Quem escreveu duas biografias como as de Paulo Machado de
Carvalho e de Tarso de Castro, além de ser vencedor de um prêmio Jabuti, merece
ser lido, nem que seja para a crítica negativa. O que não é o caso de Tom
Cardoso, que marcou mais um gol de letra, agora, com a biografia do craque
filósofo da bola, “Sócrates – A história e as histórias do jogador mais
original do futebol brasileiro” (Editora Objetiva).
Sinopse (da
editora)
Ídolo do Corinthians, capitão da mítica Seleção da Copa
de 82, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira deixou sua marca
também fora dos gramados.
O futebol era pequeno demais para a grandeza de suas
ideias, e ele se engajou intensamente na vida pública do país. Idealista e
rebelde, o meio-campista genial que desafiava as autoridades e incomodava os
cartolas carregava no nome a paixão pelo Brasil, que se viu refletida na
participação ativa na campanha das Diretas Já. Formado em Medicina, foi, ao
lado de nomes como Wladimir e Casagrande, um dos líderes da Democracia
Corintiana, movimento com repercussões políticas, esportivas, sociais e
culturais.
O mais velho dos seis filhos de seu Raimundo, um vendedor
de rapadura apaixonado por filosofia grega, Sócrates queria mexer com as
estruturas do país. Em campo, o ritmo de jogo cadenciado, a calma, a elegância
e o temperamento frio atraíam admiradores e críticos. Fora dos gramados, a
coerência, a postura contestadora, a transparência e as posições firmes
igualmente conquistavam entusiastas e desafetos.
Revelado no Botafogo de Ribeirão Preto, consagrou-se no
Corinthians, por onde foi bicampeão paulista em 1982 e 1983. Formou com
Palhinha, primeiro, e Casagrande, mais tarde, parcerias inesquecíveis. Avesso
às convenções, viveu uma vida de excessos, coerente com a maneira como gostaria
de ser lembrado: “Se tivesse me dedicado mais, não seria uma pessoa tão
completa como sou agora.”
De
jaleco no Pacaembu
Por Tom Cardoso
Não era a primeira vez que Arildo buscava Sócrates
no campus de Ribeirão Preto da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP). Quase sempre era para pegá-lo para que ele participasse a tempo do
treinamento da tarde. O motorista nunca entendera como alguém poderia conciliar
atividades tão distintas como estudar Medicina e jogar bola profissionalmente.
O garoto nem parecia jogador de futebol. Os pés eram pequenos, tamanho 41, não combinavam
com a altura, 1,91metro. Era engraçado vê-lo correr, tentando se
equilibrar no próprio corpo.
O mais curioso de tudo, pensava Arildo, era que
aquele magrelo, como todos gostavam de chamá-lo, jogava uma barbaridade. Ele nunca
tinha visto talento igual. Na cidade, todos sabiam que Geraldão só se tornara
artilheiro do Campeonato Paulista de 1974 por causa dos lançamentos e passes
cirúrgicos do aspirante a médico — o centroavante do Botafogo devia a eles pelo
menos 80% dos 23 gols marcados. A maneira com que jogava era original.
Eliminara o esforço de girar o corpo, erguer a cabeça e fazer o passe, abusando
dos toques de calcanhar. O recurso não era uma novidade no futebol, mas a forma
com que ele o utilizava, com espantosa eficiência e objetividade, sim, era
difícil de se ver. E o jeito de finalizar, então. O chute saía sem força,
rasteiro, no cantinho do goleiro. A bola parecia que não ia entrar, mas
entrava. Diziam que o estilo de jogo lembrava e muito o de um ex-craque do
Vasco, também de nome esquisito, “Ipojucan”, tão alto, magro e talentoso quanto
o garoto.
Dizia que a Medicina era prioridade, mas todos
sabiam que ele tinha outras também. Quantas vezes, no meio da tarde, em pleno treinamento,
ele encontrara Sócrates tomando cerveja com amigos no Jangada. E fumando como
uma chaminé.
Sócrates já esperava Arildo na entrada do campus,
como combinado.
Estava de jaleco branco, imundo, sentado na
escadaria, fumando calmamente. Não parecia ansioso por causa da viagem e do
pouco tempo que teriam para chegar ao Pacaembu.
— E aí, seu Arildo? Vamos nessa?
— Cadê o uniforme, Sócrates?
— Deixei com o Sebinho, no clube. Ele levou para
São Paulo.
— Isso não vai dar certo...
— Seu Arildo, no caminho vamos parar para tomar uma
gelada?
— Tá maluco, garoto?
— Preciso me hidratar.
— Com cerveja? E larga esse cigarro, sô!
