Em tempos que o torcedor clama por mudanças
táticas, técnicas e estruturais no futebol brasileiro, e em especial, na
seleção brasileira, a leitura da biografia sobre um dos técnicos mais famosos
no mundo da bola torna-se obrigatória. Não só pelo momento, mas pela qualidade,
Béla
Guttmann – Uma lenda do futebol do século XX (Editora
Estação Liberdade) escrita pelo jornalista e professor Detlev Claussen (com
tradução de Daniel
Martineschen e Alexandre Fernandez Vaz), é livro que pode nos ajudar a refletir
o atual atraso na mentalidade dos nossos treinadores.
E pensar que Béla Guttmann tornou-se celebre logo após
treinar um time brasileiro, o São Paulo FC, no ano de 1957. Sim, isso mesmo, um
estrangeiro dirigindo um clube pra lá de tradicional do futebol brasileiro. E
ao melhor estilo Telê, Guttmann impôs logo de cara a contratação de um jogador
que encarnasse o tal “futebol-arte”. E foi buscar um veterano, Zizinho, "Mestre
Ziza", na época, com 35 anos, era o modelo e ídolo de Pelé.
Béla Guttmann justifica como ninguém o subtítulo de sua
biografia: uma verdadeira lenda do futebol mundial.
Literatura na Arquibancada apresenta abaixo a sinopse e o
prefácio do livro, e agradece ao Centro de Referência do Futebol Brasileiro
(CRFB), do Museu do Futebol, local onde foi feita a pesquisa sobre a obra. Vale
a pena conhecer o acervo em www.dados.museudofutebol.org.br.
Sinopse
(da Editora):
Mas se é amado até hoje dentro da comunidade
benfiquista por tais façanhas, Béla Guttmann é, paradoxalmente, odiado em igual
medida. Pudera: depois da conquista frente ao Real, em 1962, o húngaro se
desentendeu com a direção do clube lisboeta e não renovou o contrato,
debandando de lá não sem antes anunciar uma maldição aparentemente profética: a
de que o Benfica não voltaria a vencer uma competição continental pelos
próximos cem anos. Escreve Claussen que alguns torcedores do time, “antes da
final da Liga dos Campeões contra o Milan em 1990, teriam ido ao cemitério de
Viena e de lá teriam trazido um naco de grama do túmulo de Guttmann, para
quebrar a maré de derrotas nas finais europeias”. Não deu certo: o Benfica
perdeu a decisão, assim como ocorreu em todas as outras vezes em que fora
finalista nas eras pós-Guttmann: em 1963, também contra o Milan; em 1965,
contra a Inter de Milão; em 1968, contra o Manchester United; bem como nas
finais da Liga Europa, a antiga Copa da Uefa, contra o Anderlecht, em 1983, e o
Chelsea, em 2013. E em maio deste ano, o fantasma de Guttmann voltou a
assombrar, quando o Benfica caiu em nova decisão continental, a da Liga Europa,
desta vez frente aos espanhóis do Sevilha.
Antecipando o movimento de globalização no futebol
que se acirraria mais marcadamente a partir dos anos 1990, Guttmann foi um
andarilho no mundo da bola. Além da Hungria, atuou em países como Holanda,
Áustria, Itália, Estados Unidos, Argentina e Portugal. E teve ligações profundas
também com o futebol brasileiro: em 1957, aceitou o convite para treinar o São
Paulo Futebol Clube, com o qual se sagrou campeão paulista. Mais do que isso, o
estilo tático de Guttmann, com o inovador e ultraofensivo esquema 4-2-4,
influenciou de forma certeira na maneira de jogar da própria seleção brasileira
comandada por Vicente Feola que, no ano seguinte, levantaria seu primeiro
título mundial.
Assim, num tempo em que a biografia virou gênero
maldito no Brasil, Béla Guttmann — Uma lenda do futebol do século XX é,
desde já, uma referência de como o registro de histórias de vida pode ir muito
além das mesquinharias e indiscrições de cunho privado, ao compor numa mesma
geleia geral informações preciosas de época, sobre questões ao mesmo tempo
esportivas, sociais, políticas, étnicas, religiosas. Detlev Claussen escreveu
um capítulo especial da história da cultura e do esporte. Ele fala sobre
amadores e profissionais, húngaros e vienenses, judeus e católicos, argentinos
e brasileiros, heróis e patifes — e de partidas inesquecíveis.
Prefácio
Por
Detlev Claussen
*
Mas quem pensa em futebol ao visitar um cemitério?
Em um cemitério judeu se tenta, antes de tudo, ler os números e combiná-los com
os lugares onde cada pessoa nasceu e morreu. Budapeste não aparece naquela
pedra em Viena. Depois de Béla Guttmann Story espera-se ainda uma história
judaica da K.u.k (Kaiser-und Königreich: abreviação do Império Austro-Húngaro)
que, a se considerar as contribuições do biógrafo Csaknády e do biografado
Guttmann, não cabia em um livro alemão sobre futebol publicado em meados dos
anos 1960. Pois por baixo das histórias de judeus da Europa Central sempre fica
à espreita o passado nacional-socialista e suas consequências: emigração, fuga
e morte violenta. O irmão de Béla Guttmann, que jogava futebol com ele durante
a Primeira Guerra Mundial, morreu em 1945 em um campo de concentração alemão.
