Todos sabiam o que iria acontecer, mas os líderes
políticos do país decidiram aceitar o desafio de sediar mais uma Copa do Mundo
no Brasil. Às vésperas do início da maior competição do futebol mundial,
denúncias de todos os tipos pipocam na mídia. Mas o que poucos até agora se
preocuparam diz respeito às negociações entre o governo, a CBF e a Fifa, pela
realização do evento.
Somente um repórter investigativo como o correspondente
do jornal O Estado de S. Paulo, na Suíça, Jamil Chade, poderia revelar os
bastidores destas “armações”. O resultado de tantas falcatruas é a triste marca
da “Copa mais cara de todos os tempos”.
Após dez anos acompanhando esse processo da Copa no
Brasil, Jamil Chade brinda os amantes da literatura esportiva com o livro "A Copa Como Ela É - A história de dez
anos de preparação para a Copa de 2014" da editora Companhia das
Letras. A primeira versão da obra tem versão apenas em e-book, mas em breve,
provavelmente após a Copa do Mundo, sai a edição imprensa e ampliada.
Sinopse (da
editora):
Durante dez anos, o jornalista Jamil Chade acompanhou de
perto as negociações que culminaram na escolha do Brasil para sediar a Copa do
Mundo de 2014, bem como todas as polêmicas que se seguiram ao anúncio.
Correspondente de O Estado de S. Paulo
na Suíça, Chade teve acesso privilegiado aos corredores da Fifa e às principais
figuras que movimentaram o grande balcão de oportunidades que se tornou o Mundial.
Em A Copa como ela é, o jornalista
expõe as tenebrosas transações entre CBF e governo, e mostra como duas
entidades supostamente sem fins lucrativos tornaram a Copa de 2014 no evento
mais rentável de suas histórias. Seguindo a trilha do dinheiro, Chade revela
como políticos e cartolas se apropriaram de um torneio que, se não trouxe ao
país as benesses prometidas durante a campanha, serviu para encher os bolsos de
uns poucos na mesma medida que atacou os cofres públicos.
Introdução:
A pátria em
chuteiras indignadas
Por Jamil Chade
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Obras do Aeroporto de Guarulhos, SP. |
Já dizia Nelson Rodrigues que “o pior cego é o míope, e
pior que o míope é quem enxerga bem, mas não entende o que enxerga”. A Copa do
Mundo de 2014 está prestes a ocorrer e todos sabemos que, assim que a bola
rolar no dia 12 de junho no estádio em Itaquera, as atenções estarão
concentradas no que ocorrerá dentro do campo. Se a seleção ganhar — e todos
torcem para que esse seja o cenário — nada mais justo que comemorar.
Mas quando a festa acabar, a pergunta que todos teremos
de fazer é uma só: que país é o Brasil após essa Copa? Quais princípios
deixamos pelo caminho? O que descobrimos que somos capazes de realizar? Até que
ponto a sociedade do país do futebol se confrontou no espelho com essa imagem
e, sem complexos, mostrou ao mundo que o país do futebol não é sinônimo de país
dos tolos?
Neste livro, o objetivo é mostrar como essa preparação do
Brasil para receber a Copa custou uma década inteira. Não se trata, como diria
o cronista, de criticar até minuto de silêncio. Mas precisamos ser claros sobre
quem está ganhando, quem está perdendo e quem está pagando a conta desses
megaeventos.
Antes mesmo de a bola rolar na Copa de 2014, insisto: é
preciso garantir, na reta final das obras, das isenções tributárias e dos
lucros de alguns poucos, que as contas sejam transparentes, democráticas. E
garantir que, no final, alguém se responsabilize por tudo isso. E se tudo isso
vier com uma taça, ainda melhor.
Vivendo na Suíça há mais de uma década, já posso dizer:
assim que a Copa terminar em 2014, a Fifa desmontará seu circo e partirá para
seu próximo empreendimento. E restará a nós contar os lucros, os mortos e
feridos.
Nelson Rodrigues insistia muito em apontar que a vitória
do Brasil na Copa de 1958 deu um desfecho a um longo período em que vivemos um
complexo de vira-lata, um período de Jeca Tatu. “O brasileiro se punha de
cócoras diante do mundo. Isso aconteceu no curto período entre 1500 e 1958, de
Cabral a Garrincha”, escreveu.
