Real Madrid. Um clube histórico,
que em sua longa trajetória teve também times históricos. Mas entre tantos, um
marcou definitivamente não somente sua história como também a do mundo dos
negócios no futebol mundial.
Qual amante do que se estabeleceu
chamar de futebol-arte não admirou, mesmo não sendo torcedor, o Real Madrid
formado a partir do ano 2000 com os galácticos Zidane, Beckham, Roberto Carlos, Figo e companhia?
É essa história que o jornalista
e escritor John Carlin investigou e transformou no livro “Anjos Brancos – Entre o Céu e o Inferno e Os bastidores do Real Madrid”
(Ed. Relume Dumara, 2006).
John Carlin é autor também de outros dois livros importantíssimos.
Um, a biografia do tenista Rafael Nadal. Outro, “Conquistando o inimigo”, base para o roteiro do filme Invictus, que narra a vida de Nelson Mandela como presidente eleito da África do Sul, sua luta pelo fim do regime do Apartheid, até a final da Copa do Mundo de Rúgbi entre o Springboks (seleção da África do Sul) e o All Blacks (seleção da Nova Zelândia).
Introdução
Por John Carlin
Eu fui à África escrever sobre a epidemia de Aids, mas as
pessoas só queriam saber de David Beckham e Real Madrid. Isso não deveria me
surpreender. Mal se passara uma semana daquela que seria – com a possível
exceção do início da guerra no Iraque – a notícia de maior impacto mundial de
2003: a transferência do jogador de futebol mais glamoroso do mundo para o
clube mais glamoroso do mundo. Mas o que surpreendeu, o que me deixou de boca
aberta, estupefato, enquanto o micro-ônibus em que eu estava chacoalhava e
pulava pela maior favela de Nairóbi, o labirinto infestado de Aids de Majengo,
foi o conhecimento profundo de meus companheiros de viagem; os mínimos detalhes
em que as 12 outras pessoas no veículo discutiam não apenas a transferência de
David Beckham do Manchester United, mas o outro grande assunto do dia: por que
motivo o presidente do Real Madrid tinha afastado o técnico do time.
– Alguém, qualquer um aí, entende por que Florentino
Pérez se livrou de del Bosque? – perguntou um homem sentado na frente, junto ao
motorista. – É que eu não vejo lógica nisso – disse ele, girando o corpo para
falar com os passageiros reunidos.
O homem, eu saberia mais tarde, era um jovem médico
queniano. As outras pessoas no micro-ônibus, todas as quais falavam inglês,
eram em sua maioria da área de saúde e estavam sendo levadas, como eu, para uma
clínica no centro de Majengo onde eles estavam realizando testes com um grupo
de prostitutas que pareciam ser imunes à Aids; que não tinham conseguido se
tornar HIV-positivas, apesar de anos de esforços tristemente incansáveis para
sucumbir à terrível doença. Mas ninguém no micro-ônibus tinha uma pista de quem
eu era, ninguém sabia que o homem branco, alto e cabeludo, espremido no fundo
do lado direito do veículo tinha não apenas chegado da Espanha no dia anterior,
mas também era um entusiasmado apreciador do belo jogo, especialmente da forma
como era praticado naqueles dias pelo
Real Madrid Club de Fútbol. O que, claro, me deixou ainda mais
impressionado com o que o assunto tivesse surgido; que o homem no micro-ônibus
tivesse falado nos nomes de Florentino Pérez e Vicente del Bosque, supondo que
todos imediatamente saberiam quem eles eram.
Estarrecido, fiquei quieto e ouvi.
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Florentino Pérez |
– É verdade – disse um homem atrás daquele que tinha dado
início à discussão. – Ninguém pode acusar o Real de estar fazendo uma temporada
ruim.
– É isso – disse o homem da frente. – Eles conquistaram o
campeonato espanhol e chegaram à semifinal da Liga dos Campeões. Então, por que
derrubar o técnico?
– Especialmente – acrescentou o segundo – depois da
vitória de 6 a 5 sobre o Manchester United nas quartas-de-final e jogando o
melhor futebol de qualquer um em qualquer lugar do mundo pode se lembrar. – A
isso todo o grupo respondeu com murmúrios, acenos de cabeça e um sorriso ou
dois de doce lembrança. Até que um homem sentado no fundo, perto de mim, se
manifestou:
– É, mas vocês não estão entendendo. O problema com o
Real Madrid é que eles têm um padrão diferente das outras equipes. Ser o
segundo ou o terceiro não é bom. Não é aceitável. Principalmente agora, com
esse Pérez no comando. Vejam quem ele comprou desde que assumiu o clube há dois
anos: Figo, Ronaldo, Zidane. E agora Beckham.
