Uma “viagem” literal através do país do futebol. Um livro
importante na história da literatura esportiva brasileira foi reeditado. A obra
é “O País da Bola”, de Betty Milan, lançado em 1989 pela Editora Record, ganha
agora, em 2014, nova edição, atualizada, com prefácio da autora.
Literatura na Arquibancada reproduz abaixo o texto de
apresentação da primeira edição, além do primeiro capítulo da obra.
Sinopse (da
editora):
Introdução
Por Betty Milan
A cultura francesa privilegia o droit, a inglesa o fair play e a espanhola el honor. Nós, brasileiros, privilegiamos o brincar. Aconteça o que acontecer, nós brincamos, porque para isso podemos prescindir de tudo, só precisamos da imaginação. O samba que o diga:
Com pandeiro ou sem pandeiro
E, ê, ê, ê, eu brinco
Com dinheiro ou sem dinheiro
E, ê, ê, ê, ê eu brinco
(PEDRO CAETANO e
CLAUDIONOR CRUZ, 1944)
Tanto podemos
abrir mão do pandeiro quanto do dinheiro por sermos capazes de improvisar o que
desejamos, valendo-nos do que estiver ao alcance da mão. Os brasileiros
de todas as classes são escolados na improvisação, que pode mesmo ser
considerada um traço cultural.
Essa tendência
se manifesta claramente, por exemplo, no Carnaval, festa em que é hábito
recorrermos ao que está no armário para fazer a fantasia. Assim, a partir de um
top chegamos a uma bailarina, acrescentando
apenas um saiote de tule e um chapeuzinho redondo feito com tampa de caixa de
queijo e tecido bicolor. Uma frente única, um fuseau e alguns colares de pérolas falsas compõem a roupa da
fantasia de turca, que só requer a compra de um chapéu — a menos que também o
façamos em casa com feltro e pingente de borla.
“Queres ir ao
céu?”, pergunta o narrador de uma delas, já respondendo: “Toma o pó de
pirlimpimpim”. Pó que, nós, crianças, tomávamos para com os personagens
desembarcar na Lua, ver São Jorge espetar o dragão de língua vermelha com ponta
de flecha e olhos de fogo. “Queres encontrar Branca de Neve, Peter Pan, Capitão
Gancho, Dom Quixote e Sancho Pança, Aladim e Xerazade reunidos? Senta no tapete
voador para ver”. E nós assistíamos à chegada simultânea deles todos no Brasil.
Somos formados
desde pequenos para inventar e, por isso, o futebol brasileiro é
particularmente criativo, produzindo jogadores capazes de fazer o impossível
acontecer, propiciar a experiência da surpresa de que necessitamos para aplacar
a nostalgia da infância, época em que todo dia deparávamos com alguma novidade
absoluta. O estilo do nosso jogo é o de um povo que se entrega à imaginação
porque vê nela uma saída.
Interessa aqui
focalizar o estilo deste povo e, para isso, nós atravessaremos o país da bola,
indicando o que faz do football o
futebol e dos nossos jogadores, figuras lendárias. Na travessia, o leitor
enveredará pelo Brasil que faz sonhar, o Braaasilll, e ele talvez se diga que o
gol bem pode nos representar.
FUTEBOL ESPERANÇA
Tamanha paixão
que o calendário esportivo serve para tudo rememorar — até a data do casamento,
como na briga de marido e mulher narrada por um radialista mineiro:
— Você só pensa em futebol. Vai ver que já
nem lembra do dia do nosso casamento, diz a esposa.
— Claro que me lembro! Foi na véspera de um
jogo entre o Santos e o Corinthians, jogaço, Santos 4 a 1.
Os homens
brasileiros sabem de si pelo futebol, cujos fatos conhecem a ponto de descrever
gols ocorridos décadas atrás, a formação da jogada, a reação do
goleiro etc.
— Você reza?
— Às vezes.
— Às vezes como?
— Andando de avião eu rezo.
— E quando mais?
— Quando o meu time joga, o Botafogo.
O sujeito ora
pela vida e pela vitória do time, que é a da identidade. Ora para conjurar o
risco da ferida narcísica que o fracasso imporia. Do jogo depende o seu ser,
que assim se diz no cotidiano através das expressões do futebol.
