fundo de 40 milhões de reais. Números
estimados, já que a empresa, de capital fechado, nunca divulgou seus balanços
financeiros anuais.
“Quanto a Traffic faturou em
2002?”, perguntou o repórter José Roberto Caetano, da revista Exame.
“Não posso falar.”
“Quanto pagou pelas três
afiliadas da Rede Globo no interior de São Paulo?”
“Estou impedido de revelar por
uma cláusula contratual.”
Disse que acabara de fechar um
contrato de marketing esportivo, mas, sobre com quem seria:
“Não posso contar.”
Hawilla dava expediente diário
na sede da Traffic, um prédio de design moderno no Jardim Paulistano, em São
Paulo, a poucos metros do Parque do Ibirapuera. A área de 1 400 metros
quadrados, que soma três lotes, foi adquirida em 1998 do Banco Itaú por 1,2
milhão de reais (5,2 milhões, em valores corrigidos). Dois anos depois, quando
a empresa completou 20 anos, o empresário encomendou um projeto arquitetônico
sob medida à empreiteira JHSF, que tem em seu portfólio prédios imponentes na
capital paulista, como a sede do antigo Banco Santos.
A casa que hospedava a empresa de
marketing esportivo foi derrubada para dar lugar a um edifício com pórtico de
mármore, salões amplos com pé-direito alto e fachada de vidro que dão
luminosidade ao ambiente. Quadros temáticos relacionados ao futebol, como o do
artista Gustavo Rosa, logo na entrada à direita, e sofás muito amplos
completavam o cenário. Na sala de Hawilla, chamava atenção uma bola usada na
Copa do Mundo de 1962, assinada pelos jogadores da Seleção Brasileira da época.
Para espantar o “olho gordo”, o
supersticioso empresário fez questão de colocar, próximo à porta de entrada da
sede, um arranjo com sete raízes de plantas e muito sal grosso. Meses mais
tarde, Hawilla comprou o terreno vizinho e, no mesmo estilo arquitetônico da
Traffic, construiu uma produtora de vídeo, a TV 7, um investimento de 10
milhões de reais, em valores da época.
Havia dinheiro de sobra. Graças a isso, Hawilla seria aceito
no mundo restrito da grã-finagem de São Paulo. Em agosto de 2011, foi um dos
600 convidados VIPs para o almoço de inauguração do novo hotel Fasano, grife da
culinária paulistana, na Fazenda Boa Vista, na mesma Porto Feliz do centro de
treinamento da Traffic. No cardápio, picadinho, arroz com castanha e ovo poché,
preparados pelo chef francês Laurent Suaudeau, regado a taças de vinho,
champanhe, caipirinha e clericot.
Nos negócios, o empresário
aproveitava-se da penúria financeira dos clubes para avançar sobre a gestão das
equipes. A Traffic FC administrava o futebol do Palmeiras (a parceria durou de
2008 a 2010) e do Ituano (entre janeiro de 2008 e maio de 2009), e detinha
jogadores no Flamengo, Corinthians, Fluminense, São Paulo e Vitória, com lucros
bastante elevados: em 2008, por exemplo, a empresa pagaria 1,5 milhão de
dólares pelo passe do meia Everton e, dois anos depois, venderia o jogador por
10 milhões de dólares a um clube mexicano – um lucro de 650%. Em 2011, mantinha
negócios com todos os clubes de futebol da primeira divisão do Campeonato
Brasileiro, o que gerava inevitáveis questionamentos éticos.
Um exemplo concreto viria no
fim do Brasileirão de 2008, quando o Vitória enfrentou o Palmeiras, clube
parceiro da Traffic. Dois jogadores do time baiano, Willians e Marquinhos, já
sabiam que no ano seguinte estariam no clube paulista e que, se o Vitória
vencesse aquele jogo, desclassificaria a futura equipe para a Libertadores no
ano seguinte. O jogo terminou 0 a 0.
Mas Hawilla dava de ombros às
críticas da imprensa esportiva. Costumava atribuí-las à inveja de jornalistas
de sua geração que, diferentemente dele, não haviam enriquecido com o futebol:
“Mesmo que você trabalhe honestamente, com transparência e dignidade, como
sempre foi feito aqui, eles falam. Uma meia dúzia de jornalistas esportivos.