– Mais Roberto Carlos e Raúl. Os melhores jogadores do
mundo! – continuou o cara esperto do meu lado. – Então, com essa inacreditável
coleção de superastros, você tem de ganhar tudo, ou o técnico é demitido. É
assim.
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Vicente del Bosque |
O homem da frente fez uma careta, sacudiu a cabeça e
olhou para fora através da janela. Ele não estava inteiramente convencido. Ou
talvez de algum modo partilhasse da simpatia que o espanhol comum sentia por
Vicente del Bosque, um camarada legal cuja postura imponente, vestuário lúgubre
e bigode anos 50 estavam em heroico desacordo com os jogadores vistosos e com
pose de astros de cinema que ele tinha treinado até três ou quatro dias antes;
del Bosque, longe de se parecer com o homem que tinha jogado no meio-campo do
Real Madrid quando jovem, tinha a imagem de um gentil mas cansado padeiro
levando uma vida de trabalho honesto em uma cidade pequena no interior da
meseta de Castela.
– Eu acho que Pérez tinha raiva dele, por algum motivo –
disse o defensor queniano de del Bosque. – Li em algum lugar que Pérez
simplesmente não ia com a cara dele. A química não funcionava.
– Não, você está enganado – disse outra pessoa, dois
bancos à minha frente. – Pérez é frio demais para permitir que seus sentimentos
interfiram em uma decisão importante como esta...
E assim continuou a conversa, de um extremo ao outro do
ônibus. Eu rapidamente me dava conta de que, pelo menos no caso do Real Madrid,
não tinha absolutamente nada a oferecer àquelas pessoas. Do lado de fora de
nosso micro-ônibus, crianças pequenas brincavam nuas em poças de água viscosa,
um em cada quatro adultos que víamos zanzando em meio à confusão de barracos de
folhas de flandres enferrujadas de Majengo tinha HIV, mas seus compatriotas do
lado de dentro do ônibus (e eu não tinha dúvida de que um bom número daqueles
que se encontravam do lado de fora) estavam tão bem informados sobre os
acontecimentos no Real Madrid quanto qualquer um dos meus amigos em casa, na
Espanha.
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Real Madrid histórico, com Puskas e Di Stefano. |
Eu poderia tê-los apresentado a Angel, o motorista de
táxi com quem eu assisto aos jogos da TV em um bar que tem as paredes cobertas
de ponta a ponta com fotografias emolduradas de times do Real Madrid desde os
gloriosos anos 50, quando os lendários Puskas, Gento e Di Stefano passaram pela
Europa como colossos. Eu poderia tê-los apresentado a Pedro, o especialista em
doenças tropicais cuja satisfação de realizar a missão de sua vida de encontrar
uma cura para a malária seria para sempre maculada se ele fracassasse em sua
outra grande missão – conseguir ingressos para assistir ao que ele chama de
este “inigualável” time do Real Madrid. Poderia tê-los apresentado a Sebastián,
que está passando por uma separação dolorosa e que não sabe como poderia ter
suportado tudo sem o consolo de um passe para toda a temporada no sagrado
estádio do Real Madrid, o Bernabéu. Poderia ter apresentado meus colegas de
viagem do micro-ônibus de Majengo a qualquer madrilenho fanático pelo Real
Madrid, e em segundos eles estariam conversando como se fossem amigos de
infância.
Mesmo se eles não falassem a língua um do outro, o
futebol é um meio de comunicação tão universal que com grunhidos estranhos,
alguns gestos e a menção de certos nomes – Ronaldo, Beckham, Florentino – eles
logo estariam se dando admiravelmente bem, gesticulando furiosamente em
concordância um com o outro. E então, sentado naquele ônibus, pensei que a
discussão que eu estava acompanhando com toda certeza estava sendo reproduzida
não apenas em cada esquina da Espanha, não apenas em todas as outras partes do
Quênia e da África, mas por todo o mundo – na França, na Alemanha, no Japão, na
Rússia, na China. (Como eles poderiam não estar tendo essa conversa na China
se, no dia 29 de julho de 2003, na cidade de Kunming, 20 mil fãs pagaram entre
20 e 100 dólares cada um para assistir a um jogo-treino entre o time titular do
Real Madrid e os reservas?) As pessoas provavelmente estavam debatendo a
polêmica Pérez-del Bosque até mesmo em algum lugar dos Estados Unidos, o último
bastião pagão em que a última grande religião unificadora do mundo – a única
que supera todos os credos, raças, ideologias e bandeiras – ainda não se firmou
plenamente.
