Em tempos que só se ouve falar em corrupção, a
literatura esportiva, por intermédio do autor Brett Forrest, nos traz Jogo Roubado - A Caça as Responsáveis Pela Manipulação de
Resultados de Partidas de Futebol (Editora Paralela). Para comprovar que
não somos únicos na questão corrupção, pelo contrário, parecemos ser “puros”,
quando comparados aos casos revelados nesse livro espetacular.
Literatura na Arquibancada disponibiliza abaixo, sinopse
e o capítulo de abertura do livro.
Sinopse
(da editora):
“Forrest detalha de forma inédita como uma máfia internacional aliada a cartolas sem escrúpulos manipulam resultados, compram jogadores e transformam a paixão de milhões de torcedores pelo mundo em meras ilusões” – Jamil Chade
Estádio khalid bin Mohammed
Sharjah, Emirados Árabes Unidos, Março de 2011
O jogo estava marcado para aquele dia 26 de março
de 2011 e era um amistoso entre as seleções do Kuwait e da Jordânia. O tipo de partida
que ocorria centenas de vezes por ano em todo o mundo, com pouca repercussão e
poucas consequências. Técnicos de equipes nacionais muitas vezes encaravam
essas disputas como treinos um pouco mais pesados. Por outro lado, grupos
criminosos que iam do sudeste da Ásia até a Europa Oriental tinham interesse e
consideravam tais partidas os pilares de um extenso empreendimento comercial.
A partida entre Kuwait e Jordânia se formava na
linha de frente de uma guerra que estava apenas começando. De um lado estavam
os grupos criminosos organizados, que lucravam centenas de milhões de dólares —
se não bilhões, ainda assim um pingo no oceano de trilhões
de dólares em apostas de futebol —, através da
manipulação de resultados dos jogos. Do outro lado estavam os dirigentes do
futebol, que começavam a aceitar que a manipulação de resultados era o
escândalo da nossa época, uma ameaça real para o esporte mais popular do mundo.
Quando dois investigadores da Fifa entraram no estádio
Khalid Bin Mohammed, pouco antes da hora do jogo, não havia ninguém por lá.
Tinha sido um desafio reunir informações confiáveis sobre a partida, até mesmo
para a Fifa, que a havia autorizado. A data, o horário de início, o local, nada
havia sido confirmado. Os sites das seleções do Kuwait e da Jordânia forneciam
informações conflitantes. O mesmo ocorria nos sites de apostas. Algumas
publicações até mesmo listavam o jogo como cancelado. Foi essa a impressão que
tiveram os dois homens da Fifa, enquanto passavam pelos portões abertos do
estádio. Ninguém estava vendendo ingressos. As arquibancadas estavam vazias. Os
investigadores da Fifa sentaram-se em um dos setores da arquibancada e notaram
que não havia câmeras, nem unidades móveis de tv, como de costume. A partida
não havia sido anunciada na imprensa local. Em uma era de constante cobertura
jornalística e divulgação de informações, parecia que aquele jogo aconteceria
apenas no mundo da imaginação.
Por fim, os jogadores entraram no estádio, assim
como alguns torcedores. Os agentes da Fifa perceberam alguns homens caminhando
pelas beiradas do campo e os reconheceram: um deles era de uma empresa de
promoções dos Emirados, outro de uma empresa semelhante no Egito. Tinham
ajudado a organizar o jogo, mas não eram essenciais na investigação.
Na verdade, a Fifa estava interessada nos arquitetos
dessa operação, um grupo notório de Cingapura que operava de forma despercebida
em dezenas de países em todo o mundo. Os investigadores viram quando dois conhecidos
corruptores cingapurianos entraram no estádio e se sentaram na seção vip. A partida
estava para começar.
Essas informações levaram os investigadores da Fifa
até Sharjah. Eles planejavam entrar sem aviso prévio nos vestiários durante o
intervalo e ameaçar suspendê-lo, e até mesmo processá-lo, a menos que a segunda
metade do jogo fosse disputada de maneira honesta. Embora os dois funcionários
da Fifa tenham tentado contato com os funcionários da Associação de Futebol dos
Emirados Árabes Unidos, suas ligações e e-mails não foram respondidos. Por
enquanto eles haviam sido relegados às arquibancadas, sem a credencial adequada
para visitar outras áreas do estádio. Eles especularam que as autoridades do
futebol dos Emirados poderiam ter conhecimento da próxima combinação de resultados.
