Mais uma grande estrela do futebol mundial nos deixou. Johann
Cruyff era astro de uma seleção revolucionária, a Holanda, de 1974 e seu “carrossel”.
A “laranja mecânica” encantou o mundo e fez de seu estilo e tática de jogo,
objeto de estudos e pesquisas eternas.
Cruyff era polêmico, também. Virou técnico, do poderoso Barcelona.
E está na galeria dos imortais do futebol mundial.
Literatura na Arquibancada resgata, abaixo, capítulo do livro
sobre Cruyff, em A Magia da Camisa 10 (Verus Editora, 2006). O mais curioso nisso
é que Cruyff não jogava com a 10, mas com a 14. Você entenderá porque Cruyff
era um legítimo 10.
A Magia da
Camisa 10
Por André Ribeiro e Vladir Lemos
Nascido em 25 de abril de 1947, no pequeno bairro de Weidestraat,
próximo de Amsterdã, Cruyff era filho de uma família pobre. Hermanus, seu pai,
vendia frutas e legumes em uma barraca, enquanto que a mãe, dona Petronella,
era uma das faxineiras do Ajax, clube de futebol mais importante em Amsterdã.
Hendrik Johannes Cruijff, foi descoberto por acaso. Corria o ano
de 1966 e Vik Buckingham, perto de deixar o cargo de treinador no clube, se
encantou com o toque de bola do pequeno Johann. Colocou-o no time, e passou o
comando para Rinus Michels, um ex-centroavante do Ajax de porte físico
imponente. Rinus, integrante de uma escola de treinadores dispostos a provar
que era possível alargar a maneira de encarar o futebol, fez de Cruyff e sua
genialidade, ótimos instrumentos para colocar em pratica teorias
revolucionárias.
Nós pés de Cruyff o futebol conquistou a qualidade de ser
imprevisível. Mas não foi fácil para o menino chegar até ali. A família não
tinha dinheiro nem mesmo para comprar um par de chuteiras. O jeito era jogar
bola com os amigos calçando sapatos, que não duravam duas semanas nos pés do pequeno
craque:
- “Meu pai se irritava, e chegou a me castigar
algumas vezes. Até que um dia decidiu comprar sapatos para jogar futebol, bem
resistentes. Tiraram as travas e reforçaram a sola. Como não rasgavam, podia
usar o tempo todo”.
Vivendo o dia-a-dia do clube, Cruyyf se projetou de forma
meteórica entre os jogadores das categorias menores. Aos quinze anos,
enfrentava adversários maiores, e fazia da técnica apurada uma arma para vencê-los. Foi nesta época que ganhou o
apelido que carregaria para o resto da vida, “El Flaco” (o magro):
- “Eu era muito, muito magro. Não pesava nada. A
única forma de dominar o jogo era com a técnica. Em minha primeira partida
tinha tão pouca força que não me deixavam nem mesmo bater os escanteios porque a bola não chegava ao
gol”.
Se não tinha força, a técnica era inigualável. Em 1964, Cruyff
estreava no time principal e daquele momento em diante, estava em campo para
começar a mostrar tudo que aprendera. Na estreia perdeu para o Groningen por 3
a 1, mas foi dele o único gol do Ajax. Começava a ser escrita neste momento a
trajetória de um dos melhores jogadores do século 20.
O jogador de estatura pequena, à primeira vista inadequada para as
duras exigências do futebol, se tornava mais imponente a cada partida. Entre
1971 e 1972, como se não bastasse vencer a liga pela quinta vez, e ser tri da
Copa da Holanda, Cruyff, escreveria no estádio de Kuip, em Roterdan, outro
momento histórico. Foram dele os dois gols da vitória sobre a Inter de Milão
que deram ao Ajax a segunda Copa da Europa consecutiva, e que ainda levariam o
time a ser campeão Mundial Interclubes, contra o Independiente, da Argentina.
Ao derrotar a Juventus de Turim, em 1973, e se sagrar campeão
europeu pela terceira vez o Ajax passou a representar a máxima potência do
futebol mundial. Cruyff conquistava o segundo troféu de melhor jogador europeu
de sua carreira. O fato de ter sido vetado como capitão do time em 1973, por
ter se recusado a jogar contra o Bayern de Munique, iria acelerar a sua saída
para o futebol espanhol. Uma longa negociação marcou a transferência. O clube
queria negociá-lo com o Real Madrid, mas Cruyff, que tinha fama de rebelde,
queria jogar exatamente com a camisa do maior rival madrilenho. Transformou-se
no jogador mais caro da Liga espanhola com os 60 milhões de pesetas pagos pelo
Barcelona, além do salário mensal de 12 mil dólares.