Acho que é mais inveja e rancor, porque, no fundo, eles querem profissionalização
e sabem que trabalhamos bem”, disse certa vez.
O empresário havia sido
bombardeado pela mídia em janeiro de 2009, quando o então ministro do Esporte,
Orlando Silva, o nomeara membro do Conselho Nacional de Esporte, ligado à
pasta. Silva, filiado ao Partido Comunista do Brasil, o PCdoB, havia se
aproximado da Traffic poucos meses antes – em junho de 2008, Hawilla foi um dos
convidados para a festa de aniversário do ministro, em São Paulo. O empresário
ingressou no órgão como “representante do desporto nacional”. Enquanto
conselheiro, ele poderia, com os outros 21 membros, propor prioridades na
aplicação de verbas ministeriais, emitir pareceres sobre questões esportivas
nacionais e aprovar mudanças nos códigos da Justiça Desportiva. Além de atuar
diretamente na organização da Copa de 2014 – na qual ele fatalmente teria
negócios (como de fato teve). Uma raposa tomando conta do galinheiro? O então
ministro não vê dessa forma. “Tínhamos a representação de atletas, árbitros,
técnicos. Faltava o olhar do empresário. Ele enriqueceria o debate”, disse
Silva.
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Teixeira, Orlando e Hawilla. |
Na época, a presença de Hawilla
foi criticada pelo Sindicato de Atletas Profissionais do Estado de São Paulo e
por membros do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). “Não acho que o
conselho precise de empresários ligados a negócios esportivos. Precisa de gente
que entenda de esporte”, disse o então presidente do sindicato, Rinaldo
Martorelli.
A nomeação seria revogada em
maio de 2009. Mas a amizade entre Hawilla e Orlando Silva permaneceu. O
ministro estava em Porto Feliz, na inauguração do CT da Traffic, em março
daquele ano, assim como o então governador José Serra e a nata da cartolagem
brasileira: Ricardo Teixeira, Marco Polo del Nero, então presidente da
Federação Paulista de Futebol (FPF), e seu vice, Reinaldo Carneiro Bastos.
Aliás, Hawilla convivia bem com
gente de todos os espectros ideológicos, embora nunca tivesse se envolvido
diretamente com a política, nem mesmo como financiador de campanha, ao menos em
registros oficiais, com exceção de uma pequena doação à campanha bem-sucedida
do deputado federal Edinho Araújo (PMDB) à Prefeitura de São José do Rio Preto,
terra natal do empresário. Em 2010, Hawilla cedeu seu camarote no Morumbi para
o ex-ministro José Dirceu assistir a um show de Paul McCartney, relevando o
fato de o petista haver criticado os negócios da Traffic nos tempos em que era
deputado.
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José Serra e J. Hawilla |
No entanto, era evidente a
simpatia de Hawilla pela grã-tucanagem paulista, especialmente o conterrâneo
Aloysio Nunes Ferreira e José Serra, sem contar a amizade com aliados do PSDB,
como Gilberto Kassab, hoje no PSD. Na campanha à Presidência da República de
2006, a Rede Bom Dia de Comunicações (rede de jornais de Hawilla no interior
paulista) estampou um editorial na capa de suas quatro edições pregando voto em
Alckmin contra Lula. O petista acabou reeleito.
Havia uma profunda sintonia entre Teixeira e Hawilla, seu
sócio oculto, embora ambos tivessem personalidades bem distintas: o primeiro,
explosivo, não raro grosseiro; o segundo, adepto das boas maneiras e da
diplomacia. Água e óleo que, para desconfiança de muitos, se misturavam em meio
a interesses financeiros comuns – ambos se entendiam apenas pela troca de
olhares.
Teixeira era um operador do
mercado financeiro que, mesmo sem muito interesse por futebol (seu esporte
preferido é o turfe), chegou ao comando da CBF pelas mãos do sogro, o poderoso
presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa), João Havelange, que
entregou a entidade à sanha do marketing esportivo e a transformou em uma
máquina de fazer dinheiro – para a Fifa e para si próprio. Deu tão certo que
decidiu fazer o mesmo no Brasil por meio do genro, um mineiro criado na Zona
Sul do Rio com hábitos de playboy na juventude, casado com Lúcia, sua filha.