Muitas federações nacionais de futebol ao redor do mundo tinham aderido ao
lucrativo negócio de combinar o placar de partidas de futebol com o grupo de
apostadores de Cingapura.
O objetivo da corrupção de resultados era fraudar
as apostas. Corruptores envolviam jogadores no esquema para que estes
permitissem que a outra equipe fizesse gol. Os infratores subornavam árbitros
para distribuir cartões vermelhos e pênaltis, influenciando, assim, os resultados
das partidas. O grupo de apostadores fazia suas apostas com base no calendário
de jogos. Enganavam as casas de apostas, que estavam sempre um passo atrás
deles, e os torcedores, que acreditavam que o que estavam vendo era real. E também
havia o jogador, muitas vezes coagido a participar. Quando a partida entre Kuwait
e Jordânia começou, a atividade no mercado de apostas internacional revelou que
a corrupção estava mesmo acontecendo.
Em algum momento da década de 1990, Joseph “Sepp”
Blatter, presidente da Fifa, começou a classificar alguns jogadores de futebol e
gerentes de todo o mundo coletivamente, em comentários públicos, como a
“família do futebol”. A Fifa, que tem sede em Zurique, é a organização
responsável pela realização da Copa do Mundo a cada quatro anos. No meio da
colcha de retalhos de federações e confederações que controlam e administram o
futebol, é a organização que carrega o maior peso. É para ela que a maioria das
pessoas envolvidas com futebol recorre a fim de resolver uma disputa ou emitir
um comunicado. Mas a Fifa não é a guardiã da boa vontade que a terminologia benevolente
de Blatter sugere. A Fifa é registrada na Suíça como uma instituição sem fins
lucrativos, mas não funciona como tal, com uma renda de 1 bilhão de dólares por
ano, múltiplos acordos de patrocínios corporativos e contratos de tv. Ela
também não se comporta como uma empresa moderna, com tradicionais fiscalizações
corporativas e balanços. Na verdade, a Fifa reside em algum lugar impreciso no
meio disso, o que, para alguns de seus mais altos executivos, é completamente
aceitável, sendo tal ambiguidade um facilitador para muita exploração.
Na verdade, esta é a “família” moderna do futebol: uma
operação chamada A Última Aposta abalou a Federação italiana de Futebol, uma
vez que quinze clubes e 24 jogadores, técnicos, árbitros e funcionários foram
implicados em corrupção de resultados. A polícia turca prendeu aproximadamente
cem jogadores, enquanto a Federação Turca de Futebol excluiu seu clube, o
Fenerbahçe, da Liga dos Campeões da Uefa, questionando a forma como a equipe
conseguiu vencer dezoito dos últimos dezenove jogos e levar o título nacional. A
Associação de Futebol do Zimbábue baniu oitenta jogadores da seleção nacional
com base na suspeita de fraude de resultados. Lu Jun, o primeiro árbitro chinês
a apitar um jogo da Copa do Mundo, foi preso por cinco anos e meio por aceitar
subornos no valor total de 128 mil dólares, reforçando o significado de seu
apelido, “apito de ouro”.
Na Coreia do Sul, promotores acusaram 57 pessoas
por fraude de resultados; dois jogadores cometeram suicídio posteriormente, em
vez de enfrentar a situação. Dois árbitros brasileiros receberam ordem de prisão
e a Confederação Brasileira de Futebol foi multada em 8 milhões de dólares por
sua participação em uma série de jogos manipulados. Logo depois de oito
estonianos receberem uma suspensão de um ano, um tribunal processou outra dúzia
por corrupção. A polícia alemã gravou criminosos croatas discutindo por
telefone seus planos para corromper jogos no Canadá. O presidente da Associação
de Futebol da China atualmente cumpre pena em uma colônia penal específica por corrupção
de resultados de jogos de futebol. A polícia húngara prendeu mais de cinquenta
pessoas por corrupção e o diretor de um clube se suicidou quando foi descoberto.
Os tchecos estão processando dois árbitros por corrupção. A equipe nacional
cambojana manipulou sua própria derrota numa série de dois jogos com o Laos,
que qualificava um dos times para a Copa do Mundo de 2014.
O crime organizado na China e na Itália teve a liga
belga como alvo durante anos. A liga da Bósnia é alvo de criminosos do próprio país.
