Pena que nos jornais esportivos brasileiros a crônica
tenha praticamente desaparecido. Raros são os cronistas que ainda escrevem e
quando escrevem, o problema é o espaço, mesmo com ferramentas poderosas como os
blogs, na internet.
Ele continua em atividade e segue sendo um mestre da
crônica esportiva brasileira. Já escreveu vários livros, um deles, a biografia
do atual técnico da seleção brasileira, Luiz Felipe Scolari (“Felipão, a alma
do penta” – Ed. ZH Publicações, 2002). Mas no distante ano de 1992, Ruy Carlos
Ostermann teve suas crônicas reunidas e publicada em livro: “Itinerário da derrota – Crônica de cinco
Copas do Mundo sem Pelé” (Ed. Artes e Ofícios – Organização Ricardo Russo).
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Ruy Carlos Ostermann, "o Professor". |
Desde o tricampeonato mundial no México, em 1970 o Brasil
não conquistava uma Copa. Em cada uma das competições, Ruy Carlos Ostermann,
conhecido por todos como “o professor”, estava lá, como cronista diário,
jornalista de primeiríssima linha, no rádio, no jornal ou na TV.
Literatura na Arquibancada resgata abaixo os textos de
apresentação e sobre o autor, além de duas crônicas que demonstram como, quando
bem trabalhadas, são eternas.
Sobre o autor
Por Tabajara Ruas
A inteligência é um fenômeno dinâmico e o futebol sua
metáfora. Duas equipes inteligentes em confronto poderão traçar um emaranhado
de ideias e imagens geométricas com tantas nuances quanto um Matisse (Ruy
Carlos Ostermann talvez vislumbre algo mais fluido, mais amplo e vulnerável,
mais dialético: A Bachiana nº 5, por exemplo). Ou nada disso. Todos sabem que a
essência de um espetáculo é a sua tensão e, seu fundamento, a maneira de chegar
a essa tensão.
O futebol tem um recurso simples: coloca, frente a
frente, onze homens determinados a impor sua vontade a outros onze. Durante
duas décadas essa arte centenária encontrou nos campos brasileiros seus
melhores atores. Foi a era de Pelé, o Rei. Essa era teve um cronista digno da
grandeza que testemunhava. Ruy Carlos Ostermann foi e é o maior cronista
esportivo brasileiro não só por saber ver com agudeza e isenção. E nem pela
curva da frase, pelo topázio da palavra acariciada, pela concisão ou pelo
delírio, mas pela qualidade de seu cotidiano exercício de estética e ética.
Eram bons anos para o futebol, mas não para o país. A ditadura preparava o abismo
de hoje, destruindo valores essenciais da convivência social, tão necessários
atualmente como emprego, saúde, educação, moeda estável, craques.
Como tudo neste país, a crônica esportiva também se
deteriorou, tornando-se aborrecida pela falta de ideias e de ética, pelo
clubismo primário e pelo fanatismo torpe. As crônicas de Ruy Carlos Ostermann
resistem. Límpidas, acossadas às vezes por furacões de conceitos, outras vezes
dando rodopios, buscando longamente a brecha, dispersiva e brilhante como o meio
campo da Seleção de 82, Espanha, as crônicas de Ruy perseveram no rigor
profissional que exige a atividade pública. É um cronista de opinião clara,
sim, senhor, mas o pensamento oposto, o dissidente, o contrário tem lugar nas
entrelinhas do seu texto.
Nas crônicas de Ruy está (explicado, intuído, evocado) o
passe de Dorinho, a retranca de Galego, a arrancada de Renato, mas está o
jacarandá visto da janela do carro, a sedutora ambiguidade das mulheres, o
prazer de abrir um livro de poemas, a silenciosa comoção de quando se apagam as
luzes e tem início o filme de Bergman. Crônicas são efêmeras, é verdade. Apenas
o grande cronista possui o dom de criar impressões e imagens que voltam à nossa
memória, esparsas, de surpresa, como volta, algumas vezes, por exemplo, um
amigo perdido, uma paisagem de infância, aquela defesa do Banks na cabeçada de
Pelé.