Os novos megaeventos teriam, para alguns governantes, o
mesmo efeito de superar essa realidade, mas desta vez numa dimensão ainda
maior, política e econômica.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2009,
insistiu que, quando o Rio de Janeiro ganhou o direito de sediar os Jogos
Olímpicos de 2016, o Brasil ganhou um novo tipo de reconhecimento
internacional. O governo não perde até hoje uma só oportunidade para dizer que
quer mostrar ao mundo que tem a capacidade de organizar um megaevento.
A bola está prestes a rolar e ninguém tem a coragem de
dizer que não gostaria de ver o Brasil campeão. Mas entre torcer e distorcer, a
distância é grande.
Sem ilusão, não podemos deixar que uma eventual vitória
nos impeça de ver para além do papel picado, ou que elogios no exterior sobre
os estádios nos façam acreditar que tudo valeu a pena. Não estamos mais em
1958, quando muitos ainda questionavam se fazíamos parte da família das nações
civilizadas.
Se tomarmos as promessas feitas há sete anos, quando a
Fifa escolheu o Brasil para sediar seus eventos, o número de mentiras que nos
foi contado é amplo. Disseram que todos os estádios seriam feitos com dinheiro
privado. Disseram também que nem Ricardo Teixeira nem João Havelange estavam envolvidos
no maior esquema de corrupção do esporte moderno. Já a empresa — e é assim que
chamo a Fifa — terá o Mundial com o maior lucro de sua história, e sem pagar
impostos no Brasil.
A Copa é um teste da imagem internacional do Brasil. Mas
não como os dirigentes nos apresentam. O que está em jogo é nossa capacidade de
questionar e cobrar os dirigentes, de não permitir que nomes de corruptos sejam
emblemas de estádios públicos e que esses eventos beneficiem a muita gente.
Cabe a nós garantir que os monumentos construídos com nosso dinheiro não se
transformem em monumentos que testemunhem uma oportunidade perdida. Que a
pátria continue orgulhosamente sendo uma pátria em chuteiras. Mas chuteiras
indignadas.
Após os protestos que ocorreram durante a Copa das
Confederações, muitos apontaram a incoerência entre torcedores comemorando a
conquista brasileira e, ao mesmo tempo, saindo às ruas para protestar. Mas o
que ocorreu na Copa das Confederações não foi nem ironia, nem provocação e nem
incoerência. Foi um alerta: não queremos ver o futebol sequestrado por uma
quadrilha de corruptos que joga com a emoção das pessoas. A seleção será sempre
apoiada. Mas não os cartolas.
No fundo, os estádios se transformaram em caixas de
ressonância de uma sociedade que pedia mudanças em todos os aspectos. Mas nem
por isso deixava de torcer.
Mesmo com o Maracanã sitiado pelas forças de segurança e
blindado para evitar protestos, o grito das ruas que tomou o Brasil entrou no
estádio. Basta lembrarmos do jogo entre Espanha e Taiti, em 20 de junho de
2013. Apesar do forte esquema de segurança montado pela polícia, dezenas de
pessoas com cartazes conseguiram furar o bloqueio da Fifa. Aos vinte minutos do
segundo tempo, um grupo levantou faixa e puxou o grito de “O Maraca é nosso”,
entoado instantes depois por mais uma boa parte da torcida. Era um recado
contra a privatização do estádio.
Depois de “O povo unido jamais será vencido”, quase toda
a arquibancada cantou o Hino Nacional. Com um placar que já mostrava uma
goleada para a Espanha, o que menos importava era o jogo. Os gritos contagiaram
até mesmo os voluntários da Fifa, que também se uniram ao coro e aos aplausos.
Por alguns minutos, um dos palcos mais sagrados do futebol se transformou numa
caixa de ressonância das ruas.
Bem que a cúpula da Fifa tentou ignorar a realidade:
Joseph Blatter, presidente da entidade, declarou em uma entrevista que me
concedeu no Copacabana Palace que o futebol era “mais forte que a insatisfação
popular”. No mesmo dia, foi a vez de Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa,
apostar que “bastará o Brasil ganhar a Copa para tudo ser esquecido”.
Instalada em seu palácio no Rio de Janeiro, a corte de
José Blatter não poderia estar mais perplexa e alheia. Em meio à música
ambiente, jantares de luxo, quartos de príncipes e até avião privado para
levá-los pelo país, a “nobreza” da Fifa simplesmente não soube o que dizer
diante da realidade das ruas. A equação não fechava. Como é que o país do
futebol esperou por décadas para ter um evento e, quando finalmente recebe o torneio,
sai às ruas contra a Fifa e os gastos públicos da Copa?