Teixeira, que não havia passado de um lateral-direito esforçado no futebol de
areia e que nunca administrara nenhum clube de futebol, de repente se via no
comando da CBF.
A dupla Teixeira-Havelange
personificou graves vícios que mancharam a imagem da administração do futebol
brasileiro. É do poderoso chefão da Fifa uma das melhores definições do genro,
que chegou a alimentar o desejo de assumir o comando da entidade com sede na
Suíça, novamente com o auxílio prestimoso de Havelange, o “Rei Sol”: “Se a
senhora um dia tivesse que definir a malandragem, no bom sentido”, disse uma
vez à piauí, “ela
se chamaria Ricardo Teixeira.”
Formulada em 2011, a frase
parece premonitória da tempestade que cairia sobre a cabeça de Teixeira e
Havelange meses mais tarde.
Mas, na noite de 17 de maio de
2010, uma segunda-feira, nada disso interessava. Hawilla gastou milhões numa
festa no Hotel Unique, um dos mais sofisticados de São Paulo, para comemorar os
30 anos da Traffic. A lista de convidados era a prova do poder do empresário:
além do onipresente Teixeira, Pelé, Galvão Bueno, Andrés Sanchez, Luciano Huck,
Ronaldo Fenômeno. Da política, os tucanos Aloysio Nunes, Geraldo Alckmin, Vaz
de Lima e Barros Munhoz; o cacique do PMDB Orestes Quércia; a petista Marta
Suplicy e o então candidato a deputado Protógenes Queiroz, do PCdoB.
Entre tantos amigos ilustres,
Hawilla, sempre gentil, esforçava-se para dar atenção a todos, em meio ao
bombardeio de flashes das colunas sociais. Pelé, alvo natural da mídia, deixara
de ser inimigo da máfia do futebol, e naquela noite lamentava não ter cursado
marketing esportivo em vez de educação física: “Se tivesse feito, talvez
estivesse trabalhando com ele [Hawilla]”,
disse.
Entre doses de uísque e alguns
canapés, os convidados assistiram ao show de um cover de Michael Jackson e, em
seguida, a uma apresentação intimista de Lulu Santos, um dos cantores
preferidos de Hawilla. O momento era de confraternização, mas nem assim o dono
da Traffic perdia a oportunidade de fazer lobby por seus interesses.
Hawilla aproveitou a presença
do ministro do Esporte e de Kassab, então prefeito de São Paulo, para
pressionar Kassab a desistir do projeto de reforma do estádio do Morumbi para a
Copa de 2014. De acordo com o empresário, a cidade deveria investir em um novo
estádio para o mundial, mesmo pensamento de Teixeira – o próprio Hawilla havia
intermediado um encontro semanas antes entre Kassab e Teixeira para tratar do
assunto na fazenda do presidente da CBF, no Rio. Hawilla negou a existência da
conversa. Mas aproveitou a festa para publicamente rasgar elogios ao prefeito
paulistano: “O Kassab é a maior revelação da política brasileira nas últimas
décadas”, disse.
Apenas duas semanas depois, os
grandes amigos Hawilla e Teixeira conseguiriam fazer valer seus desejos. O
prefeito, um são-paulino até então contrário à construção de uma nova arena na
cidade, subitamente mudou de opinião, e o Morumbi perdeu a disputa. Com o apoio
entusiasmado do corintiano Lula da Silva, já no ano seguinte, 2011, a Odebrecht
iniciaria a construção da Arena Corinthians em Itaquera, na Zona Leste da
capital. A obra, orçada inicialmente em 400 milhões de reais, foi concluída com
atraso, às vésperas da Copa do Mundo, a um custo total de 1,2 bilhão de reais,
parte financiada com dinheiro do BNDES.
