Não faz nem um ano que ele partiu (julho 2014), mas a
saudade é imensa. Dr. Osmar de Oliveira, além de médico respeitadíssimo, dentro
e fora dos gramados ou quadras esportivas, criou uma carreira de sucesso no
jornalismo esportivo, como narrador e comentarista. Durante décadas, convivendo
com estrelas e anônimos do esporte brasileiro, Dr. Osmar acumulou milhares de
histórias e estórias sensacionais.
Em 2008, a Companhia Editora Nacional lançou um livro “despretensioso”,
pequeno em tamanho, mas sensacional no resultado: “Causos do Doutor Osmar”.
Um livro de pequenas histórias, “causos”, a maioria
contada com bom humor, sarcasmo, ironia, no tom certo de todo bom contador de
histórias, como era o Dr. Osmar.
Literatura na Arquibancada resgata abaixo algumas dessas “pérolas”.
A morte do cartola
Botafoguense fanático, Rivadávia Correa Meyer foi
presidente da CBD (atual CBF) entre 1943 e 1955. Imparcial e empreendedor, foi
um cartola respeitável.
Mesmo após desligar-se de cargos diretivos, não abandonou
o vício pelo futebol e, numa final de campeonato carioca, década de 1970, lá
estava ele nas tribunas do Maracanã acompanhado pelo filho e alguns amigos.
Antes do jogo, um minuto de silêncio. Não se sabe quem deu a informação ao
locutor do estádio, que com voz pausada e melancólica anunciou:
– A Adeg (Administração dos Estádios da Guanabara, hoje
Suderj) lamenta informar o falecimento neste domingo do saudoso dirigente
Rivadávia Correa Meyer.
O cartola tomou um susto e esbravejou. Um de seus
acompanhantes, homem despachado, saiu correndo em direção à cabine de som.
Chegou esbaforido e raivoso, chamou o locutor de louco e foi dizendo que
Rivadávia estava vivo e assistindo à partida. “Você vai ser despedido do
serviço público, mas antes disso corrija seu erro, seu irresponsável.” Pálido e
estupefato, vendo a porta aberta, o infeliz locutor saiu correndo e sumiu pelas
rampas mais próximas.
Um funcionário que levava cafés e refrigerantes a todas
as cabines de rádio assistiu a tudo. Solícito e com ar de conteúdo, disse que
havia sido locutor no Nordeste e prontificou-se a assumir o microfone da cabine
de som, afirmando ao amigo do cartola: “Fique tranquilo que eu desminto essa
notícia”. O amigo de Rivadávia sentiu confiança, voltou à sua cadeira e
sossegou o ex-dirigente, pedindo que ele aguardasse um pouco que o mal
entendido seria consertado.
Minutos depois, lá vem o locutor substituto:
– A Adeg informa: o sr. Rivadávia Correa Meyer, ao
contrário do que se informou, não morreu MAIS.
Kafunga era
fanático
Olavo Leite Bastos, o Kafunga, foi goleiro do Clube Atlético
Mineiro durante vinte anos, jogou 714 partidas e foi campeão mineiro onze
vezes. É até hoje uma das maiores glórias do Galo. Encerrada a carreira,
tornou-se comentarista esportivo e seu programa Papo de Bola era líder de audiência. Ingressou na política e
elegeu-se vereador.
Quando comentava jogos do Atlético, procurava a
imparcialidade, contrariando o fanatismo pelo clube do coração. Não aguentava
ver jogadores sem garra ou de pouca categoria vestindo aquela camisa que ele
tanto adorava. Atribui-se a ele a expressão “cabeça de bagre”, que é falada até
hoje em todo País.
Veio um jogo decisivo contra o Cruzeiro e lá estava ele
comentando pelo rádio, suando frio e roendo unhas. Para o Atlético, bastava o
empate e o 0 a 0 estava sendo conseguido a duras penas. Quase no final da
partida, Atlético na retranca e uma bola é cruzada para a área.
Cabeçada, o beque desvia. Um arremate, bate na zaga,
outro chute, goleiro caído, novo desvio. O locutor já quase sem fôlego pela
emoção do lance.
O nervosismo do comentarista fez com que deixasse seu
microfone aberto e, em meio à narração, escutou-se claramente a voz de Kafunga:
– Ih, embocetou tudo na área do Atlético!