Seja qual for o discurso usado pela Fifa, a constatação é
que ela não entendeu onde a Copa está sendo realizada e muito menos que, numa
sociedade democrática e caminhando para a maturidade, não é a bola que vai
atender aos anseios da população.
Durante a Copa das Confederações, a presidente Dilma
Rousseff descobriu o risco de se associar ao futebol. Na abertura do evento,
foi vaiada por 70 mil pessoas e decidiu simplesmente não comparecer à final. Os
políticos que viram a Copa ou mesmo os Jogos Olímpicos de 2016 como
oportunidades para se promover e dar um impulso a suas carreiras, hoje
perceberam que são justamente esses eventos que os estão ameaçando.
Para os países emergentes, a Copa, os Jogos Olímpicos e
outros grandes eventos se transformaram em braços de uma estratégia de projeção
internacional. São, na realidade, atalhos para saltar etapas no reconhecimento
global. Pequim realizou os Jogos de 2008 e mostrou que tem pretensões de
superpotência. A África do Sul teve a Copa de 2010 e insistia em mostrar uma
nação unida. A Índia organizou em 2012 o Commonwealth Games, o Brasil terá seu
Mundial e seus Jogos Olímpicos e a Rússia teve os Jogos de Inverno em 2014 e
terá a Copa de 2018. Para se alcançar um ganho de exposição similar via
diplomacia, seriam necessárias décadas de trabalho.
Não é por acaso que Putin, Lula, Mandela e outros líderes
estiveram pessoalmente envolvidos nos esforços de trazer esses eventos a esses
países. Também não é por acaso que nunca se investiu tanto nesses eventos como
nos países emergentes. O Brasil vai sediar a Copa do Mundo mais cara da
história. E Rússia e Catar vão superar essas marcas.
No Brasil serão R$ 28 bilhões, três vezes mais que a
Alemanha em 2006. Só o custo do estádio de Brasília já o coloca entre os dez
mais caros da história no mundo.
A Copa é o maior evento popular de um mundo globalizado.
Cumpre um papel equivalente às exposições universais do século XIX. Mas de
pouco valem essas plataformas internacionais de exposição se, internamente, os
países vivem ainda sérios problemas. A Copa é sim um espelho de uma nação. Mas
o problema é que o espelho mostra tudo.
Dou um exemplo: uma pesquisa realizada pelos
organizadores mostrou que menos de 1% dos torcedores que foram aos jogos da
Copa das Confederações ganhavam um salário mínimo.
Num país em que se recusa a admitir seu racismo, a
elevação dos preços dos ingressos “branqueou” as arquibancadas e tirou, pelo
menos por algum tempo, o caráter democrático do futebol. A constatação é de
que, mesmo que tenhamos todos os estádios prontos, avenidas, hotéis e
aeroportos, o trabalho de construir uma nação justa está longe de terminar. E
não há conquista em campo que sirva de atalho para isso.
Portanto, se esses eventos esportivos são reflexos do
novo poder geopolítico no mundo, eles também servem para mostrar que de fato
somos um novo gigante, mas com pés de argila.
Esse livro é apenas o pontapé inicial de um projeto mais
ambicioso: a publicação de uma história completa da Copa do Mundo de 2014.
Foram dez anos acompanhando os bastidores de um processo polêmico, bilionário
e, muitas vezes, revoltante. Em certos momentos, o futebol era apenas um
detalhe e, o dinheiro público, propriedade de alguns poucos.
Sobre Jamil Chade:
Nasceu em 1976 em São Paulo. Mestre em Ciências Políticas
pela Universidade de Genebra, já percorreu mais de 60 países como
correspondente do jornal O Estado de S. Paulo
e é colunista da Rádio Estadão. Desde 2000 vive na Suíça e, nesse período,
desvendou escândalos de corrupção, cobriu Copas do Mundo, Olimpíadas, viajou
com dois papas, percorreu a África com o secretário-geral da ONU, acumulou
prêmios de melhor correspondente brasileiro no exterior, foi finalista do
Prêmio Jabuti e agora publica seu terceiro livro. Chade é pai de dois
são-paulinos: Pol e Marc.
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