A questão acerca do Real Madrid, acerca deste Real Madrid,
o que Florentino construiu, é que em um único time você tinha as mais veneradas
divindades da religião – a santíssima trindade formada por David Beckham,
Zinedine Zidane e Ronaldo – e, em Raúl, Luís Figo e Roberto Carlos, três outros
que o transformam na equipe dos sonhos de praticamente todo técnico de futebol
sério do mundo. Sete dos últimos jogadores do ano da Fifa jogavam neste time do
Real Madrid. (Na vez em que eles perderam, quando Rivaldo foi o escolhido em
199, Beckham chegou em segundo; em 2001, Figo, Beckham e Raúl foram o primeiro,
o segundo e o terceiro.) Ainda mais marcante , ainda mais inteiramente sem
precedentes, este time tinha os melhores não de uma, duas ou três, mas de cinco
das principais nações que jogam futebol: Inglaterra, Brasil, França, Espanha e
Portugal. Nunca, em 150 anos da história do esporte, tal reunião de primeira do
talento disponível no planeta esteve concentrada em um único clube. O futebol é
jogado em todos os países do mundo. Milhões de pessoas, da floresta amazônica
às montanhas do Tibete, chutam uma bola todos os dias. Milhões desses milhões
sonham um dia se tornarem jogadores profissionais. E de todas essas almas
inumeráveis, seis das melhores surgiram de três continentes, e ao final desse
processo de destilação acabaram – ouro puro – no Real Madrid. Os galácticos é como os seis magníficos do
Real são chamados na Espanha, como se fossem super-heróis de quadrinhos. E é
exatamente assim, como jogadores que são maiores que a vida, como astros de
outra galáxia, que a enorme fraternidade planetária do futebol os vê. E é na
devoção que sua genialidade inspira, mais até que na questão menor de se eles
ganham ou perdem, que repousa o apelo mundial do Real Madrid. É por isso que,
se o futebol fosse a cristandade (embora seja Igreja Católica – a maior, mais
pródiga denominação existente.
A devoção pode ser medida em números. Grandes empresas de
todo o mundo ofereceram muito dinheiro para ligar seus nomes ao do Real Madrid.
Além de um grande aumento de faturamento em função da frequência aos estádios,
direitos de televisionamento e vendas de camisas, o clube tem ganhado muito
dinheiro de empresas como Audi e Siemens, ansiosas para se associar na mente de
seus clientes potenciais à cada vez mais poderosa marca “Real Madrid ” – duas
palavras que, colocadas lado a lado, se tornam grandemente evocativas, trazendo
à mente ideias de elegância, estilo e classe que nas mãos de marqueteiros
espertos são ferramentas que podem ser utilizadas com um resultado muito
lucrativo. Todas essas razões, e mais, explicam por que no final da temporada
do futebol europeu de 2002/2003, antes mesmo da transferência de Beckham, o
Real Madrid pela primeira vez superou o Manchester United como o clube mais
lucrativo do mundo, segundo a revista World
Soccer.
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A categoria de Zidane |
Tudo indicava que o Real Madrid, reforçado por Beckham
Inc., consolidaria sua ascendência nos anos seguintes. Mas mesmo não tendo sido
assim, tudo indica que o modelo de negócios de Florentino Pérez continuará a
florescer. É uma forma revolucionária de administrar o futebol. A grande ideia
de Pérez, desde o início de seu mandato de presidente, em 2000, foi a de que se
você comprar os melhores jogadores, os melhores de todos, você vai ganhar no
final, porque eles se pagam. É a mesma lógica adotada por produtores de
Hollywood, quando decidem pagar enormes somas para convencer os grandes astros
a participar de seus filmes. “Nós somos provedores de satisfação, como um
estúdio de cinema”, explicou José Angel Sánchez, o exuberante diretor de
marketing do Real Madrid, em uma entrevista à revista The Economist. “Ter um time com Zidane é como ter um filme com Tom
Cruise.” A atração dos jogadores mais carismáticos do esporte é tal que sua
simples presença irá, no mínimo, pagar seus custos. Assim, enquanto Pérez
quebrava os recordes de passe mais caro para trazer Figo em 2000, quebrava-os
de novo para trazer Zidane em 2001, e depois pagava outra fortuna por Ronaldo
em 2002, o lucro do clube aumentava a cada ano.
