Não há na
literatura esportiva brasileira um livro parecido com o que o jornalista Léo
Gerchmann acaba de lançar. Coligay – Tricolor e de todas as cores
(Editora Libretos) reconstitui a trajetória da torcida gremista pioneira dos
anos 1970, formada por homossexuais.
Se o tema é
polêmico hoje, imagine no período em que tudo aconteceu, em plena ditadura
militar, de 1977 a 1983.
Sinopse: (da Editora):
Gerchmann realizou uma intensa pesquisa, além de entrevistas
com ex-integrantes da torcida, dirigentes e jogadores do Grêmio da
época, jornalistas e outras tantas testemunhas daquela audácia épica.
“Eles foram muito corajosos, porque surgiram em uma época de repressão. Era uma
torcida que nunca se envolvia em confusão e sempre apoiava o time”, relembra o
autor.
O escritor e
jornalista David Coimbra destaca no prefácio a importância deste
registro inédito: “...ainda hoje a
Coligay é motivo de gozação dos torcedores de clubes rivais do Grêmio, como se
fosse algo de que os gremistas devessem se envergonhar, quando é justamente o
contrário. A Coligay foi um episódio de coragem, tolerância e respeito à
diversidade na história do Grêmio. A Coligay não é um desdouro ao clube; ao
contrário, enobrece-o”, observa.
Prefácio
David Coimbra
Ainda hoje, o ambiente do futebol rejeita qualquer insinuação
de homossexualidade. Em pleno 2013, Emerson, atacante do Corinthians, publicou
nas redes sociais uma foto dando um selinho em um amigo e torcedores do seu
clube protestaram ferozmente. “Não temos nada contra os homossexuais, mas não
queremos veados no nosso time”, disseram os líderes da torcida em um manifesto na
internet.
Isso na segunda década do século 21. Imagine uma torcida
de gays nos anos 70, todos paramentados com longas túnicas listradas,
saltitando em meio aos torcedores, digamos, convencionais.
Pois o Grêmio teve sua torcida gay, que no início causou
certa estranheza, mas depois foi aceita e até considerada pé-quente. Tanto que
esse mesmo Corinthians, que em 2013 estremeceu ante um beijinho entre amigos, convidou
os garotos da Coligay para assistirem à final do histórico Campeonato Paulista
de 1977, contra a Ponte Preta. Isso porque a Coligay, supostamente, já havia “dado
sorte” ao Grêmio, que, depois de oito anos, retomara a hegemonia do futebol
gaúcho, vencendo o grande Inter de Falcão e Valdomiro. E deu certo. Os rapazes
da Coligay viram Basílio marcar o gol da vitória que garantiu ao Corinthians o
seu primeiro título em 23 anos. Os rapazes da Coligay davam sorte mesmo.
Com um texto agradável e escorreito, o Léo recupera
uma bela história e, o principal, devolve-lhe a dignidade.
Porque ainda hoje a Coligay é motivo de gozação dos
torcedores de clubes rivais do Grêmio, como se fosse algo de que os gremistas devessem
se envergonhar, quando é justamente o contrário. A Coligay foi um episódio de coragem,
tolerância e respeito à diversidade na história do Grêmio. A Coligay não é um
desdouro ao clube; ao contrário, enobrece-o. Deveria ser retomada, e talvez o seja
depois deste livro. Porque, ao cabo da última página, o leitor entenderá, com
satisfação, que conheceu a história de mais do que um bando de bichas. Conheceu
a história de pessoas que mostraram, na prática, que a vida é a arte da
convivência. Ou, como diria Vinicius, é a arte do encontro, embora haja tanto
desencontro pela vida.
Um
dom natural
Por
Léo Gerchmann
Tive motivações
especiais para escrever este livro. Uma: minha paixão pelo Grêmio, algo que, por questão de
honestidade com o leitor, devo reconhecer já nas primeiras linhas. Outra: a
certeza, quase religiosa, de que a diversidade é uma vocação divina (ou
natural, como diria Espinoza, o filósofo panteísta Baruch, não o
ex-lateral-direito e mais tarde técnico campeão mundial gremista Valdir
Espinosa), um dom a nos caracterizar como humanos. E humanos, diga-se, não só
no sentido do termo substantivo que identifica um ser, uma espécie animal.
Também no sentido adjetivo, certamente o mais importante deles, que implica
aceitar – e não apenas “tolerar” – o
diferente, algo próprio da nossa condição de seres destinados a evoluir, com um
ou outro aparente e inevitável retrocesso.
