Uma obra espetacular. Dois livros, mais de mil páginas
construídas com o rigor da pesquisa e qualidade editorial, no texto e na arte. Uma História das Copas do Mundo – Futebol e Sociedade
(Editora Armazém
da Cultura) do historiador e pesquisador Airton de Farias (e ilustrações de Daniel
Brandão) não é apenas leitura obrigatória, mas dois volumes fundamentais para
se ter a qualquer hora para consulta sobre qualquer informação referente a
história das Copas, dentro e fora dos gramados.
Airton de
Farias não é audacioso quando revela sua intenção ao escrever os livros: “entender a História (ou uma
parte da História) da humanidade, entre o final do século XIX e o começo do
século XXI, através da modalidade esportiva mais popular do planeta”.
Sinopse (da
Editora):
Em nome da
bola fez-se guerras, como entre Honduras e El Salvador, em 1969. Em nome da
bola, torcidas digladia-se-iam. Em nome da bola, a paz aconteceu. Com a bola, o
neonazismo se expande na Europa, aproveitando-se da crise que o mundo
capitalista vive desde 2007. Em nome da bola, povos se confraternizaram, a
ponto de inimigos irreconciliáveis, a exemplo de Irã e Estados Unidos, darem-se
as mãos dentro de campo e ficarem lado a lado, como se fossem velhos
companheiros em divertido jogo de várzea no final da tarde. Com a bola, um
indiozinho argentino (Maradona) venceu um gigante inglês, vingando toda uma
nação que perdera uma ilha numa guerra delirante estimulada por uma ditadura
sanguinária.
Uma história
das Copas do Mundo mostra a
ascensão de povos e países no cenário internacional, como a realizada na África
do Sul e as que se realizarão no Brasil e na Rússia, não por acaso, países do
BRICS, nações de economia em ascensão. Muito mais que uma história
futebolística das Copas, Uma história das Copas do Mundo, com ilustrações de
Daniel Brandão, é uma apaixonante história política e social desde os
primórdios do esporte. Como atesta Juca Kfouri, um dos mais respeitados nomes
da imprensa esportiva nacional: “o que você tem nas mãos é uma obra portentosa.
Nem mais nem menos.”
Literatura na Arquibancada destaca abaixo o prefácio da
obra assinado pelo próprio autor.
Prefácio
Por Airton de Farias
Bill Shankly, técnico do
Liverpool, da Inglaterra entre 1959-74
Serei
bem claro: este é um livro de síntese, com certo caráter didático, para aqueles
que desejam dar os primeiros passos na tentativa de compreender melhor o
futebol além dos gramados. Não é uma obra de estatísticas futebolísticas (embora
as use também, eventualmente), nem uma obra rigorosamente factual e cronológica
(nos capítulos, como o leitor perceberá, há muitas “idas e vindas” no bailar
contraditório e instável dos anos). Também não visa realizar uma “hagiografia
de boleiros”, ainda que fale bastante da trajetória dos jogadores, pois, como
de se esperar numa obra deste tipo, os atletas são considerados atores sociais,
alvos de grande atenção dentro do processo histórico. Igualmente, não tenho a
intenção de focar nestas linhas causos pitorescos ou folclóricos e, muitos
menos, detalhar todas as escalações, treinadores, lugares e horários das
partidas das copas e o exato tempo de jogo em que aconteceram os cartões e os
gols. Você está alertado, caso deseje prosseguir (se é um leitor igual a mim, que
deixa para ler por último o prefácio, esse primeiro parágrafo é totalmente dispensável
e sua frustração, caro leitor, é deveras compreensível...).
E do
que trata este livro, afinal?
Sou
um aficionado por futebol e, como professor há 20 anos, um apaixonado por História,
igualmente. Dito isso, fica fácil perceber o objetivo principal da obra:
entender a História (ou uma parte da História) da humanidade, entre o final do
século XIX e o começo do século XXI, através da modalidade esportiva mais
popular do planeta. Essa abordagem, creia, é algo fascinante. É incrível a
quantidade de episódios históricos e conflitos, simbólicos ou não, que podem
ser percebidos nas partidas de clubes e seleções, afora indicativos,
características, contradições e pormenores das sociedades. Não é temerário
afirmar que a História do mundo, nos últimos cento e tantos anos, passou pelos
estádios de futebol.