Mas a revolução de Pérez tem outro lado. Homem de
negócios de estrondoso sucesso, presidente da segunda maior empreiteira da
Europa, ele não estava apenas mudando as práticas administrativas do futebol;
estava destruindo antigas ortodoxias, alterando a concepção do esporte. Todas
as vezes em que ele comprou outro superastro, mas especialmente quando comprou
o garoto de ouro Beckham, os sumos sacerdotes do esporte – técnicos,
ex-técnicos, ex-jogadores e colunistas de futebol – resmungaram que ele estava
cometendo um grande erro; que, claro, Beckham tinha um ótimo passe de bola, mas
que a prioridade era outra, que o time não tinha “equilíbrio”; que era
necessário com urgência um novo cabeça de área, um meio-de-campo defensivo –
homens fortes e duros que acrescentassem estabilidade à mistura já altamente refinada
do Real. Pérez – e realmente é ele quem decide as coisas no clube – não
acreditou em uma palavra disso. Foi em frente e apostou todo o seu dinheiro, e
todo o seu prestígio, no talento. Puro talento futebolístico. “Los mejores”, diz ele, “Quiero a los mejores”. Os melhores, eu
quero os melhores. Deixe que os outros times fiquem com os cabeças de área e os
meio-campistas defensivos: contra nós, irão precisar deles!
Extraordinariamente irresponsável. Alguns – especialmente
na Itália, onde eles veem o futebol como uma versão mais complexa do xadrez –
disseram que o homem era um suicida. E é verdade que, de acordo com a sabedoria
inspirada do futebol, não há como administrar um clube de futebol sério. O Real
Madrid de Pérez – às vezes chamado na Espanha de el Florentime – é o tipo de time fantástico de futebol que seria
montado em um jogo de computador por um garoto de dez anos de idade sem
qualquer sofisticação tática. Pérez defende a ideia de que, para dizer a
verdade, o garoto de dez anos de idade sabe muito mais do esporte que os sumos
sacerdotes. Embora, para fazer justiça aos sumos sacerdotes, a atrevida nova
filosofia de Pérez seja baseada em uma premissa que eles mesmos nunca
consideraram. A de que vencer não é o objetivo primordial do esporte. Você
precisa competir, claro. Você precisa jogar no mais alto nível, o que significa
a Copa dos Campeões da Europa – uma competição que apresenta um índice de
qualidade muito mais confiável do que a Copa do Mundo. Você precisa sempre ser
considerado um bom candidato a ganhar tudo. Mas, ganhe você tudo ou não, mesmo
que o Real Madrid perpetue a grandiosa tradição de ter erguido muito mais copas
europeias que qualquer outro, isso não é o princípio e o fim. O principal
objetivo – o maravilhosamente lúcido diretor de esportes do Real o chama de
“obrigação social” – é garantir o que eles em Madri chamam de espetáculo.
Apresentar o melhor espetáculo da Terra. Emocionar. Mais do que a passageira
felicidade da vitória, o que o Real Madrid aspira fazer é atingir um pouco da
duradoura qualidade da arte, algo que toque as pessoas em todos os lugares,
sempre.
Apenas assista a um jogo do Real Madrid, qualquer jogo, e
mantenha os olhos fixos em Zidane. Veja-o girar e escapulir, com seu 1,87m, com
a bola nos pés, e você entenderá o que Beckham queria dizer quando o descreveu
como “uma ballerina”; você verá que a
principal razão pela qual o inglês mais famoso do mundo queria jogar no Real
Madrid era pelo privilégio, pelo puro prazer de atuar no mesmo grupo
deslumbrantemente talentoso de seu ídolo – porque ele é o ídolo de todo mundo –
Zidane.