— Então, garoto, vai virar doutor e largar o
futebol?
Se fosse possível, Sócrates conciliaria para sempre
as duas profissões.
Seria um bom médico, de preferência em algum
hospital na periferia de Ribeirão, e jogaria apenas aos fins de semana. Nada
mais longe de sua realidade. Desde que entrara para a universidade, em 1972,
ano que subira para o time principal do Botafogo, ele se desdobrava para
agradar ao mesmo tempo o pai, que exigia prioridade nos estudos, e os
dirigentes do clube, sempre insatisfeitos com a sua ausência nos treinamentos.
Era mais difícil ludibriar o pai. A marcação do velho Raimundo Vieira era
cerrada, dura, homem a homem.
Sócrates nunca mais se esqueceu do dia em que
tentara enganá-lo.
Era um domingo e o pai o deixou na porta do
cursinho Cesar Lattes para ele fazer o simulado do vestibular de Medicina.
Sócrates nem chegou a entrar na sala. Caminhou de lá até o estádio do Botafogo,
onde ocorreria a final do Campeonato Juvenil de Ribeirão Preto. Era o tipo de
jogo que Sócrates não gostava de perder, um Come-Fogo, o nome dado ao maior clássico
da cidade, disputado pelos dois principais clubes, o Comercial e o Botafogo. O
garoto de 17 anos acabou com o jogo, marcou dois gols, deu o título ao Botafogo
e voltou para casa com os cadernos debaixo do braço.
Não escapou da bronca. O pai descobriu tudo: estava
na arquibancada.
O supervisor técnico do Botafogo, Milton Bueno, o “Tiri”,
que havia combinado com Sócrates aguardá-lo do lado de fora do estádio, até
meia hora antes de a partida começar, não estava mais lá. Arildo desesperou-se:
— Porra, e agora? Tanta correria pra nada.
— Pode voltar pra Ribeirão, seu Arildo. Eu vou
entrar.
— Como?
— Vou comprar ingresso. Lá dentro eu me viro.
Tchau!
Sócrates partiu correndo, de jaleco branco, bolsa a
tiracolo, em direção à bilheteria. Comprou ingresso para a arquibancada, entrou
pelo portão principal e passou a perguntar onde ficava o vestiário do time
visitante.
Um funcionário apontou para o lado esquerdo, em
direção ao tobogã, o setor mais popular do estádio.
— Fica ali embaixo.
Sócrates acelerou o passo com o rosto quase colado
ao alambrado, na esperança de avistar algum diretor do Botafogo. Não viu
ninguém. Pensou em pedir para um repórter de alguma rádio avisar ao árbitro, já
em campo, que ele estava atrasado, mas que em cinco minutos ficaria pronto para
o jogo. Desistiu: aquilo não faria o menor sentido. Passou a correr, desesperado,
rumo ao portão que dava acesso ao vestiário do Botafogo, embaixo do tobogã, já
tomado pela barulhenta torcida corintiana. Um funcionário do Pacaembu vigiava a
entrada. Sócrates achou melhor dizer a verdade.
O funcionário do Pacaembu não teve dúvidas: só
podia se tratar de algum paciente foragido do setor psiquiátrico do Hospital
das Clínicas.
Aquele sujeito não parecia nem médico, muito menos
jogador de futebol. Como alguém podia jogar bola sendo tão magro e tão alto? E
o pezinho de bailarina? E que história maluca era aquela? O cara tinha comprado
ingresso e queria entrar em campo para jogar? Só podia estar em
pleno surto psicótico. O jeito era não contrariar. Quem sabe o cara ia embora.
— Está bem, craque. Em qual posição você joga?
— Estou falando sério. Preciso entrar logo!
— Você não está bem...
— Vai até o vestiário do Botafogo e avisa que o
Sócrates chegou.
— Sócrates?
— Sim, Sócrates. Por quê?
— Isso lá é nome de jogador de futebol, garoto?
— Porra, diga que o Sócrates chegou!
Sobre o autor:
Tom Cardoso,
nascido em 1972, é jornalista, com vasta passagem pela imprensa paulistana.
Autor das biografias do empresário Paulo Machado de Carvalho (O Marechal da Vitória) e
do jornalista Tarso de Castro (75KG
de músculos e fúria), foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti 2012
com o livro-reportagem O
cofre do dr. Rui, que narra o assalto ao cofre de Adhemar de
Barros, em 1969, comandado pela Var-Palmares.
Se alguém me perguntar qual é o meu ídolo no futebol em qualquer tempo?
ResponderExcluirRespondo rápido: Sócrates.
Sempre admirei o atleta e o cidadão.
Maravilha.
Beijão André.