O Itaquerão, como seria
conhecido, entrou na mira da Lava Jato no início de 2017, quando delatores da
Odebrecht disseram ter pago propina para o caixa dois de campanha de dois
petistas: 50 mil reais para Vicente Cândido e 3 milhões de reais para Andrés
Sanchez, o ex-presidente do Corinthians, presença marcante no jantar dos 30
anos da Traffic – ambos negam o recebimento do suborno. O próprio Marcelo
Odebrecht questionou a utilidade da obra em depoimento aos procuradores do
Ministério Público Federal: “É um absurdo. Você faz o estádio para um dia e
depois tem que desmontar um bocado de coisas.”
As investigações da Lava Jato
em relação à Arena Corinthians estão em andamento.
Kleber Leite era um dos convivas mais expansivos do banquete
de 30 anos da Traffic. “Não poderia perder um show intimista do meu querido
amigo Lulu.” Sempre simpático e sorridente, o ex-presidente do Flamengo
mantinha com Hawilla uma amizade sólida que vinha do jornalismo esportivo –
ambos haviam passado pelo rádio nos anos 70, Hawilla em São Paulo, Leite no
Rio, e depois migraram juntos para o marketing no futebol. O primeiro fundou a
Traffic, em 1980, e o segundo, a Klefer Produções e Promoções Ltda., três anos
mais tarde.
Em vez de concorrerem entre si,
uniram forças e montaram uma sociedade informal: o carioca tornava-se assim uma
espécie de extensão de Hawilla no Rio de Janeiro. “Eu tenho pelo presidente da
Traffic, J. Hawilla, o maior apreço possível, o tenho como um amigo querido.
[…] Uma pessoa não chega aonde o Hawilla chegou de graça, não chega subornando
as pessoas, não chega enganando as pessoas. Chega por meio de trabalho, de
competência. Ele é, inegavelmente, um gênio na matéria”, disse Kleber Leite em
depoimento à CPI da CBF/Nike, em 2001.
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Teixeira e Nuzman |
Em março de 1985, Carlos Arthur
Nuzman, presidente da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV), que seria
preso em 2017, acusado de pagar propina para garantir o Rio de Janeiro como
sede dos Jogos Olímpicos, cedeu à Traffic “todos os direitos de organização,
realização, promoção, exploração comercial e publicitária e direitos de
transmissão para o Brasil e exterior de todas as competições de voleibol
nacionais e internacionais”. Em troca, a Traffic pagaria à CBV 40% “do total
líquido apurado em cada evento”. Na cláusula sexta, a empresa cedia à Klefer
50% dos direitos e obrigações do contrato.
Mas o acordo Traffic-CBV teve
vida curta: seria rescindido em outubro de 1985 por falta de patrocínio – na
ocasião, Nuzman declarou-se “atônito, decepcionado e chocado” com a atitude das
empresas. Já a dobradinha Hawilla-Kleber permaneceu sólida.
Ambos se cumprimentavam com um
beijo no rosto. O carioca costumava passar temporadas na mansão do amigo em São
José do Rio Preto (SP) e era chamado de “tio Kleber” pelos filhos de Hawilla,
Stefano, Rafael e Renata. A Klefer tinha parceria comercial com o Flamengo
quando Kleber Leite assumiu a presidência do clube, em 1995. Para evitar
questionamentos por parte da imprensa, ele encerrou o contrato com a sua
empresa, mas logo em seguida fechou parceria de marketing entre o clube
rubro-negro e a Traffic.
Em 1997, também na gestão de
Leite no Flamengo, a empresa de Hawilla obteve um contrato mais do que generoso
para cuidar das placas de publicidade do Maracanã. Sem licitação, a
Superintendência de Desportos do Estado do Rio de Janeiro (Suderj), que
administrava o estádio, escolheu a dedo quatro empresas de marketing esportivo,
“Traffic incluída”, para apresentar suas propostas no prazo de 24 horas. A
empresa de Hawilla ofereceu 821 700 reais anuais por dezoito placas do estádio,
ou 45 600 reais por painel, em valores da época. A Brilho Publicidade &
Promoções ofertou 806 mil reais, mas prometeu aumentar a oferta em 48 horas. A
Suderj, porém, ignorou a proposta e declarou vencedora a Traffic. Apesar do
valor ligeiramente maior que o da concorrente, a Traffic propôs um valor
baixíssimo se comparado ao que a Suderj faturara com as outras 22 placas que
negociava diretamente com os patrocinadores naquele ano: 3,2 milhões de reais.