Aos 4'19, o golaço de Zidane com passe de Beckham
As fantasias futebolísticas mais extravagantes de Beckham
se concretizaram em um dos primeiros jogos do campeonato contra o Valladolid. O
jogador de melhor passe do jogo disse mais tarde que ele talvez nunca tivesse
dado um passe melhor – mas que definitivamente ninguém tinha feito um gol mais
bonito com uma bola passada por ele. Se você não viu, faça de tudo para
conseguir um vídeo. Veja o passe de 45 metros de Beckham, observe a graça de
seu movimento e a pureza da trajetória da bola enquanto ela sobe e cai, como um
peso morto, no caminho de Zidane; então se encante com a forma mágica como – na
corrida, em um movimento fluido – o francês pega a bola no ar com o pé esquerdo
e a arremessa no lado oposto do goleiro no canto direito da rede.
O futebol de Zidane é arte. Arte que as pessoas estarão
admirando daqui a 500 anos. E tem o grande mérito de não ser uma arte reservada
aos iniciados, ao historiador de arte, ao melômano, ao leitor de Shakespeare e
Cervantes. É a única forma de arte verdadeiramente globalizada, acessível a uma
parcela da humanidade mais ampla do que qualquer outra arte antes. As
pinceladas magníficas de Zidane tem uma qualidade maravilhosamente democrática.
Elas produzem exatamente as mesmas reações – a mesma admiração, o mesmo deleite
– no agricultor de subsistência de Ruanda e no banqueiro da City de Londres. E
como toda arte, o que elas fazem é embelezar a condição humana, enriquecer a
vida. Elas oferecem inspiração, oferecem prazer, oferecem – seja ao meu
próspero amigo Sebastián passando por sua separação ou aos milhões de famintos
da África – consolo para as tristezas da vida.
Joseph Conrad poderá se revirar no túmulo, mas sua
definição de arte como algo que fala à “solidariedade (...) que liga os homens
uns aos outros, que une toda a humanidade – os mortos aos vivos e os vivos aos
não nascidos”: esta definição pode se aplicar com o mesmo valor tanto ao
futebol quanto à musica, à literatura ou à pintura, quando o jogo é disputado
com o esplendor e a genialidade dos homens de branco do Real Madrid.
Há outros belos times, outros grandes jogadores por aí no
início do século XXI. Ronaldinho, do Barcelona; Van Nistelrooy, do Manchester
United; Henry, do Arsenal; Totti, do Juventus; Kaká, do Milan; Ballack, do
Bayern de Munique, são indivíduos capazes de levar o jogo a um patamar mais
elevado. É só que – colocando de lado considerações tribais e examinando o que
está disponível com olhos desapaixonados – os jogadores reunidos no Real o
fazem com maior frequência, mais belamente e em um nível mais elevado. É por
isso que a conversa que eu acompanhei no micro-ônibus em Majengo não deveria
ser surpresa para mim, já que era óbvio que as pessoas estavam tendo exatamente
a mesma conversa em micro-ônibus por todo o planeta Terra.
Ao voltar de Majengo para Nairóbi, tendo passado duas
horas na clínica conversando com duas daquelas prostitutas imunes à Aids, fui
almoçar no principal hospital universitário da cidade com um jovem médico que
integrava a equipe que pesquisava por que aquelas mulheres tinham derrotado
todas as probabilidades e evitado a infecção. O motivo pelo qual eu estava lá,
em primeiro lugar, era para escrever uma reportagem de jornal sobre uma vacina
para combater a Aids que os médicos quenianos estavam tentando desenvolver com
base nas impressionantes defesas naturais das prostitutas. Eminentes catedráticos
com os quais eu tinha conversado na Universidade de Oxford tinham dito que
aquele era o mais ousado projeto do tipo no mundo. E, embora não fosse capaz de
avaliar os méritos científicos do que estava acontecendo, eu estava bastante
impressionado com o brilhantismo e a dedicação de pessoas como o jovem médico
com o qual estava almoçando. Especialmente porque eu tinha entendido que um
cientista capaz como ele, de apenas 27 anos de idade, poderia estar ganhando
muito dinheiro se vendesse seu talento no exterior.
– Ah, sim – explicou ele –, mas para mim é um grande
privilégio fazer parte dessa fantástica equipe de pesquisadores, realizando um
trabalho tão importante para o mundo. Eu não trocaria isso por nada. Ao fazer
parte desse grupo, sinto o que David Beckham deve estar sentindo ao fazer parte
do Real Madrid.