É
uma obra, portanto, ousada (audaciosa) e, por isso mesmo, aberta a críticas. A
primeira dessas, de caráter mais historiográfico, talvez se refira à pretensão
do autor de querer tratar de “toda” a História do futebol (e do mundo!) em
cerca de 1000 páginas. Aceito o reparo dos colegas historiadores.
Certamente
por “abarcar” mais temas, peco em não aprofundá-los devidamente (embora, digo
de coração, minha intenção fosse fazê-lo e busquei atingi-lo dentro do
possível). Sem esquecer que vários outros temas ficaram à margem. O profissional
da História sabe que, num livro, não é por acaso a escolha de um tema e o
“esquecimento” de outros estudiosos.
O
Historiador, ao fazer uma pesquisa, traz, consigo, suas perspectivas
ideológicas, culturais,
etárias,
étnicas, de gênero, etc. O pesquisador escolhe a pesquisa – mas a pesquisa
também “escolhe” o pesquisador. Assim, saiba, amigo leitor, a História do
futebol vai igualmente bastante além dos temas e abordagens aqui realizados.
Este livro é apenas um leve aquecimento para quem deseja, de fato, entrar em
campo...
Há
ainda o problema das interpretações. A obra não é só minha (por isso,
inclusive, uso o chamado “plural da modéstia”). Procurei me apoiar no que havia
de mais recente na produção acadêmica (teses, dissertações, monografias,
artigos, etc.), tudo devidamente citado para aqueles que desejem aprofundar a
leitura e os estudos. São produções dos cursos de História, Sociologia,
Educação Física, Comunicação Social e áreas afins de todo o Brasil. Igualmente
fiz uma leitura das obras “clássicas”, produzidas por memorialistas,
jornalistas, biógrafos, etc. Documentos e fontes, especialmente jornais, estão
discriminados ao longo dos capítulos. No final do livro há uma gigantesca lista
de referências. Sei que algumas vezes tantas citações congelam a leitura,
principalmente numa obra que alimenta pretensões didáticas e gerais. Mas, por
honestidade intelectual e respeito ao leitor e aos colegas pesquisadores, não
poderia deixar de fazer isso. Espero compreensão.
Mas
por qual razão um leitor se interessaria por uma obra que gasta páginas e páginas
falando do extracampo e não sobre seu craque favorito ou da conquista
memorável? Os livros sobre futebol encerram contradições.
Muitos
torcedores estão satisfeitos em compreender as táticas de seus times e os
assuntos mais comuns das colunas esportivas dos jornais ou dos programas de
rádio e televisão. Por outro lado (por muito tempo), o mundo acadêmico tratou
com certo desdém o “esporte das multidões”. Quando não era visto como “ópio” do
povo, ignorava-se quase por completo o “espetáculo”
da bola em si. O torcedor e o acadêmico pareciam seres de dimensões
antagônicas.
Entretanto,
cada vez mais estudiosos deixam de ver no futebol uma prática “alienante”. É
óbvio, como veremos a seguir, que, sim, distintos regimes políticos, fossem
ditatoriais ou democráticos, buscaram utilizar a modalidade na intenção de
angariar apoios internos ou exibir prestígio internacional. Mais recentemente,
dentro de um intenso processo de mercantilização, o adepto do futebol passou a
ser visto apenas como um “consumidor” e o jogo como um lucrativo negócio. Essas
perspectivas, entretanto, como normal dentro do dinamismo e diversidade das
sociedades, não são absolutas. Se ditadores “usaram” o futebol, este igualmente
serviu como estratégias de resistência e de questionamentos aos dominados.
Protestos
iniciaram-se exatamente quando competições esportivas aconteciam...
“Alienante”,
como assim? Cada vez fica mais claro para os pesquisadores da área de humanas
que as sociedades e suas peculiaridades e contradições passam (também) pelos
estádios de futebol, mundo afora.