Sobre a sobrevivência de Guttmann durante o período nazista as fontes não são, no
entanto, muito eloquentes. História do futebol também não é somente algo
secundário e bonito, mas sim parte da história mundial, que não pôde deixar de
ser afetada por esse esporte. A história de Béla Buttmann só pode ser narrada
quando se tem a história do século XX em vista e quando se está pronto para
revisitar, mesmo que brevemente, a história mundial do futebol.
No futebol conta o aqui e o agora, o momento
jogado, que por sua vez é relativizado pela conhecida sabedoria futebolística: “O
jogo dura noventa minutos”. No cemitério o jogo já terminou, não há
prorrogação. O túmulo também sepulta embaixo de si incontáveis histórias de
futebol, lendas e mitos. Dificilmente será verdade, portanto, o que os
torcedores do Benfica – equipe em que Guttmann alcançou seu maior êxito como
treinador no início dos anos 1960 – gostam de contar ainda hoje em Lisboa:
alguns deles, antes da final da Liga dos Campeões da Uefa, a antiga Taça dos
Campeões Europeus, contra o Milan em 1990, teriam ido ao cemitério de Viena e
de lá teriam trazido um naco de grama do túmulo de Guttmann, para quebrar a
maré de derrotas nas finais europeias. Mas isso não podia dar certo, pois um
pedaço de terra plantada não poderia ter soltado esse túmulo em pedra, e não se
deveria esperar nem mesmo sabedorias futebolísticas dela. Triunfos como o
bicampeonato europeu de 1961/1962 com o time outsider do Benfica ninguém nunca mais conseguiu.
O futebol do Benfica parecia então ser de outro
mundo. Mas ele não veio de tão longe assim: em 1958 o Brasil tinha vencido pela
primeira vez uma Copa do Mundo, na Suécia, com um sistema ofensivo, 4-2-4,
varrendo na final os donos da casa por 5 a 2. Foi a estreia internacional de
uma jovem estrela que atendia pelo nome de Pelé. Mas de onde os brasileiros
tinham tirado isso? Depois do fracasso na Copa de 1950, disputada em casa, e na
de 1954, na Suíça – quando levaram uma verdadeira surra futebolística da
Hungria –, multiplicaram-se pelo Brasil as críticas sobre o futebol que vinha
sendo praticado pela seleção. O Brasil se mostrou aberto a Know-how estrangeiro, e havia até mesmo a disposição de dar mais
chances ao enorme potencial dos jogadores negros.
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Zizinho (centro) e o técnico Béla Guttmann. |
Béla Guttmann pode ser considerado um dos grandes
treinadores do século XX. Deve-se observar, no entanto, que a profissão de
treinador de futebol ainda estava, na sua época, por se estabelecer. Até mesmo
Stanley Matthews, quintessência do futebol de dribles entre os profissionais
ingleses, mostrou-se muito cético no início dos anos 1950 com relação ao
treinamento sistemático no esporte. Ele estava firmemente convencido de que o
jogo se aprendia na rua e de que profissionais estabelecidos já sabiam como um match se desenrola. Faz parte da ironia
da história do futebol o fato de ele ter feito parte da seleção inglesa que, em
1953, foi destroçada em pleno estádio de Wembley pela maravilhosa seleção da
Hungria, com o placar de 6 a 3. Meio ano depois, os húngaros ganharam a partida
de volta em Budapeste, inclusive com uma goleada de 7 a 1. O crescimento do
futebol na Europa continental a partir da década de 1920 não pode ser explicado
sem o desenvolvimento do treinamento que, afinal, foi divulgado na Europa
Central por pioneiros ingleses – profetas que não eram ouvidos na própria
terra. Béla Guttmann viveu a experiência da mudança de estilo e de jogo desde o
início de sua carreira. Ele aprendeu, com todos os obstáculos, a jogar futebol
como uma profissão – uma precoce carreira profissional que começou em Viena nos
anos 1920 e que o levou, já na época, a atravessar o Atlântico em direção à
América do Norte e depois a América do Sul. Antes de obter seu primeiro posto
como treinador em Viena, em 1933, ele já conhecia todo tipo de futebol que se
jogava pelo globo.
O que permanece de um grande jogo, de um grande
jogador, de um grande treinador? No final, resta apenas um nome que logo cairá
no esquecimento se a história ligada a ele não for narrada. Até mesmo o
funcionário do cemitério em Viena, que sem dúvida se interessava por futebol, vinte
anos depois da morte de Béla Guttmann pouco sabia sobre o defunto: “Era algum
jogador de futebol!”. E mais nada. Nos documentos do Cemitério Central não há
registro do túmulo, mas o funcionário tinha uma ideia de onde ele podia ser
encontrado: “Procure na ala judaica”. De fato, lá está a impressionante lápide
com o nome, mas não a recordação do futebol que tornou esse nome mundialmente
conhecido.
Sobre
o autor:
Detlev Claussen, nascido em 1948 em Hamburgo e criado em
Bremen, estudou ciências sociais sob a orientação de Theodor W. Adorno em
Frankfurt. Hoje é jornalista e professor de teoria social, sociologia cultural
e teórica na Universidade de Hannover. Reside em Frankfurt. Entre suas
principais publicações estão Grenzen der Aufklärung [Limites do
esclarecimento, 1987], Was heisst Rassismus? [O que significa racismo?,
1994], Aspekte der Alltagsreligion [Aspectos da religião no cotidiano,
2000] e a importante biografia Theodor W. Adorno [2003].
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