Prejuízo para os cofres públicos, lucro certo para a Traffic.
Nos quatro anos em que Kleber
Leite ficou à frente do Flamengo, Hawilla se tornaria uma espécie de
conselheiro informal do clube. Foi o empresário paulista que indicou o amigo em
comum Vanderlei Luxemburgo como treinador da equipe, em 1995, no galáctico time
rubro-negro que tinha Romário, Edmundo e Sávio, mas ganhou apenas uma modesta
Taça Guanabara. Jotinha soube retribuir a gentileza do “tio Kleber”: anos
depois, o parceiro do Rio seria nomeado vice-presidente da empresa paulistana.
A confiança entre eles parecia inabalável.
A festa da Traffic seguia perfeita, exceto por um detalhe:
Teixeira e Ronaldo Fenômeno não se falavam. Estavam rompidos desde a Copa do
Mundo de 2006, quando, após a eliminação da Seleção Brasileira, derrotada pela
França nas quartas de final, o cartola criticou publicamente as farras noturnas
protagonizadas pelo centroavante durante a competição na Alemanha. Três anos
depois, Teixeira teria vetado a convocação do jogador para a Seleção, ignorando
sua ótima fase no Corinthians. Por tudo isso, não havia clima para uma
reaproximação naquela noite.
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Teixeira e Ronaldo Fenômeno, na festa de Hawilla. |
Acompanhado de dois seguranças
e de Bia, então sua mulher, Ronaldo ignorou completamente a presença do
presidente da CBF e sentou-se a uma mesa no fundo do salão, logo após o show do
cover de Michael Jackson. Com uma taça de champanhe na mão, assistiu à
apresentação seguinte, de Lulu Santos.
Hawilla, parceiro do ex-jogador
nos torneios de golfe no São Paulo Golf Club, notou a saia justa e o
burburinho. Resolveu entrar em ação. Conversou longamente com Teixeira num
canto, depois foi até a mesa do atacante. Passados alguns minutos, Ronaldo
cruzou o salão, chamou o cartola e lhe deu um longo e forte abraço. Teixeira
retribuiu o carinho com um beijo no rosto do jogador. Graças a Hawilla, a paz
estava selada.
“Foi a imprensa que brigou ‘ele
comigo e eu com ele’”, disse o cartola, demonstrando sinais de leve embriaguez.
“Quando duas pessoas se abraçam e se beijam, isso quer dizer o quê? Que elas se
gostam. Precisa de mais alguma coisa?” Sorridentes, ambos posaram para fotos.
Flashes pipocavam por todo canto. Já passava da meia-noite e a festa se
encaminhava para o fim.
Quatro anos depois do grande baile da Traffic, a empresa
ainda influenciava o marketing esportivo, mas havia sofrido fortes abalos em
contratos da Copa América e da Copa do Brasil. Nem por isso o acordo firmado
entre Hawilla e Teixeira foi interrompido, embora já não houvesse a ampla
confiança mútua de anos anteriores.
Ricardo Teixeira estava em sua
casa na Flórida quando o celular tocou. Era Hawilla, querendo marcar um
encontro. Como não se viam havia tempos, combinaram um jantar no Smith &
Wollensky, restaurante à beira-mar em Miami. Teixeira, que deixara a CBF em
março de 2012, em meio a fortes suspeitas de corrupção, encontrou o Hawilla
cordato de sempre, mas notou que ele estava um pouco tenso. A conversa começou
amena, entremeada de algumas taças de vinho. De repente, o empresário começou a
rememorar episódios do passado de ambos. Hawilla falava de dinheiro, lícito e
ilícito, que correra na relação Traffic-CBF. Uma conversa estranha para o
ambiente e as circunstâncias. Enquanto o velho parceiro falava, Teixeira olhou
de soslaio para as mesas no entorno. Nada anormal, exceto o movimento dos
garçons, que a todo momento passavam próximos à mesa deles.
