A reflexão inspirada em livros
com temáticas mais “complexas” para o leitor “comum” são sempre bem-vindos.
Antropologia, filosofia, psicologia, ciência e tecnologia e sociedade
inspiraram 16 autores a refletir sobre o futebol. O livro “Uma bola no pé e
uma ideia na cabeça: o que o futebol nos faz pensar” (Editora UFRJ e Faperj) está aí, para nos
fazer pensar e entender sobre o esporte número 1 do país.
Abaixo, textos de contracapa, orelhas e trecho do artigo escrito por
Bernardo Oliveira.
Texto contracapa
Multidões se aglutinam em
torno do futebol, essa paixão que faz corpos se agitarem em praias, parques, campos
de terra, gramados, ruas, playgrounds, etc. A bola, as torcidas, os times, os
árbitros, as relações de poder, as competições organizadas e as experiências da
juventude, tudo serve como objeto de pensamento.
O que dizer dos afetos que
ligam as torcidas? Das estratégias dos times em campo e suas atuações? Das atividades
dos árbitros? Das relações de poder que se estabelecem nas federações e nos
campeonatos nacionais? Essas são algumas das questões que instigam os dezesseis
autores reunidos nesta obra, que dialogam com as mais diversas áreas:
antropologia, psicologia, filosofia e estudos de ciência e tecnologia e sociedade.
Texto orelhas
O fenômeno do futebol vem crescendo e atraindo a atenção nas
pesquisas acadêmicas. Temas como futebol e nacionalismo, violência no futebol
e hooliganismo, futebol como um instrumento da política, futebol e processos
identitários e futebol, megaeventos esportivos e planejamento urbano são
somente alguns exemplos de pesquisas e publicações recentes. Como escapar, no
entanto, à armadilha de que o conhecimento
acadêmico faça do futebol uma espécie de simples marionete, falando por meio de
suas principais teses ou teorias? Como fazer que o futebol abra um amplo campo
de pensamento, impondo novas questões, novos temas, novos conceitos (e mesmo
contraconceitos)? São essas as questões que movem o time de autores aqui
reunidos.
Contando com o trabalho de pesquisadores
e pensadores brasileiros e estrangeiros, o livro Uma bola no pé e uma ideia
na cabeça: o que o futebol nos faz pensar busca, de uma forma pioneira,
mudar o estilo de jogo, pela recusa da tomada do futebol como objeto dócil e
por um modo de pensar não sobre ele, mas com ele, fazendo do esporte bretão um
campo privilegiado para analisar alguns elementos estruturantes da sociedade.
Esse "pensar com"
suscita várias trocas de passes com pensadores como Sócrates, Hobbes, Spinoza,
Nietzsche, Deleuze, Gramsci, Lyotard, Latour e Baurnan, entre outros. Porém,
este livro se pretende filosófico menos pelo trabalho desses célebres autores
do que pelo risco de refletir sobre aquilo que o futebol nos traz como
questões: ser torcedor, seus afetos, o jogo, seu estilo, seu acontecimento c os modos de arbitragem. É isso que os autores desejam fazer em escritos com distintas filiações
filosóficas, nacionalidades, universidades, áreas
do saber e - talvez o mais importante - diferentes filiações clubísticas.
Convidamos você, caro leitor, para uma tabelinha pensante pelas linhas
tortuosas do futebol. Que o jogo possa ser franco, aberto, sem retranca ou linha-burra, e que nele todos só tenham a
ganhar.
Sobre os organizadores:
Arthur A. L. Ferreira é professor da UFRJ, doutor
em Psicologia Clínica pela rucsr membro
dos Programas de P?S-graduaçáo em Psicologia e em História das Ciências e das Técn icas e Epistemologia
da UFRJ e pesquisador do CNPq.
André Martins é professor da
UFRJ, doutor em filosofia pela Un
iversité de Nicc e membro do Programa de Pós-graduação em Filosofia
da UFRJ.
Robert Segal é licenciado
em Filosofia, mestre
em Educação pela Uni Rio e doutorando
em Educação pela UFRJ.
Futebol, Acontecimento
Por Bernardo C. Oliveira
O mistério que resguarda a influência do futebol
sobre a vida de uma grande parte da população mundial não corresponde a uma
miríade insondável, tal como imaginam muitos de seus admiradores e detratores.
Basta recorrer às inúmeras investigações que buscam detectar as razões sociais,
culturais, políticas e, sobretudo, econômicas pelas quais se constituíram o
mito e a miséria futebolística. Poderemos perceber que se, por um lado, se sedimentou um imaginário deveras mítico,
cuja previsibilidade o inscreve nos aspectos indeléveis da expressão humana,
por outro, associa-se frequentemente sua existência às maracutaias e à ganância, em suma, ao pior
da política. Aqui também parece valer a máxima pós-capitalista: "É a economia, estúpido!”
