Há dez anos ele partiu
deixando uma enorme lacuna no futebol brasileiro. Telê Santana, da luta pelo
jogo jogado. Telê Santana, do enfrentamento com dirigentes. Telê Santana, da
prosa sempre boa de todo mineiro. Mas quem é “mestre”, como dizem, permanecerá eterno.
Para recordar Telê, Literatura
na Arquibancada resgata três textos de craques da literatura brasileira. Nos
dois primeiros, Mário Filho e Alberto Dines, nos dão a dimensão exata do que
Telê representava: o primeiro como jogador de futebol; e o segundo, como
técnico da seleção brasileira.
A crônica abaixo do jornalista Mario Filho foi extraída do livro “O sapo de Arubinha - Os Anos de Sonho do Futebol Brasileiro” (Companhia das Letras, 1994). Telê estava no auge de sua carreira (setembro de 1956) quando se tornou personagem de Mario Filho.
Telê
Telê trouxe uma nova medida de tempo para o futebol. É, de algum modo, o ponteiro dos segundos, o que não pára. Os outros são, quando são, o ponteiro dos minutos. Há, até, os que não são ponteiros: são os cinco, os dez, os vinte, os trinta, os sessenta, os números que os ponteiros atravessam, girando. Ponteiro de segundos é Telê. E vocês, que têm relógio, vão compreender melhor por que se descobre Telê, todos os anos. Para ver o ponteiro dos segundos, a gente precisa ser um pouco médico, que todos somos, contar as pulsações.
E é justamente quando se toma a pulsação do match, Telê jogando, que se
descobre esse ponteiro dos segundos. Então há sempre um espanto, embora todos
estejam não digo cansados, nem fartos, nem nada de ver Telê e sempre assim. O
espanto vem daí, dessa repetição que se poderia chamar, dentro da relatividade
do futebol, de perene. Um jogador demora um pouco a acabar e poucos resistem a
chamá-lo de eterno. O que Telê faz, outros fizeram e fazem, mas num jogo.
Escolhem um jogo e molham a camisa e não param, e vão para a frente e voltam, e
avançam e recuam, dum lado para outro. Depois tomam férias. Não são de ferro.
Ninguém reclama porque concorda. Se se jogasse sempre assim, não havia jogador
que aguentasse. Telê aguenta. Percebendo-se isso, apesar de público e notório,
a boca se abre e é a perplexidade. Sobretudo porque Telê é quase só ossos, não
há jeito de ganhar nenhum quilo. Como?
E o mais curioso é que Telê é um pão-duro. Depois de dizer isso, retifico: não
é o mais curioso. Parece haver uma contradição entre a generosidade de Telê em
campo pelo clube e não dando nada fora do campo. Não há. Pelo menos me vem à
memória outro pão-duro que, em campo, era uma fera. Telê não é uma fera. Zezé
Procópio, unha-de-fome, em campo se matava pelo clube. É verdade que não dava a
impressão de que se estivesse matando. A impressão que dava é a que estava
disposto a matar qualquer um. E saia da frente. Agora me vem outra ideia: o que
Zezé Procópio parecia é que estava cobrando dívidas, que cobrava com juros
altos, que cobrava até 50% por semana. Também ficou rico. Era um agiota, coisa
que Telê não é. Telê é sumítico, com dinheiro, mas com a bola, defendendo o
Fluminense é um mão-aberta, um estróina.
Estróina – eu disse estróina? – não, Telê não lembra um estróina. Apenas cumpre
a obrigação dele e, para ele, a obrigação dele é aquela. Realmente, procede
como se não fizesse nada de mais e cumprisse apenas a obrigação. Quem quiser
cumprir direito a obrigação, transformada em dever, o que se tem a fazer tem de
ser feito, verificará que precisa ser um Telê. Por isso Telê é um exemplo. Ele
não mete o pé em ninguém, não descompõe ninguém, não faz mais do que pode fazer
normalmente. Nele aquele esforço todo é natural, espontâneo. Por muito menos
outros jogadores se sentiram carregadores de piano. E gritavam logo que estavam
cansando. Telê não cansa. E o espantoso é que não cansa nunca, esse fiapo de
jogador que não para nem quando a bola está fora.