A Suíça baniu nove jogadores acusados de manipulação de resultados. Promotores
italianos fizeram acusações de corrupção contra o meio-campo Gennaro “Rino” Gattuso,
popular jogador da seleção campeã da Copa do Mundo de 2006 e ex-astro do Milan.
Gattuso disse que estava preparado “para se suicidar em praça pública se fosse condenado
pelo crime”. Dois escândalos abalaram o futebol inglês no outono de 2013, um
deles envolvendo uma quadrilha de Cingapura e o outro um ex-jogador da Premier League.
A Alemanha está levando adiante o processo do caso mais famoso de manipulação
de resultados, em Bochum, que revelou que uma rede criminosa de corruptores tem
afetado o futebol em todos os cantos do mundo na maior parte da última década.
Será que a situação está tão ruim assim? Sem dúvida
alguma. Atualmente, há em curso investigações policiais sobre corrupção de resultados
de jogos de futebol em mais de sessenta países, o que significa um terço do
mundo. Metade das associações nacionais e regionais afiliadas à Fifa relatou
incidentes desse tipo. Dá para imaginar então a quantidade de jogos manipulados
que devem ter acontecido com o conhecimento apenas dos infratores. A manipulação
de resultados no futebol internacional tornou-se uma epidemia, assim como o
tráfico de drogas, a prostituição e o comércio de armas ilegais. Isso está acontecendo
em um esporte no qual os jogadores andam do vestiário até o campo de mãos dadas
com crianças, como se o futebol fosse um refúgio da inocência e da pureza
moral. Provas irrefutáveis apresentam um argumento contraditório: o jogo mais
popular do mundo é também o jogo mais corrupto do mundo.
A culpa é dos jogos de azar. O mercado de apostas
esportivas inflou na última década, com sua porção ilegal rivalizando antigas
organizações criminosas. A Interpol afirma que 1 trilhão de dólares são apostados
em jogos de futebol por ano. Agentes de apostas asiáticos sugerem um montante
muito maior. A indústria do futebol em si — os contratos de tv e patrocínios
que compõem o negócio do jogo — está estimada em um valor anual de 25 bilhões
de dólares.
Sem fiscalização e impulsionada pelo lucro fácil, a
corrupção que ocorre através de resultados tem crescido de forma descontrolada.
Clubes de futebol maiores submetem-se a clubes menores que estão tentando
evitar o rebaixamento para uma divisão inferior. Técnicos, jogadores, árbitros
e funcionários do governo conspiram para esse tipo de corrupção. Jogos
internacionais de qualificação resultam em placares ultrajantes: 11 a 1, 7 a 0.
A oportunidade de lucro fácil imediato gerou criativas tentativas de
manipulação de resultados. Em 3 de novembro de 1997, em uma partida do campeonato
inglês contra o Crystal Palace, o time do West Ham marcou o gol de empate após
65 minutos de jogo. De repente, as luzes do estádio se apagaram. O mesmo aconteceu
quando o Wimbledon jogou contra o Arsenal um mês depois. Uma quadrilha com
membros da China e da Malásia havia pagado os técnicos dos estádios para cortar
a energia quando o jogo tivesse alcançado o placar combinado. A crescente
ganância fez com que os próprios jogadores tomassem medidas severas para que a
manipulação de resultados acontecesse. Em um jogo na Itália, em 2010, um
goleiro teria drogado os próprios companheiros de equipe no intervalo para que
seus adversários pudessem ganhar a partida.
Os jogadores, na verdade, não têm grande
importância. Eles são apenas ferramentas dos chefes dos grupos de apostadores
que operam nas sombras. Para esses criminosos, o futebol internacional tem sido
uma zona livre para atividades ilícitas, um território de oportunidades infinitas
para manipulações. Cada um dos cerca de duzentos países que a Fifa reconhece
tem uma liga profissional e um time nacional, que é classificado em diversas
faixas etárias. O número total mundial de times de futebol nacionais
profissionais ultrapassa os 10 mil. Multiplique este valor pelo número de
jogadores por equipe, em seguida adicione os árbitros, dirigentes de clubes e
administradores da federação e perceba como os pontos de infiltração para
corruptores de jogos são abundantes e estão em constante mudança de temporada
para temporada. Não existe um controle centralizado, nem uma comissão disciplinar.
O futebol internacional é uma rede administrada sem regras rígidas, em
diferentes idiomas, culturas, leis, economias e moedas do mundo todo, muitas
vezes sem conexão alguma. Essa particularidade dá ao jogo um encanto especial.