Sobre o livro
Por Ricardo Russo
Era tempo.
Fui alimentado com farinha e futebol. Época de pouca
liberdade e um ditador. Ou melhor, ditadora soberana nas esquinas do milagre,
do ame-o ou deixe-o. Ela, a bola. Branca feiticeira em nossos sonhos
adolescentes de espinhas e “peladas”. Nos intervalos, Érico, Machado, Dyonélio
e filme de Kung-Fu.
E o futebol tinha que ser assim também; literatura e
arte. As crônicas de Ruy juntavam os ingredientes (talvez porque um
comentarista-filósofo, ou um filósofo-comentarista?). Não queríamos o jogo seco
do campo, mas a palavra certa para explicá-lo. Desejávamos, sim, a paixão, mas
sem a parcialidade fácil. Uma paixão como instrumento de arte. Um homem apenas
apaixonado jamais será fiel. E a fidelidade à mecânica do jogo, ao atleta
brilhante, à bola delicada, ou à jogada viril. Esta é a fidelidade do Ruy. Mas
o professor forçava-nos a recortes de jornais, a pastas e arquivos, com o que o
espaço diminuía mais e mais. Até que surgiu essa ideia. Um alívio para estantes
e prateleiras.
Então me vejo entre estes recortes amarelados, incumbido
da responsável tarefa de escandir, garimpar textos. Extrair do passado do
futebol (e, portanto, também o meu passado) toda a gema superior. Recordo
Guilhermino César, dizia que o pesquisador, enfim, deve ter coragem de
abandonar coisas ótimas em detrimento do objetivo da pesquisa. Árduo, professor
Guilhermino.
Este cronista não é apenas um escrevinhador (sic) de
futebol. Dizem que, às vezes, usa o esporte como meio. Se, depois da derrota
doída para a França, o amigo procurar uma crônica redentora, falando de táticas
e erros técnicos, encontrará um professor distraído entre comidas, viagens ou
plantas. É uma maneira de encarar a dor. Portanto, não espere um livro comum,
nem poderia sê-lo.
Não escolhemos, simplesmente, crônicas. O material exigia
mais – uma leitura que recuperasse o texto, sim, mas também a sensibilidade do
comentarista diante do fato. Desse modo, há uma subleitura feita a partir do
fracionamento do texto, da reordenação dos acontecimentos. Assim pensamos que
há de se enriquecer o verbo do escritor.
Aqui vamos recompor os mundiais fracassados, a era
Pós-Pelé, a derrota. Articulando partes de textos, prenúncios do comentarista,
afirmações comprovadas com o tempo. É a história em que, tenho certeza,
mergulharemos no passado refletido. Mas não poderia ser apenas um. Desse modo,
os textos selecionados, em breve, comporão mais dois outros volumes. O segundo
da série falará de atletas, juízes e historinhas. E a trilogia se completará
com literatura pura; viagens, gastronomia, passeios em Porto Alegre ou Madri.
Circunstâncias gerais que o olho agudo do cronista percebe. Enfim, matéria para
todos os palatos.
Ora, são mais de vinte anos de trabalho diário.
Era tempo.
*
Antecedentes
Por Ruy Carlos
Ostermann
O último treino da Seleção não teve Rivelino e foi mais
rápido, informam os observadores. Alguns tratam de explicar: foi porque sem
Rivelino todos tiveram que trabalhar mais e, assim, acabaram se movimentando
mais. Em parte é verdade, mas eu prefiro pensar que a Seleção joga demais nas
costas de Rivelino. Até porque ele gosta, lhe faz bem, justifica seu ego de
estrela. E também porque não há outro talentoso e imaginativo para fazer como
ele na seleção. Coutinho, se já sabia desta dependência da seleção, deveria ter
acendido um liquinho e saído pelo país a perguntar por um substituto para
Rivelino. O leitor dirá, com a sabedoria de quem já ouviu esta história antes,
que não existe um substituto para Rivelino. O treino da sexta-feira dá uma
pista.