Dos estudos mais intrigantes a respeito do
aspecto, por assim dizer, menos nobre do futebol, o precursor Jogo sujo: o mundo secreto da Fifa, compra de
votos e escândalo de ingressos, assinado pelo repórter investigativo inglês Andrew
Jennings (2011), é o resultado de uma pesquisa de sete anos na intimidade dos
homens que controlam o nebuloso mundo do futebol. O livro mapeia e traça a
degeneração da Fifa a reboque da ascensão de um brasileiro, a quem se atribui
todo o projeto de unificação e dominação do futebol em escala mundial: o
ex-esportista brasileiro Jean-Marie Faustin Goedefroid de Havelange. É
intrigante,
porque, apesar de o livro conter provas cabais sobre todas as barbaridades que
denuncia, seus artífices se mantiveram no poder à revelia de processos e
liminares, pois não houve retaliação institucional nem medidas oficiais que coibissem
tais práticas. A situação fica ainda mais complicada quando se sabe que tais
denúncias foram reforçadas pelo livro de David Yallop, Como eles roubaram o jogo, malgrado a tentativa, que
permeia todo o livro, de atribuir aos latino-americanos a responsabilidade pela
corrupção no futebol. Dito e escrito por um inglês, parece piada...
Apostemos em outra perspectiva: não nos ocorreu
adotar a natação ou a bocha, e mesmo o vôlei brasileiro, a despeito de sua
trajetória vitoriosa, para substituir o esporte bretão. Não nos ocorreu adorar outro
esporte, nem a nós nem a tantos outros povos do mundo. A especificidade do
sentimento futebolístico, inseparável da relação que o indivíduo mantém com seu
time do coração, me leva a deixar de lado o tema do desencanto pela política e
abraçar a proposta deste livro: o que se pode problematizar a respeito de uma
possível relação entre a filosofia e o futebol que se afirme, ao mesmo tempo,
com certa liberdade em relação aos terríveis aspectos políticos e históricos,
mas que explique, ainda que paradoxalmente, o maravilhamento produzido por esse
esporte, responsável pela atenção de mais da metade da população mundial?
Eventualmente, em favor do futebol, essa manobra prejudicará alguns temas
filosóficos laterais – por exemplo, a teoria dos afetos em Spinoza. Peço ao
leitor que releve. Em relação ao futebol, somos convocados a atender a uma
superficialidade atenta à pele das coisas.
Ora, ao abordarmos um fenômeno labiríntico como o
futebol, sob a perspectiva crítica da filosofia, convém antes precisar o ponto
de vista sob o qual conduziremos a argumentação. De antemão, devo justificar a
ausência do jogo propriamente – tanto no que diz respeito às regras e ao
desenvolvimento das concepções táticas quanto nos aspectos
"guerreiros" –, pautada por batalhas campais, partidas inesquecíveis
em virtude de reabilitações e resultados imprevistos, disputas acirradas em campos
encharcados, conduzidos por juízes corruptos e infestadas de brigas,
estiramentos, pernas quebradas, doping,
vexames,
craques desmoralizados e muita emoção... Como a final do brasileiro de 1980,
envolvendo Flamengo e Atlético Mineiro, ou a desclassificação do mesmo Flamengo
na Libertadores de 2008, pelas mãos de um artilheiro gordinho chamado Cabanas.
Não esqueçamos a chamada Batalha dos Aflitos, que definiu para o Grêmio o
campeonato da Série B de 2005. São relevantes e marcam a memória com o rastro mítico
do acontecimento futebolístico, mas não implicam necessariamente a intervenção
criadora do craque. Parece-me que, a despeito da
corrupção e das manipulações, a memória e a imaginação, imbricadas em um
delírio mítico decorrente da atuação do craque, são as responsáveis pelo transe futebolístico. Do contrário, o elemento
que decide uma partida dessa natureza é coletivo e, não raro, brutal.
Concentro os argumentos sobre três perspectivas
que me parecem centrais: a mobilização coletiva da torcida – do torcedor
fanático, "doente" ou "curado"; a ação individual-criativa
do craque – responsável pelo que há de insubstituível na dinâmica singular do
jogo; e, enfim, a convergência de individualidade e coletividade no âmago do acontecimento, entendido como o momento em
que a intervenção individual se conecta à coletividade, tanto em relação ao
desenrolar da partida quanto em relação à memória da torcida. "Desse entroncamento, formado
pela convergência entre individualidade, coletividade e acontecimento,
configura-se o substrato mítico do futebol, sucedâneo do pharmakós grego, delírio coletivo que tem o poder de expurgar
ainda que momentânea e imaginariamente, os males da cidade. Ativada pela
intervenção individual do craque, sedimentada sobre a memória e atualizada
coletivamente a todo instante, a mítica futebolística prolifera pelas ruas,
alheia às pressões externas e aos eventuais maus resultados. Na verdade, isso
ocorre para a grande maioria dos torcedores, o que se reflete cruelmente em
nossa cultura cristã pelo fato de que o "vira-casaca"!' é considerado
um ser desprezível, comparável a Judas Iscariotes. (...)
Sobre o autor
do texto:
Bernardo C.
Oliveira Pós-doutorado, IFCS/UFRJ. Doutor em Filosofia, PUC Rio. Professor da Faculdade
de Educação da UFRJ. Crítico, pesquisador e produtor.
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