Também permite que motivações obscuras floresçam. Grupos criminosos de
apostadores se infiltraram de forma profunda no negócio do futebol, manipulando
o mercado de apostas para sua própria vantagem, e puseram em dúvida o resultado
das partidas em todo o mundo.
Existem várias maneiras de adulterar os resultados
de uma partida. Um dos mais populares é apostar no número total de gols marcados.
Se o agente de apostas lista o placar máximo/mínimo em 2,5 e um corruptor
aposta no resultado máximo, ele vai manipular os jogadores ou o árbitro para
assegurar que três ou mais gols sejam marcados no jogo. Se apostar no mínimo,
então pedirá dois ou menos gols.
O grupo de apostadores operava no mercado de
apostas in-game, que permite apostas durante o jogo. Na abertura do jogo de Sharjah,
a 188Bet, uma das maiores casas de apostas do mundo, começou a ter uma
preponderância de apostas que apoiavam três gols ou mais. As chances para três
ou mais gols na 188Bet começaram em 2,0, ou uma probabilidade de 50%. Aos
dezoito minutos, com o jogo ainda sem gols, as chances de três ou mais gols
diminuíram para 1,88, ou 53%. Esses números mostravam um detalhe revelador. No
início da partida, com noventa minutos para marcar três gols, a 188Bet
calculava a chance de três ou mais gols em 50%. Paradoxalmente, dezoito minutos
depois, a chance de três ou mais gols era maior, mesmo havendo menos tempo,
isto é, restavam apenas 80% do jogo para marcar gols.
Os agentes de apostas da 188Bet não haviam
determinado que um resultado de três ou mais gols era agora mais provável. O que
eles fizeram foi mover as chances, em uma reação à esmagadora quantidade de
apostas que estavam recebendo para três ou mais gols. O objetivo do agente é
nivelar suas apostas, tomar medidas equivalentes em ambos os lados de uma
proposta a fim de reduzir sua exposição e manter sua margem de lucro. E um
apostador sabe que sua exposição é maior quando realiza uma grande quantidade
de ações sobre uma proposta sem muita lógica. E ele sabe que o resultado do
jogo foi manipulado, assim como os agentes de apostas da 188Bet certamente
sabiam, enquanto calculavam as probabilidades in-game para o jogo de Sharjah.
Da arquibancada, os investigadores da Fifa pensaram
em tentar abrir caminho e ir até os vestiários para confrontar o árbitro e os
jogadores. Enquanto faziam isso, viram o homem da empresa de promoções dos Emirados
subir as escadas da arquibancada vip. E falar com os corruptores de Cingapura. A
Fifa descobriu mais tarde que o árbitro da partida havia recebido a informação
de que o jogo estava sendo observado. Os jogadores voltaram ao campo para o
segundo tempo e os cingapurianos deixaram o estádio. No meio do segundo tempo,
o placar ainda estava 1 a 1.
De repente, aos 71 minutos de jogo, as apostas se
inverteram. Não havia mais apostas na 188Bet para mais de três gols, embora
restassem dezenove minutos de jogo em que um terceiro gol pudesse ser marcado. Avisados
de que investigadores da Fifa estavam no estádio, o grupo de apostadores
cancelou a manipulação dos resultados e retirou suas apostas. A partida
terminou com o empate de 1 a 1.
A partir de conversas que a equipe de segurança da
Fifa coletou posteriormente em Cingapura, os membros dos grupos de apostadores estavam
confusos e se perguntando quem teria vazado as informações da operação em Sharjah.
Os apostadores haviam perdido cerca de 500 mil dólares naquela partida, segundo
a inteligência da Fifa. Considerando o tamanho do mercado de apostas de
futebol, não era um número alto. No entanto, o evento em Sharjah foi
significativo. Ninguém nunca havia lutado contra o grupo antes. Claro, havia
acusações e investigações efetuadas depois de o crime ter sido cometido e os
lucros auferidos. Mas a Fifa nunca havia conduzido uma operação de combate em
tempo real contra as manipulações de resultados de jogos de futebol. Os
criminosos asiáticos e seus parceiros europeus haviam operado livremente por
uma década. Mas as coisas estavam prestes a mudar.
Sobre o autor:
Brett Forrest
é um colaborador da ESPN The
Magazine e já publicou textos em publicações como Vanity Fair, National
Geographic, The Atlantic, e New York Times Magazine. Ele já
morou na Rússia, na Ucrânia e no Brasil.