Assim,
questões de nossa época podem ser pensadas a partir das partidas de futebol,
particularmente nas copas do mundo. A criação do próprio Mundial, por Jules
Rimet, não pode ser desvinculada dos crescentes sentimentos e tensões
nacionalistas que varriam o mundo, especialmente a Europa, nas primeiras
décadas do século XX – e que contribuiriam para a eclosão de duas Guerras
Mundiais. A seleção italiana, bicampeã em 1934 e 1938, fazia
a saudação dos adeptos de Mussolini, como se fosse a materialização de um
fascismo de chuteiras. Em nosso País, o futebol foi e é forte componente na
formação da identidade nacional – não por acaso, ainda hoje é popular a
expressão “Pátria de Chuteiras” e falamos, geralmente, do Brasil jogando, e não
da seleção brasileira de futebol, como se a nação fosse a onzena verde e
amarela. Tal componente não escapou aos interesses variados de diversos atores
sociais e políticos e por vezes teve de lidar com problemas que ainda hoje incomodam
a sociedade brasileira, a exemplo do racismo. O goleiro da Seleção de 50,
Barbosa, que o diga. E a Alemanha que, de certo modo, se reergueu do Nazismo e
da II Guerra ao conquistar o título de 1954? Não se pode desconsiderar a
conquista da Taça Jules Rimet para a autoestima de um povo arrasado como
aquele. Um raciocínio parecido pode ser feito para a Argentina, que após sofrer
uma dolorosa derrota na Guerra das Malvinas, em 1982, acabou sendo campeã do Mundo,
em 1986, superando os rivais ingleses, o que levaria à “divinização” de Diego
Maradona.
Reúne
duas paixões do autor. Sim, podemos aprender história através do futebol. E,
sim, aquele jogo decisivo do campeonato tem muito a informar sobre nossas
sociedades.
Os
dois volumes da obra somam 23 capítulos, cada um tratando das respectivas Copas
em sequência e contando ainda com um tema transversal principal. Assim, na Copa
de 1958, abordo o futebol na antiga União Soviética/Stalinismo; na Copa de
1966, falo do futebol em Portugal/Salazarismo; na Copa de 1970, trato da
Ditadura Civil-Militar/Tricampeonato mundial brasileiro; e assim por diante. Há
quatro capítulos que não tratam de Copas (pelo menos, não diretamente). O
primeiro, quando abordo as origens do futebol; o segundo, que trata da chegada
do futebol ao Brasil; o sexto, que tem como objetivo os anos 1940, a “década
sem Copa”, devido à II Guerra; e o último, que foca nos acontecimentos que
antecederam o Mundial brasileiro de 2014.
Por
fim, não poderia deixar de falar acerca das ilustrações do livro, feitas pelo
talentoso quadrinista Daniel Brandão. Os desenhos de Brandão trouxeram a arte
para dentro das páginas, tornando a leitura bem mais agradável. O leitor mais
minucioso poderá perceber como os painéis do desenhista são um resumo de cada
capítulo. E são desenhos maravilhosos, de grande perfeição e beleza. Diria,
usando o jargão do mundo da bola, que Daniel, com muita categoria e astúcia, e
fazendo tabelinhas geniais com este autor, entrosou ainda mais o livro para o
deleite do leitor.
Espero
que o livro atenda as suas expectativas e que o motive a analisar o futebol – e
as sociedades – com outras perspectivas.
Sobre o autor:
Airton de Farias
é Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e em História
pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). É também Mestre em História pela
mesma UFC. Exerce a profissão de professor há duas décadas. É escritor, autor
de mais de 20 livros, entre os mais conhecidos estão: História do Ceará: da Pré-História ao Governo Cid Gomes e Além das Armas: Guerrilheiros de Esquerda no
Ceará Durante a Ditadura Militar. Escreveu também a trilogia dos principais
clubes cearenses de futebol: “Ferroviário,
Nos Trilhos da Vitória”; “Ceará, Uma
História de Paixão e Glória” e “Fortaleza,
História, Tradição e Glória”.
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