Quase ninguém o identifica pelo seu nome de batismo,
Eduardo Gonçalves de Andrade. Mas, dizer, Tostão, a associação é imediata com o
craque do futebol brasileiro surgido no final dos anos 1960 e tricampeão
mundial na Copa do México, em 1970.
Tostão também ficou marcado na história do futebol
brasileiro pelo fim precoce da carreira, aos 26 anos, devido a problemas em sua
visão. Virou médico, Dr. Eduardo, e, mais tarde, cronista de primeira no jornalismo
e literatura esportiva.
Tostão tem agora um livro: “Tempos
vividos, sonhados e perdidos - um olhar sobre o futebol” (Companhia
das Letras). Uma “viagem” pelos últimos 60 anos do futebol brasileiro, sob o
olhar de uma de suas grandes estrelas.
Literatura na Arquibancada destaca abaixo o texto de
introdução, assinado pelo próprio Tostão e o trecho final do primeiro capítulo
da obra.
Introdução
Tostão
Os “tempos perdidos” do título do livro são momentos não
vividos, que ficaram soltos no tempo e no imaginário.
Não nos lembramos de muitas coisas que estão em nossa
memória, e o que recordamos nem sempre é um retrato exato dos fatos. Com
frequência, esquecemos, reprimimos e sublimamos o que não queremos lembrar. A
lembrança dos fatos não costuma ser a primeira imagem, a real. Às vezes, a
verdade chega perto, mas foge de nossa consciência, como sempre ocorre quando
acordamos e tentamos lembrar o que sonhamos. Os fatos que esquecemos não
desaparecem. Vão para debaixo do tapete da memória e podem voltar a qualquer
momento, sem avisar, muitas vezes disfarçados, incompreendidos.
A finalidade principal deste livro não é escrever sobre
minha carreira de atleta, muito menos sobre minhas memórias pessoais. Não é uma
autobiografia, nem um almanaque, nem um livro de pesquisa de informações.
Também não tenho a pretensão de contar a história do futebol brasileiro, que já
tem 120 anos, o dobro do tempo contado neste livro. A tentativa é fazer uma
síntese da evolução do nosso futebol nos últimos sessenta anos, especialmente
das seleções brasileiras e das Copas do Mundo, a partir de minhas lembranças e
impressões sobre as coisas que vi, senti, participei, analisei e imaginei nesse
período, como garoto, adolescente, atleta profissional, médico, professor de
medicina, comentarista de tv, colunista e cidadão. O futebol e o mundo mudaram
muito ao longo desse tempo. Já minhas grandes dúvidas continuam as mesmas.
Por exagero didático, dividi esses sessenta anos em três
períodos de mais ou menos vinte anos cada um, com um futebol praticado em
diferentes qualidades e estilos. O primeiro, do final dos anos 1950 até o
início dos anos 1970, foi de encantamento, beleza e fantasia. O segundo,
chamado por José Miguel Wisnik de intermezzo, foi o do conflito entre a ciência
e a improvisação. O terceiro, o da conciliação entre os dois olhares
anteriores. Coincidentemente, minhas relações com o futebol foram também
distintas em cada uma dessas três épocas. Nas primeiras duas décadas em
questão, fui uma criança e um adolescente que gostava muito de futebol, que se
tornou um atleta e que foi obrigado a encerrar a carreira precocemente aos 26
anos de idade. Nas duas seguintes, fui estudante, médico e professor de
medicina. Nos últimos vinte anos, trabalho como comentarista e colunista
esportivo. “A vida dá muitas voltas, a vida nem é da gente” (João Guimarães
Rosa).
Primeiro capítulo
Encantamento
(...)
Antes da Copa de 1958, o jogador brasileiro já era
conhecido por sua habilidade, fantasia e improvisação. Faltava um grande título
mundial para mostrar que essa intimidade com a bola, o futebol moleque,
descontraído, poderia também ser eficiente. Foi o que ocorreu na Copa do Mundo
de 1958 e se repetiu em 1962, com quase todos os mesmos jogadores. A partir do
primeiro título, nasceu a mística da camisa amarela, do futebol bonito, do
futebol arte, da magia, enquanto os europeus jogavam o futebol força.
Dizia-se que nasciam craques em cada esquina no Brasil.
Alguns lances passaram a ser a marca característica do futebol brasileiro, como
os passes de rosca, de curva, de trivela, os dribles de todos os tipos, os
elásticos, os chapéus, a ginga, a finta com o corpo, sem tocar a bola, e
dezenas de outros efeitos especiais. O mundo passou a adorar o futebol
brasileiro. Quando aparecia um jogador de muita habilidade na Europa, diziam
que atuava como um brasileiro.
Há uma grande discussão sobre as origens de tanta
habilidade e fantasia. Muitos diziam que tudo começava nos campos de pelada, de
terra, onde os meninos, em vez de estarem em escolas públicas, em horário
integral, descobriam a intimidade com a bola, sem regras e professores. A
miscigenação racial do povo brasileiro seria outro motivo. A importação de
técnicos sul-americanos, como Fleitas Solich, Filpo Nuñes e outros, e húngaros
como Eugênio Medgyessy, Dori Kruschner, Imre Hirschl e Béla Guttmann, nos anos
1950, ajudou na evolução de nosso futebol. A Hungria tinha uma seleção
fantástica em 1954, quando venceu o Brasil por 4 a 2.
O argentino Filpo Nuñes foi técnico do Cruzeiro em 1964,
antes do Mineirão, que seria inaugurado no ano seguinte. Após as partidas, ele
reunia os jogadores e perguntava a um meia ou a um atacante que havia sido
muito elogiado pela imprensa: “Quantos gols você fez? Quantos passes deu para
gols ou que poderiam ser gols?”. O jogador respondia: “Nenhum”. Filpo
retrucava: “Então, você não fez nada”.
Alguns pensadores relacionam o estilo descontraído e irreverente
e a improvisação do futebol brasileiro com a brincadeira e a falta de
compromisso – da mesma forma como alguns escritores, como Machado de Assis,
definiram o homem brasileiro. Esses e tantos outros motivos foram determinantes
para a criação do estilo brasileiro de jogar, único, que se perdeu
progressivamente ao longo do tempo. Hoje, estamos sem identidade, sem saber onde
estamos nem para onde vamos.
Obrigado, mais uma vez, por outra dica irresistível!
ResponderExcluirBom dia, André. Somente hoje descobri esse sensacional blogue de futebol. Este ano lancei o livro O Pênalti Perdido, uma novelinha juvenial ambientada nos anos 80. Gostaria de te enviar um exemplar. Meu email: marcusborgon@gmail.com
ResponderExcluirAbraço,
Marcus Borgón