Ele nem percebeu o que acabara de dizer e, após o lance,
o locutor lhe deu um cutucão e fez uma pausada e compreensível linguagem
labial: “E-m-b-u-c-e-t-o-u?”
Kafunga se deu conta do que falara e, um pouco mais
calmo, emendou de viva voz:
– Mas embucetou no bom sentido!
Ponta-direita
burro
João Avelino foi um técnico prático e vencedor. Sabia
como ninguém fazer a cabeça de seus jogadores. Quando chegou ao São Bento de
Sorocaba em 1969, logo percebeu que seus goleiros eram muito baixos. Chamou o
homem que cuidava do campo, mandou serrar cinco centímetros de cada trave para
o travessão ficar mais baixo.
Resolvido esse problema, passou a orientar os cruzamentos
de seu ponta-direita Carlinhos, que era veloz, mas não calculava direito as
distâncias.
Ele mesmo lançava o ponta, pedia que corresse com a bola uns vinte
metros e, em seguida, cruzasse para a área porque os outros atacantes estavam
chegando. Mas nada dava certo.
Carlinhos calculava mal aquela distância e
cruzava antes ou chegava a sair com a bola pela linha de fundo.
Certo dia, depois de muita insistência e com a bronca do
centroavante, João Avelino teve a grande ideia.
Percebeu que em todas as
laterais do campo havia placas comerciais da cidade. Então, foi até o ponta,
pediu para ele se virar para as placas e disse:
– Meu filho, você pega a bola na Papelaria do Rosário,
sai correndo e, quando chegar na
Pastelaria do China, você cruza, certo?
Depois de alguns ensaios, cabeça olhando para a bola e de
vez em quando para as placas, Carlinhos passou a acertar todos os cruzamentos.
Saldanha me salvou
Trabalhei com João Saldanha na Copa de 90 na Itália. Foi
um dos maiores jornalistas esportivos de todos os tempos. Um gênio, sem
exageros. Vítima de uma grave doença pulmonar, morreu em Roma, dez dias após a
Copa. Como médico, cuidei dele durante todo o torneio. Mesmo doente, comentou
todos os jogos para os quais estava escalado.
Estávamos na extinta TV Manchete, que não era um primor
de organização. Em 14 de junho, chegamos ao estúdio em Roma uma hora antes do
jogo Romênia x Camarões, que seria jogado no Estádio Della Vittória, em Bari.
Da porta principal do Centro de Imprensa até nossos estúdios, empurrei a
cadeira de rodas do João por uns trezentos metros, e vários jornalistas mais
antigos de inúmeros países cumprimentaram Saldanha naquele trajeto. Vivi esses
momentos em vários jogos, misturando dor pelo sofrimento do amigo e orgulho
pelo respeito com que o tratavam.
A cabine de transmissão era muito pequena, mal cabiam
duas pessoas. A cadeira de rodas não passava pela porta e João ficou ali mesmo,
calmo e responsável. Sentei e comecei a fazer anotações sobre a partida e os
jogadores. Iríamos entrar no ar quando as equipes entrassem em campo. Sem
qualquer motivo, meia hora antes do jogo, a vinheta anunciou o início da transmissão
e nossa TV mostrava uma imagem parada do estádio, destacando uma arquibancada
com a cobertura sustentada por pilares e vigas de ferro.
Fui falando até onde pude. Destaquei Popescu, Raducioiu,
Hagi, N’Kono, Oman Biyk e Milla. João Saldanha, sentindo minha dificuldade,
bateu generosamente em meu ombro e pediu a palavra. Por uns dez minutos, deu
uma aula sobre a construção daquele estádio, lembrou que aqueles ferros eram
trilhos da antiga estrada de ferro de Bari, falou dos italianos que ergueram as
arquibancadas e da veneração que tinham por Mussolini etc. etc.
Eu estava pasmo pelo conhecimento dele e agradecido pela
ajuda do grande amigo. Pelo fone, recebo a ordem de chamar um comercial.
Aliviado, com ternura, disse ao João:
– Obrigado, amigo.
E ele, com um sorriso que lhe era difícil pela febre e
pelas dores:
– Não precisa agradecer, eu inventei tudo isso!