Para Telê é importante. O quíper (goleiro)
vai receber a bola, vai colocá-la sobre a linha da pequena área, talvez seja o quíper quem bate o tiro de meta, talvez
seja o beque. Telê tem de estar preparado para receber aquela bola ou para
roubá-la. Ele é um ladrão dessas bolas sem destino certo, um descuidista dentro
do campo. Bola sem dono é de Telê. Quem o chama de ladrão é o Benício Ferreira
Filho. E o termo é bom porque quando o quíper
do outro lado, ou o beque, bate o tiro de meta, é para dá-la a um jogador do
time dele e não a Telê. Mas Telê já está à espera da bola. Há jogadores que
olham no momento do tiro de meta, para ver a direção da bola. Telê estava
olhando antes. A bola do tiro de meta, a bola do out-side, a bola que espirra, a bola que foge, a bola que toma
efeito, a bola que para, a bola que anda, a bola que salta.
Se um jogador espera um passe e não se antecipa, está sem bola, Telê apareceu,
para muitos não se sabe de onde. Mas se alguém, em vez de olhar para a bola,
olhar para Telê, que é quase a mesma coisa, não tem de que se espantar. Telê
está sempre se colocando, mudando de posição, e de olho na bola, ela esteja
perto ou longe. Mas não se olha Telê, olha-se a bola, embora se saiba que Telê
está no palco, digo no campo. Mas podia dizer palco. Dão a deixa e ele aparece.
Só que, no futebol, dão muito mais deixas do que no palco. É, porém, difícil
ser Telê, pegar todas as deixas. Sobretudo porque não se reserva para Telê o
papel principal. Ele é que toma e com a naturalidade de quem não está tomando
nada. De quem está apenas representando o papel que lhe foi destinado.
Apesar de tudo, se devia ver mais Telê. Ele merecia que a gente se voltasse
mais para ele. Ou que, pelo menos, se visse melhor o que ele faz. Vê-se Telê,
mas não se vê direito o que ele faz. Não se fraciona a jogada dele, não se a
coloca debaixo de uma lente para ampliá-la, como se faz com as jogadas de
tantos outros. Talvez porque Telê não chame a atenção sobre si mesmo. Há
jogadores mestres nisso. Vão fazer uma jogada e como que avisam. Os olhos da
multidão se voltam para ele e ele então começa a executar o número variado. Já
Telê é a peça toda. Dá a impressão de que há sempre tempo para vê-lo. Há
realmente sempre todo o tempo para vê-lo. Ele entrou em cena agora, vai voltar
me seguida, estará sempre no palco, a deixa não tarda.
Basta que um jogador se sobressaia um pouco num match em que jogue Telê para
que se esqueça um tanto Telê. Há sempre tempo para se lembrar Telê. Realmente
há sempre tempo para se lembrar Telê. Mas se deixa o tempo passar. De tanto se
espantar com Telê, a gente chega a achar, sinceramente, que esgotou toda a
capacidade de espanto. O que era uma injustiça, o se esquecer de Telê, passa a
ser a única maneira de fazer-lhe justiça. De outra forma não o descobriríamos
mais, já lhe teríamos o mapa, que temos, com as capitais, que temos, os
acidentes geográficos, que temos, as riquezas minerais e vegetais, que temos,
mas que, por termos, dá-nos a segurança de saber tudo, que é a melhor maneira
de esquecer.
Porque o esquecemos, tantas vezes, é que o descobrimos outras tantas.
Descobrindo-o de novo é como se nunca o tivéssemos visto, pelo menos assim. E
assim era ele, e é, e a gente também acha que será toda a vida. Até que acabe.
Mas parece não acabar nunca. Dura se esbanjando. É um milionário de futebol.
Milionário americano, de fita de cinema. E o que preocupa é o futuro. Não de
futebol, o outro, o sem futebol. Por isso trabalha, tem negócio, guarda, guarda
tudo. Só não guarda futebol. O que tem dá ao Fluminense às mãos-cheias.
Geralmente o jogador de futebol faz o contrário: esbanja o dinheiro que ganha e
economiza o futebol, para esticá-lo o mais possível.
E o que acontece é que, quando lhe acaba o futebol, não tem nada. Telê é o
contrário: guarda o dinheiro, trata de aumentá-lo, de entesourá-lo e talvez
seja isso o que lhe dê essa tranquilidade em não regatear nada no futebol.