Rivelino não treinou, foi poupado. O que fez Coutinho?
Chamou Batista, deu-lhe a tarefa de Cerezzo. Chamou Cerezzo, deu-lhe a responsabilidade
de ser Rivelino. E, no mais, tudo bem. Quer dizer, na seleção o substituto de
Rivelino é Toninho Cerezo. Nem discuto se está certo, concluo apenas que talvez
não haja outra solução. Rivelino é uma espécie em acelerada extinção.
Centraliza o jogo, para o fluxo do time, dispara o passe, inverte as direções.
E pede bola. Assim era Gérson na seleção de 70. Foi Danilo Alvim em 50, Didi em
58 e 62. Não foi ninguém em 66. Deveria ter sido Rivelino em 74. Como se vê,
uma questão antiga, de barba branca, obras completas encadernadas na estante,
muito respeito no futebol. Aliás, entre as novidades semânticas de Coutinho
está esta velharia do dono do time. Intacta, com vinhetas art-nouveau, caindo da linha tipográfica dos últimos enunciados
teóricos da Granja Comary.
*
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Chicão, em lance contra a Argentina, COPA 1978. |
Agora se sabe: o campo piorou de Janeiro para Junho, os
europeus não repararam na mesma coisa e até se aproveitaram disto, o jogo da
seleção deve ser considerado artístico, milimétrico e inadequado para uma Copa
do Mundo nestas condições precárias de campo, a atitude dos zagueiros europeus
é a pior possível com relação aos frágeis atacantes brasileiros. Por estas
razões absolutamente surpreendentes e inesperadas, a seleção deve mudar de jogo
e de jogadores. Antes de mais nada, a questão agora é ficar de pé diante dos
europeus. E o jogo bonito, mas inadequado para a Copa da Argentina, será
substituído pelo grosseiro jogo aéreo e será feito por jogadores pesados e
possivelmente também grosseiros.
Em linhas gerais este é o resumo da entrevista coletiva
dada por Coutinho, ontem à tarde, na Villa Marista, diante de um grupo de
repórteres de rádio simplesmente desorientados com a possibilidade de que o
técnico viesse a dizer uma rigorosa novidade.
Coutinho já decidiu quem vai entrar no time. Suponho que
ainda não decidiu quem tirar. De qualquer modo, anunciou que já sabe e que vai
primeiro falar com os jogadores. Só depois, e na hora do jogo, anunciará quem
sai, quem entra. Se devem ser grosseiros, não é difícil identificá-los. Chicão
pode ser um deles.
Usa bigodes, faz a barba de dois em dois dias, deixa cair
a calça do abrigo e enrola a sobra abaixo da barriga, bate na bola como se
desse um tapa em criança e calça 44. Joga duro, é desapiedado na frente dos
zagueiros. É um lenhador da Geórgia. Roberto é outro. Tem dente de ouro, chuta
de canela, dribla com o joelho, cabeceia com a nuca, sorri como se tivesse uma
dentadura de aço que impedisse os lábios superiores de um movimento uniforme e
dedicado de reposição.
Um terceiro pode ser Jorge Mendonça. É de São Paulo, joga
no Palmeiras e, se não é grosso, poderia ser pelo tamanho.
O problema é que esse critério de aproveitamento
biométrico dos jogadores foi recém-inaugurado na seleção. Passamos do atelier
para a serraria.
Nota do Literatura
na Arquibancada: Ruy acertou em dois casos. Jorge Mendonça e Roberto foram
titulares. E Chicão entrou no segundo tempo, no lugar de Toninho Cerezzo. O
Brasil ganhou da Áustria, com o magro placar de 1 a 0, garantindo passagem para
as oitavas-de-final da Copa.
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