Desta vez, não fiquei perplexo e boquiaberto, já que a
viagem para Majengo me preparara para inesperadas alusões ao futebol. Foi o
médico, e não eu, quem inicialmente levantou o tema do Real Madrid. Eu estava
ali profissionalmente, conversando solenemente sobre Aids. Mas o que realmente
me impressionou foi o que aconteceu a seguir. Algo de que eu sempre irei me
lembrar como uma coincidência quase inacreditável. Não mais de cinco segundos
depois de meu amigo médico mencionar o Real Madrid, meu telefone celular tocou.
Atendi, e José Angel Sánchez, o chefe de marketing do Real Madrid –
braço-direito e alter-ego de Florentino Pérez, e segundo homem mais poderoso do
clube – se identificou. Era como ouvir uma voz de outro planeta, tão distante
era o mundo opulento e ostentatório que ele habitava da vastidão vazia, cinza,
de concreto do hospital em que eu estava e da imundície sórdida que eu tinha
visto naquela manhã em Majengo.
Sánchez queria saber se eu poderia ir a Madri na semana
seguinte para entrevistar Beckham para o canal de televisão do Real Madrid.
Seria uma “exclusiva” mundial a ser transmitida para uma centena de países no
dia de sua apresentação oficial como jogador do Real Madrid. Estávamos na
quinta-feira, e a entrevista seria na terça ou na quarta-feira seguinte. O que
dizer?
Aquilo era loucura. Eu estava na África fazendo uma
reportagem sobre Aids, e durante todo o dia tinha havido referências ao Real
Madrid e a Beckham. E agora eu estava sendo convocado a Madri para entrevistar
o próprio homem. Estaria em andamento algum realinhamento planetário, com o
Real Madrid e David Beckham no seu centro? Nem mesmo no coração da África era
possível fugir deles. Nem por um só minuto.
Mas a resposta à pergunta de Sánchez não foi
imediatamente óbvia para mim. Tinha acabado de chegar ao Quênia, a primeira
parte de uma viagem de reportagem de duas semanas por quatro países da África
que eu tinha passado mais de um mês diligentemente organizando. Podia eu jogar
todo esse trabalho fora, me obrigar a recomeçar novamente a tarefa paciente de
marcar encontros em Ruanda, África do Sul e Angola? E havia mais: eu tinha ido
à África em uma missão de peso. Escrever sobre a Aids, o terrorista da
natureza, o assassino que todos os dias, sem exceção, matava duas vezes mais
pessoas que aquelas que morreram no World Trade Center em 11 de setembro de
2001. Eu também iria escrever sobre guerra, pobreza e fome: em resumo, sobre a
difícil situação dos povos mais abandonados e mais desesperados do mundo. Iria
eu abandonar essa empreitada fabulosa para partir e entrevistar David Beckham?
Minha consciência me permitiria esquecer isso? Tendo passado 20 anos de minha
vida como jornalista cobrindo guerras, denunciando violações dos direitos
humanos, defendendo, o quanto podia, os desventurados da Terra, seria eu agora
acusado de uma frívola e irresponsável negligência para com o dever?
Disse a Sánchez que não podia dar conta daquilo naquele
momento e que telefonaria para ele mais tarde. Então, me virei para o médico –
aquele herói africano, o nobre oposto da cigarra frívola em que eu estava
prestes a me tornar – e, embaraçado, expliquei a situação difícil em que me
encontrava. Sua primeira resposta, bastante perplexa foi:
– Por que você?
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edição inglesa de Anjos Brancos |
Previsivelmente, ele imaginara que eu fosse um
correspondente estrangeiro e não um jornalista esportivo. Eu disse que sim, que
ele estava certo. Vagar por favelas em países pobres e conversar com pessoas
como ele sempre tinha sido minha ocupação principal. Mas, nos últimos anos,
minha paixão por futebol tinha convergido para minhas obrigações profissionais.