Feita a breve digressão
filosófica, fica aqui o recado oportuno: este livro foi escrito para
aficionados de todos os clubes ou mesmo de nenhum deles, para héteros e
homossexuais, para pessoas das mais diversas orientações ou condições
existentes na riqueza plural da nossa vida.
Coligay
Tricolor e de todas as cores
Por Léo Gerchmann
1) restrições iniciais dentro do próprio clube, que
depois, gloriosamente, a acolheu e adotou com dignidade e respeito;
2) maledicências preconceituosas de adversários,
que se aproveitaram da situação para os deboches machistas de praxe – quem
fosse à internet no momento em que eu escrevia este livro, em 2013, e lançasse
a palavra “Coligay” num buscador veria que, além dos diversos erros de
informação, a maior parte das referências citadas
possuía teor homofóbico. Talvez isso já tenha mudado quando você estiver lendo
as presentes linhas, o que me deixaria gratificado pela possível contribuição desta
obra para causa tão justa e nobre;
3) uma coleção de anedotas na crônica
esportiva politicamente incorreta de então, que, por ser desprovida de viés homofóbico,
tinha aceitação do seu irreverente alvo, como veremos adiante. Era época de
intensa cultura conservadora, de um público reprimido e ávido por piadinhas
como as referidas acima.
dos efeitos citados nesta lista:
4) o oportunismo da Coligay ao ter
aproveitado essas brechas no ferrolho conservador e superado a retranca do preconceito,
erguendo sua bandeira do pluralismo para que todos a vissem.
Em julho de 2013, o papa Francisco,
principal representante da Igreja Católica e de toda a tradição que ela
significa, visita o Brasil e faz uma declaração inconcebível quatro décadas
atrás, quando a Coligay deu os ares da
graça:
– Se uma pessoa é gay, procura Deus e
tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?
Não é irrelevante nem casual o fato de
iniciativas ousadamente desafiadoras como a da Coligay terem surgido, com todas
as restrições da época, justamente no Grêmio. Uma visão sociológica do clube
gaúcho faz justiça à sua história.
O Grêmio tem a pecha da elitização,
resquício dos anos de racismo no futebol. Acentue-se, no entanto, que todos os
clubes de Porto Alegre eram segregacionistas, bem como toda a sociedade
brasileira, herdeira de vergonhosa cultura escravocrata nos usos e costumes.
Como o Internacional, o Grêmio é um
clube de massas.
A lógica subjacente da “casa grande e
senzala” não é a mentalidade do clube, diferentemente de outros setores da sociedade
e até de algumas agremiações. Dizer que inexiste é demasia em se tratando do
Brasil, com sua renitente desigualdade social, racismo (nem sempre) dissimulado
e contraditória cultura moralista em um país tão vocacionado para a diversidade.
Vê-se, por vezes, um ou outro torcedor traindo essa essência plural com gestos
ou gritos intolerantes e intoleráveis.
Enfim, a diversificação aparece até
nesses instantes vergonhosos de presença do mal, no já citado aparente
retrocesso em meio à evolução.
***
Na minha turma do Colégio Israelita
Brasileiro, naquele 1977 de ditadura militar em que a Coligay surgiu como um sopro
de criatividade e renovação, organizamos nossa própria torcida, os Pardais da
Fiel (pardal, no autoirônico humor judaico, é o judeu, com sua por vezes
necessária vocação de se adaptar aos diversos ambientes para onde as
circunstâncias já o conduziram). Uma brincadeira adolescente, da qual ainda
hoje lembramos com a seriedade reservada às paixões.
Marcávamos presença em quase todos os
jogos. Na época, o Grêmio amargava oito anos sem títulos, situação parecida com
a do Corinthians em São Paulo. Daí o “fiéis” dos pardais, como os gaviões
paulistas. No Olímpico, íamos para as cadeiras.
Mas o fato é que íamos, sempre íamos,
naquele 1977 em que o Grêmio de Telê Santana rompeu a hegemonia colorada e, com
o título gaúcho, deu o primeiro passo para a conquista do país, quatro anos
depois, e do mundo, seis anos mais tarde.
O segredo disso: a fidelidade de quem,
se necessário, voava como um pássaro errante ou seguia até a pé, para o que desse
e viesse.
***
A respeito de gremismo, fé e
diversidade, aproveito as linhas acima para enganchar uma história que me diz
muito e que, enfim, ilustra o terceiro e talvez mais poderoso motivo para eu
escrever este livro: o Hershel.