Sentindo-se
querido ou cobiçado, o brasileiro garante que o outro lhe “deu bola”. Tendo
enganado o opositor, vangloria-se com o verbo “driblar”. Tendo se enganado,
confessa que “pisou na bola”. Se excluído de atividade ou grupo, está “fora da
jogada”. Se em dificuldade, mas com intenção de vencer, vai “derrubar a
barreira” e então clama “bola pra frente”. Caso, no entanto, abra mão da luta,
anuncia que “tira o time de campo”. Ameaça aposentar-se “pendurando
as chuteiras”, seja homem ou mulher, presidente da República ou cantora de
sucesso. O ex-presidente Jânio Quadros, eleito prefeito de São Paulo, então não
mandou pendurar as suas no gabinete, para assim garantir que nunca mais se
candidataria? Elis Regina declarou à imprensa que teria um dia a dignidade de
“pegar a chuteira e pendurar, porque aí já era”.
Tanto pela
tática quanto pelo modo de falar do jogo, diferenciamos um país do outro.
Assim, em entrevista a Marguerite Duras, Michel Platini diz que o futebol não
tem nenhuma lei e não é necessariamente o mais forte que ganha. Basta o goleiro
escorregar e a seleção perde. Acrescenta que não terá sido culpa daquele, pois
o futebol é feito de erros. Ninguém errasse, o resultado seria 0 a 0 — jogo
perfeito, mas sem nenhum gol.
A interpretação
de Platini é, para nós brasileiros, absolutamente surpreendente. Jamais
assimilaríamos o escorregão ao erro. Tendemos antes a pensar no azar, invocar
uma força desconhecida para a explicação do fato. Para os franceses, o limite
da sua ação está no desempenho. Já nós nos consideramos sujeitos a algo que nos
ultrapassa, que não podemos controlar e é absolutamente determinante. Por outro
lado, jamais nos ocorreria que o jogo pudesse ser perfeito sem gols. Só o seria
por uma goleada excepcional e lances inacreditáveis. Em suma, pela irrealidade.
O critério da excelência da partida é a sua magia.
À criança
europeia, o adulto ensina com Chapeuzinho Vermelho a não desobedecer e com
Pinóquio a não mentir. À brasileira, ensinamos com Emília, personagem de
Monteiro Lobato, a fazer de conta. Vira e mexe, a ousada boneca zomba da “gente
grande”, que é “bicho bobo”,
pois desconhece
“essa coisa tão simples que é o faz de conta”, permite negar a geografia e a
cronologia, encontrar o herói grego Belerofonte no Sítio do Pica-Pau Amarelo e
os moradores desses confins paulistas na Grécia de Péricles.
Através da
boneca, Lobato faz pouco de quem “não sabe se regalar com as delícias do
brincar”, incitando a criança a desconfiar do adulto e este a gozar ainda das
regalias daquela, desrecalcar-se tomando e distribuindo, se preciso for, o pó
de pirlimpimpim, como supostamente fazia Pelé, segundo um torcedor.
O fato é que nós
muito brincamos. No cotidiano, fazendo pouco do que nos incomoda ou mesmo
fazendo de conta que é outra a realidade. O ano inteiro brincando com a pelota
e todo ano no Carnaval. Se para jogar não dispusermos de bola oficial,
improvisaremos uma. Que se
faça uma bola
com as meias disponíveis no quarteirão! Se para sambar não
houver instrumento, com uma lata qualquer nos bastamos:
Já que não temos pandeiro
Para fazer a nossa batucada
Todo mundo vai batendo
Para poder formar no samba
Para entrar na batucada
Fabriquei o meu pandeiro
De lata de goiabada
Sai do meio do brinquedo
Não se meta, Dona Irene,
Porque fiz o meu pandeiro
De lata de querosene...
(JOÃO DE BARRO e
ALMIRANTE, 1931)
Jogar futebol no
Brasil é, portanto, natural. Se o menino inglês, italiano ou francês chega ao
clube para aprender, o nosso já chega fazendo tudo com a bola e dizendo que,
tirante o goleiro, ele brinca nas dez posições. O treinador não ensina o
primeiro chute, seleciona entre moleques capazes de amortecer a bola em plena
corrida, driblar e chutar com os dois pés.