Sou meio-britânico, meio-espanhol e, tendo passado sete
anos de minha infância em Buenos Aires (onde eles são provavelmente mais
malucos por futebol do que em qualquer outro lugar do planeta Terra), era meu
destino ser um fanático por futebol por toda a vida. O outro país em que cresci
foi a Inglaterra, onde o esporte foi inventado. Muito mais tarde, quando me
mudei para a Espanha, fui cativado pela paixão e pela arte do futebol espanhol,
logo chegando a conclusão – partilhada pela maioria dos connoisseurs de futebol, eu suponho – de que o campeonato espanhol
era o melhor do mundo. E foi assim que eu comecei a escrever cada vez mais
sobre futebol. Inevitavelmente, era sobre o Real Madrid que meus editores
britânicos queriam ouvir. Um dos motivos pelos quais recebi aquele telefonema
impressionante foi que, ao começar a escrever sobre futebol, tinha entrevistado
Pérez e Sánchez no Real Madrid e nós tínhamos nos dado bem. O fato de ser
bilíngue ajudou. Mas percebi que a principal razão pela qual o Real Madrid
queria que eu fizesse aquela entrevista era porque eu conhecia os mundos do
futebol britânico e do futebol espanhol, falava inglês – e, portanto,
esperava-se que eu deixasse Beckham mais à vontade que um jornalista espanhol
na primeira grande entrevista dele para o seu novo time em solo espanhol.
Mas chega de autobiografia. O que eu precisava naquele
momento, e com urgência, era de conselhos.
– O senhor é médico – disse eu. – Confio em médicos.
Tenho essa grande escolha a fazer. Então me diga: o que devo fazer?.
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Carlin é também autor da biografia de Mandela |
Ele sorriu o sorriso do homem bom, sábio, de princípios
cristalinos.
– Meu amigo – disse ele, abrindo um grande e radiante
sorriso –, quando o trem chega, você precisa pegá-lo.
Ele estava certo. Sabia que ele estava certo. Telefonei
para Sánchez e disse-lhe que estava pegando o trem. Que eu estaria em Madri na
noite de segunda-feira.
Antes disso, fiz uma parada rápida em Ruanda, passei o
domingo antes de minha volta no interior daquele pequeno país no coração
geográfico da África, entrevistando as pessoas mais traumatizadas do mundo: as
vítimas e os assassinos da maior atrocidade que o mundo tem visto desde a
Segunda Guerra Mundial, o genocídio que começou em abril de 1994, no qual a
população de etnia hutu de Ruanda, a maioria do país, se ergueu contra seus
compatriotas tutsis, matando um milhão deles em 100 dias – quase todos eles
cortados em pedaços com facões. Naquela noite, fui tomar um drinque com um
general de Ruanda, um tutsi que tinha perdido a maior parte de sua grande
família no genocídio, que levara um tiro no rosto e tinha a cicatriz para
provar, e integrara a força rebelde que libertara o país pondo fim à matança,
em junho de 1994. Mas eu já tinha tido histórias horríveis demais. Assim como
ele. Conversamos sobre futebol. Sobre –
o que mais? – o Real Madrid e a transferência de Beckham. Como o Manchester
United tinha permitido que ele partisse por tão pouco dinheiro? O que o técnico
do Manchester, Alex Ferguson, estava pensando? Em que posição Beckham iria
jogar? Ele não corria o risco de fracassar de forma terrível, jogando com
aqueles atletas tão fantasticamente talentosos? E Ronaldo: tinha voltado à sua
forma sensacional, mas as pessoas não temiam que ele tivesse uma recaída de sua
terrível lesão no joelho? E Roberto Carlos, e Zidane, e Figo, e Raúl: eles não
eram absolutamente fantásticos? E, por falar nisso, por que Pérez se livrou de
seu técnico vencedor, del Bosque?
Vinte e quatro horas mais tarde, eu estava em um hotel
cinco estrelas de Madri, preparando minha entrevista com Beckham. Fui bem.
Um mês mais tarde, após ter ido à África mais uma vez,
então para concluir meu trabalho, recebi um telefonema de James, um amigo
americano que trabalha para a ONU. Ele tinha estado na Suécia com dois garotos
de oito e 12 anos de idade, filhos de um bom amigo que pouco tempo antes tinha
morrido muito jovem de uma doença. Esperando divertir um pouco os dois garotos
e fazer com que eles pensassem em outras coisas, James mencionara que tinha um
amigo que entrevistara Beckham. “O queixo deles caiu”, disse James.
– Eles ficaram parados lá, impressionados, mudos,
fascinados e admirados de que eu – um pobre infeliz – tivesse um amigo que
tinha sentado e conversado com David Beckham.
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John Carlin |
Foi naquele momento, ou muito pouco depois, que James
compreendeu que eu tinha de escrever um livro sobre o Real Madrid de Beckham.
Telefonou para me dizer isso e eu percebi imediatamente que ele estava certo.
Ei-lo.