Com toda a malandragem que lhe
imputava o ex-sogro Havelange, Teixeira farejou a arapuca, e com razão: já
delator, Hawilla era um grampo ambulante, cercado de agentes do FBI disfarçados
de garçons. Subitamente o rosto do ex-cartola ruborizou. Encarou o empresário
com os olhos cheios de raiva, socou levemente a mesa e levantou. Dedo em riste,
apontou-o para o antigo parceiro: “Filho da puta!”
E foi embora, para espanto de
Hawilla. Chegara, enfim, o divórcio, antes mesmo daquele fatídico 27 de maio de
2015, quando o FBI deflagrou a operação que desnudaria a máfia do futebol e o
Brasil assistiria, perplexo, à confissão de graves crimes pelo
magnata-que-se-dizia-honesto José Hawilla.
“Ele não merecia isso”, lamentava
Galvão Bueno a amigos. Era o anticlímax dos tempos de Porto Feliz.
Na manhã daquele mesmo dia 27,
a Polícia Federal invadiu a sede da Klefer no Rio. Cumpria mandados judiciais
de busca e apreensão a pedido da Justiça norte-americana. Os agentes apreenderam
computadores e coletaram milhares de páginas de documentos – parte seria
remetida aos Estados Unidos. A Justiça brasileira também quebrou os sigilos
bancário e fiscal de Kleber Leite, além de bloquear seus bens.
Semanas depois, o empresário
obteve um habeas corpus no
Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região que anulou toda a operação
policial. Mesmo assim, não perdoaria o ex-amigo Hawilla, até porque, assim como
Teixeira, já percebera algo estranho nas intenções e nas palavras do dono da
Traffic antes de o Fifagate vir à tona: “Hawilla, me desculpa, presta atenção”,
disse numa das conversas interceptadas pelo FBI. “Com base na nossa amizade, eu
passei a vida toda contigo. E eu confio em você completamente. Nunca te
questionei nada. Mas você tá sendo um tremendo cuzão! Como você desconfia de
mim?”
Em depoimento à CPI da Máfia do
Futebol na Câmara dos Deputados, em junho de 2016, Kleber Leite soltou o verbo
contra Jotinha, que passou a ser “o senhor J. Hawilla”: “O problema do senhor
J. Hawilla é o seguinte: eu, se advogado fosse, e se, porventura, um dia
tivesse a necessidade de enfrentamento com ele, a primeira coisa que eu pediria
seria um teste de sanidade mental com relação a ele. Eu duvido que ele esteja
no gozo pleno de sua sanidade mental. […] O senhor Hawilla é uma pessoa de duas
personalidades. Ele é uma pessoa extraordinária, delicada, doce, amável, meiga,
amiga, quando não há qualquer interesse financeiro envolvido. Quando há
dinheiro envolvido, é outra figura completamente diferente. Eu diria que há
dois Hawillas, um normal, quando não há dinheiro envolvido, e outro, quando há
dinheiro envolvido, é o ser mais materialista que eu já vi na minha vida.”
O empresário carioca já havia
atacado o antigo parceiro em seu blog na internet: escrevera que “a cabeça” de
Hawilla “deve ter sido afetada” pelo câncer na garganta (curado em meados de
2014). Procurado, Leite não quis se manifestar. E justificou-se: “Esta é a mais
decepcionante página na minha história de vida com relação a um ser humano. Como
não está em mim odiar, melhor esquecer. Em homenagem e respeito à família do
seu personagem, nada tenho a declarar.” À imprensa, Ricardo Teixeira também
atacaria o ex-amigo: “Ele está completamente descompensado e quer solucionar o
problema dele.”
Os Hawilla assistiram a tudo
perplexos e calados. A discrição em momentos difíceis, afinal, era parte dos
ensinamentos que Fuad e Georgina, pais do empresário, legaram aos filhos e aos
netos.
****
Sobre os autores:
Allan de Abreu é
repórter da Revista Piauí, autor dos livros O Delator e Cocaína: a Rota
Caipira, ambos publicados pela Editora Record.
Carlos Petrocilo é
editor de esportes do Diário da Região, em São José do Rio Preto.