No dia 3 de julho de 1974, o símbolo maior do futebol holandês
estava a uma partida da final da Copa do Mundo. Os tricampeões brasileiros
sabiam que para chegar à vitória, no Westfalen Stadion teriam que derrotar algo
novo. Diante do “carrossel holandês” era impossível encontrar a compreensão
exata do futebol, a rotação dos jogadores dava a impressão de que os holandeses
tinham descoberto a fórmula para estar em todos os lugares do campo. Após
vencer o Brasil por 2 a 0, os holandeses surpreenderiam o mundo ao perderem
para a Alemanha na final.
Cruyff não jogaria outra Copa. Em 1978,
não foi à Argentina como forma de protesto ao governo totalitarista do
país-sede, mesmo ano em que deixou o Barcelona para jogar nos Estados Unidos.
Trocar o Barça pelo futebol americano parecia loucura, mas a verdade é que fora
dos gramados, Cruyff mostrou-se um fracasso. Gastou quase toda a fortuna que
ganhara com o futebol na criação de porcos. O negócio quebrou e o jeito foi
aceitar a proposta de jogar nos Estados Unidos. Três anos depois, regressou à
Espanha, onde jogou, apenas, alguns meses pelo clube Levante. No mesmo ano, em
1981, volta a jogar pelo Ajax onde é novamente campeão da Liga holandesa. Nas
duas temporadas seguintes, 1982 e 1983, Cruyff está irreconhecível dentro de
campo. A morte de seu pai adotivo era a justificativa para a queda de
rendimento. O presidente do Ajax, não entendia assim. Preferiu disparar
acusações contra o craque, e o pior, afirmar que Cruyff já não tinha qualidade
suficiente para jogar a primeira divisão do futebol holandês. Deve se
arrepender até hoje. Cruyff deu o troco, na mesma moeda:
- “Não há nenhum presidente que me diga o que
tenho que fazer. Troquei o Ajax pelo Feyenoord. Com a raiva que sentimos,
pode-se chegar muito longe”.
E bota longe nisso. Cruyff sabia o que estava fazendo quando
decidiu vestir a camisa do maior rival do Ajax. Marcou 13 gols, conquistou a
Liga, a Copa, e aos 37 anos após receber novamente o título de melhor jogador
da liga holandesa decide encerrar a carreira.
Como alguém que não tem o poder de se separar do futebol, após a
saída triunfante dos gramados, Cruyff passa a trabalhar como diretor técnico do
Ajax, em 1985. Nos três anos seguintes, vira o técnico do clube onde construiu
a carreira. Mais do que títulos, as equipes formadas pelo lendário jogador
holandês são o reflexo do estilo brilhante que ele um dia mostrou com a bola
nos pés. Na primeira temporada como treinador, o ataque do Ajax marca 120 gols
em 34 partidas. Em 1986, é reconhecido pela conceituada revista World Soccer
Magazine, como o melhor técnico do mundo.
Em qualquer posição, Cruyff parecia fazer questão de correr
riscos. Dizem até, que certo dia, quando ainda dirigia o time catalão aceitou
dar folga ao genioso atacante Romário, caso ele marcasse três gols diante do
Real Madrid. Depois do combinado, Romário na mesma noite embarcou para o
Brasil, e Cruyff colocou no currículo nova goleada por 5 a 0 no Real Madrid,
dessa vez, como técnico.
Cruyff foi responsável por grande parte da magia daquela década. O
fato interessante é que o jogador símbolo do “futebol-total” considerado por
muitos a mais revolucionária visão tática do jogo, não carregava o número 10
nas costas. Desde que ganhou o primeiro título com as equipes menores do Ajax,
o menino do subúrbio pobre de Amsterdã fez questão de entrar em campo com o
numero 14 nas costas. Para Cruyff o número escolhido eternizava a idade que
tinha quando descobriu a emoção de se tornar campeão. Não deixava de ser uma
metáfora também, afinal, no tipo de futebol praticado por Cruyff e seus
companheiros as posições não eram fixas. Com ele em campo a magia da camisa 10
estava, na verdade, escondida sob o número 14.
Se a magia
da camisa 10 existe, a estrela de Cruyff não poderia ser ofuscada por nenhum
outro craque do planeta na Copa do Mundo de 1974, na Alemanha, mesmo sabendo
que o número que utilizava não respeitava a mística consagrada pelo rei do
futebol.