Acabando o futebol, ele continuará com a vida dele, de pai de família e homem
trabalhador. Pode dar o que tem em futebol, generosamente, de coração aberto.
Aliás, só se sabe jogar assim. Não é esse o melhor caminho para a popularidade.
Gosta-se de Telê, admira-se Telê, mas se precisa sempre descobri-lo de novo. O
que é um mal e é um bem. Quando se o descobre de novo é como se surgisse um
outro Telê. E a verdade é que é o mesmo, o de sempre, o de todos os dias, o
mais cotidiano dos jogadores”.
“Não sou amigo de Telê, não sou mineiro, não sou de seu clube. Não envergo camisas nem uniformes. Nunca escondi minha admiração por aquela lucidez simples, pela geometria mental objetiva e nítida. Agora quando despenca no abismo, o faz com a mesma simplicidade e elevação. Gosto de gente assim. Ele não me conhece. Não sabe meu nome, cumprimentava-me cerimoniosamente, um dia chamou-me de ‘senhor’ apesar de ser um pouco mais velho. Não há vínculos, não há corriola. Apenas admiração. Ele é meu Dom Quixote preferido, o homem que não esperneia – cai lutando ou, se quiserem, cai chutando em gol...
As entrevistas que Telê Santana concedeu depois da derrota são exatamente as mesmas que concedeu na triunfal ascensão aqui na Espanha: explicou claramente, não escondeu, não escapou, não fez firulas retóricas – não recriminou nem culpou. Quando mencionou que houve falhas individuais e não táticas, não estava se eximindo, transferindo culpas e expiação para os comandados. Estava sim, defendendo o futebol-fantasia de que falou Vargas Llosa, instituição nacional em vigor nas várzeas, campos de peladas e canchas espalhadas por este país-estádio...
Quero ver Telê na presidência da República quando acabar o mandato de Figueiredo. Sabem por quê? Porque tem categoria para perder. Foi sempre o técnico mais aplaudido nos encontros com a imprensa internacional depois de cada jogo. Ele compreendeu a alma brasileira sem teorizar, nem doutrinar. O futebol-arte que ofereceu, ovacionado pelo italiano Bearzot e pelo craque Cruyff, não é um modelo formal, é uma reprodução de nossa natureza.
Telê, desculpem, tem muito de JK– tem grandeza. Com simplicidade, com um palito nos dentes. Não envergava a fatiota impecável do milongueiro Menotti, está sempre de calção ou agasalho esportivo. Afinal é jogador, futebolista, atleta. Em campo não desenha figuras geométricas e rígidas extraídas de tratados, como o fazem nossos políticos e administradores acostumados, primeiro, em escolher um “ismo” e depois tudo fazem para nele se encaixar...
Quero gente como Telê no comando do meu destino como cidadão. Nunca me obriguei a ser vitorioso. Em lugar algum de minha agenda está consignado “ganhar”. Abomino o triunfalismo imbecil e “aplastador”. Se vencêssemos esta Copa de 1982 teria sido uma campanha sublime. Perdemos e com tamanha dignidade que roça na vitória. Gostaria de Telê como amigo, para na hora do aperto me estimular para jogar como gosto de jogar. Telê é o grande espelho do nosso lado bom. Exatamente o que precisamos para recolocar a bola no centro e, sem olhar o marcador, partir para uma virada”.
Se Alberto Dines e Telê entenderam o significado daquela derrota fatídica para os italianos, na Copa de 1982, o mestre da poesia brasileira, Carlos Drummond de Andrade, dois dias após ao jogo ganhou uma página inteira do Jornal do Brasil (07/07/1982) para deixar eternizado uma reflexão espetacular sobre o verdadeiro significado da palavra “derrota”.
“Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo
perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que
até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por
que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para
não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados
para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido
e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara
muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da pátria;
Chego à conclusão de que a derrota, para a qual
nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos
previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória
estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se
uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias
traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados
pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder
implica remoção de detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta
caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um
resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até
mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os
cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos,
apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e
inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá
pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher
um objeto roubado.
A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a
taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de
competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a
quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio
futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou.
Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma
experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas,
readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do
real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida.
Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão
a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se.
Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus
jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante
não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e
meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura
solidária.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?”