Ganhando a Copa
ou não, somos campeões na paixão pelo jogo, que nos dá a certeza de sermos quem
imaginávamos e confirma assim a identidade. Mais ainda: ele oferece a realidade
igualitária com que sonhamos. O futebol, no Brasil, não é exclusividade de
ninguém. Quem não joga no clube joga na várzea ou na praia. Qualquer um pode,
desde que no time haja vaga e o candidato tenha a palavra certa para entrar. O
que vigora é a regra, a civilidade.
A todos, pois, é
dado brincar e mesmo tentar a sorte na vida pelo jogo, onde só o desempenho
conta. “Ninguém pode ser promovido a astro do futebol pela família, pelo
compadre ou por decreto presidencial.”
O sucesso no
jogo sendo sinônimo de talento, o futebol significa, para os deserdados, uma
promessa de renascimento. O jogador, como o sambista, não se faz pelo berço e
faz pouco do bacharelado. O grande compositor Lamartine Babo que o diga:
Para fazer meu samba
Não tirei diploma
(LAMARTINE BABO,
1931)
O fato é que,
entre nós, futebol é democracia. Todos iguais perante ele, ainda que desiguais
perante as leis.
Regras
universais inalteráveis no jogo, leis sujeitas a casuísmo na política. Razão
demais para se privilegiar o futebol, experiência de legitimidade e acatamento
das leis.
Isso explica o
ocorrido na Copa de 1970. A palavra de ordem da oposição à ditadura militar
era, então, de que se torcesse contra a Seleção Brasileira. Qual nada! A
consciência crítica não resistiu ao nosso primeiro ataque bem-sucedido. A cada
vitória dos “canarinhos” era um Carnaval espontâneo nas ruas das grandes
cidades, e, no dia do tricampeonato, o país inteiro se entregou à folia, apossou-se
das praças e das ruas, celebrando freneticamente o título.
Do Braaasilll
pudemos nos orgulhar. Deu as copas, fazendo jus à palavra democracia. No seu
espaço vigorava a lei e também a sanção. Já isso bastaria para que o país da
bola servisse de exemplo ao outro.
Nós,
brasileiros, mais nos fazemos através do Braaasilll, e é por isso que na Copa
do Mundo nos vestimos de verde e amarelo, nos apropriamos da bandeira para
agitar no estádio ou no corso e assim, torcendo, nos certificamos da unidade nacional.
Nossa identidade não se molda através do Estado, da Igreja ou da Universidade.
Os nossos heróis são os jogadores e os carnavalescos, os homens que desafiam em
campo a própria lei da gravidade e os que vemos sambar numa corola iluminada de
penas e de plumas, nos carros alegóricos da Avenida. São humanos como eu ou
serão divinas estas aparições da Maravilha?, perguntamo-nos extasiados,
querendo neles todos nos espelhar.
Sou quem?,
indaga o nosso guri, sabendo-se do povo de Pelé, já dependendo do futebol para
amar a si mesmo, comemorar nas ruas a sua existência ou se recolher arrasado
pela derrota. Quem se esquece do silêncio que na Copa de 1986
tomou o país, se alastrou como a peste, esvaziando as ruas da cidade? O jogo
contra a França perdido por um pênalti! Teria mesmo sido possível?, indagávamos
sem falar, pois que brasileiramente não fazíamos alarde da tristeza.
Adeus, vitória!
De luto
estávamos porque, no Brasil, o futebol nos leva ao céu, mas também pode se
converter numa tragédia.
Assim foi em
1950.
Sobre a autora:
Betty Milan é
paulista. Autora de romances, ensaios, crônicas e peças de teatro. Suas obras
também foram publicadas na França, Argentina e China. Colaborou nos principais
jornais brasileiros e foi colunista da Folha
de S. Paulo e da Veja. Trabalhou
para o Parlamento Internacional dos Escritores, sediado em Estrasburgo, na
França. Em março de 1998, foi convidada de honra do Salão do Livro de Paris,
cujo tema era o Brasil. Antes de se tornar escritora, formou-se em medicina
pela Universidade de São Paulo e especializou-se em psicanálise na França com
Jacques Lacan.
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