O Hershel sempre foi um folgado, essa é
a verdade. Um adorável folgado, brincalhão até com quem mal conhecia. Homem de
conduta exemplar. Pai amoroso, dedicado e generoso. E divertido! A todos os
jogos do Grêmio que ia, e ele ia a todos os jogos do Grêmio, a rotina se
repetia, como devem se repetir as rotinas. Acompanhado do mais novo de seus
dois filhos, estacionava o carro sempre na mesma
elevada perto do Olímpico.
E quase sempre estava lá o Gilberto, um
menino negro sorridente, comunicativo, que guardava o veículo numa época em que
não se havia difundido a atividade de flanelinha – aliás, nem se conhecia essa
palavra como se conhece hoje. O Hershel falava Gilberto pronunciando o “l” com
a língua colada no céu da boca: “Gilllberto”, como dizia “Brasilll”, “filllme”,
“jornalll”, “tropicalll”.
– Por que esse movimento todo aqui
hoje?
– Tem jogo. O Olímpico está lotado.
– Ahhh, o estádio do Grêmio, né? Pois
eu vou a uma reunião de militares aqui perto. Nem gosto de futebol, para ser
bem sincero. Cuida direitinho, tá?
O menino emudecia. Eram anos 70, 80,
regime militar. Na dúvida, melhor ficar quieto e acreditar. Mas com o Gilberto
era diferente. O Hershel brincava, mas não sacaneava. Até falava em iídiche com
o Gilberto.
Passaram-se os anos. O Hershel adotou a
prática de ir com os amigos ao Olímpico, sem o tal filho mais novo, que, jornalista,
foi para Buenos Aires ser correspondente de um grande jornal brasileiro. Tempos
depois, o filho voltou para o Brasil. Teve seu próprio filho, mais tarde uma
filha, os dois netos do Hershel. E aquele hábito se rompeu.
Certa feita, o Hershel e o filho
retomaram a rotina, saudosos que eram do antigo ritual. Estacionaram no mesmo
lugar.
E apareceu o Gilberto, que morava ali
perto, o mesmo sorriso, o olhar emocionado por ver os antigos amigos, exibindo orgulhoso
a sua penca de filhos gremistinhas.
Depois do jogo, outro velho hábito se
repetiu.
Posso garantir: o repertório do
Gilberto em iídiche era quase tão abrangente quanto o do filho mais novo do
Hershel. Predominavam expressões chulas e pitorescas, claro, naquela mistura de
hebraico com alemão que os judeus forjaram para perpetuar sua cultura,
perenizar seus hábitos e compensar a dispersão a eles imposta justamente pela
intolerância em relação à prática de costumes étnicos e de uma fé diferentes da
dominante.
Acho que o leitor não precisa ser muito
perspicaz para concluir: o filho mais novo do Hershel sou eu.
***
À memória do eterno conselheiro
gremista Henrique Gerchmann (o Hershel), que faleceu no dia 1º de junho de 2009
e mereceu comovente homenagem do Grêmio com um minuto de silêncio três dias
após a sua morte (uma reverência feita antes de se iniciar a vitória de 3 a 0
sobre o Náutico, no Olímpico, que não foi pedida pela família, o que só aumenta
o valor do gesto). A ele dedico este livro sobre o valor da diversidade, assim
como à minha mãe, a Miriam, companheira de 50 anos do Hershel. Também o dedico
aos meus filhos, o Pedro e a Paula, e à minha mulher, a Dione, com quem pretendo
emplacar mais de meio século de parceria, fazendo da ida à Arena uma renovada
rotina familiar.
Sobre o autor:
Léo Gerchmann é
formado em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Jornalista, 49 anos,
é repórter especial do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde escreve
sobre temas internacionais. No portal zerohora.com, mantém o blog Território
Latino, que trata de temas latino-americanos. Teve passagem também por redações
como a da revista Placar e trabalhou durante 11 anos no jornal Folha
de S.Paulo, do qual foi correspondente em Buenos Aires de 1997 a 1998.
Entre outras coberturas internacionais, fez a da Copa do Mundo da França, em
1998, eleições em países sul-americanos, a histórica crise argentina de 2001 e
a abertura dos “arquivos do terror”, que comprovaram a existência da Operação
Condor, no Paraguai.
Maravilha!
ResponderExcluirViva a democracia, em todas as suas dimensões.
Parabéns ao autor.
E a você meu querido.
Beijo.
Livro fundamental para todos os colorados hahaha
ResponderExcluirCom certeza! Se dizem o clube do povo e não aceitam gays? Nós temos orgulho, somos tricolor e de todas as cores, não somos hipocritas como vocês
ExcluirViado... Dá o cú também
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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