60 anos de Sócrates:
Parabéns Magrão
Por André Ribeiro
Ele não exerceu a medicina nos gramados, mas tornou-se o
médico mais famoso desde que o futebol brasileiro começou a ser praticado no
Brasil. E agora, em 19 de fevereiro de 2014 estaria completando 60 anos.
Sócrates, o nosso “Magrão”, digo nosso, porque sou
corintiano, partiu na madrugada do dia 4 de dezembro de 2011. Deixou-nos fisicamente,
claro, porque entre nós ficará seu legado da luta e posicionamento firme nas
questões que envolvem o homem, no futebol, e, principalmente, na vida, como
cidadão. Os puristas, nos dias de internação do jogador, espalharam a
hipocrisia pelos quatro cantos criticando suas posturas fora dos gramados,
quando, de cabeça em pé, admitiu o alcoolismo. Sócrates viveu a vida e ponto.
Esse mesmo homem que muitos criticaram, foi entrevistado
pelo escritor britânico Alex Bellos para o livro “O Brasil em Campo”, tradução
de “The Brazilian way of Life” (Editora Jorge Zahar, RJ, 2002). O texto abaixo
que o Literatura na Arquibancada apresenta, foi editado, pois o capítulo
exclusivo ao “Doutor” da bola e da vida, é bem maior. Mas aí está um bom
“espelho” do que Sócrates, o pensador da bola, deixou como reflexão para nós
que ficamos.
Aqui, no Literatura na Arquibancada você pode conferir
também outro livro sobre Sócrates:
E a conferir, a biografia assinada por sua esposa, Katia
Bagnarelli, mas realizada de fato pela biógrafa Regina Echeverria:
"Sócrates Brasileiro: minha vida ao lado do maior torcedor do Brasil (Ed.
Prumo). Neste link você pode acessar uma entrevista da autora sobre esse livro:
Diálogo socrático
Se o futebol brasileiro em seu apogeu é o ideal platônico
do jogo, nada mais razoável que a última vez em que o Brasil jogou seu melhor
futebol tenha sido sob o comando de um homem com o nome do mestre de Platão.
Sócrates foi capitão da seleção na Copa de 1982. Com
expressão pensativa, passada aristocrática, barba preta encaracolada, cabelos
despenteados e olhos escuros, ele parecia mesmo mais um filósofo do que um
atleta. Seu estilo de jogo também sugeria uma autoridade moral. Mantinha-se
sempre frio, raramente dando mostras da exuberância “brasileira”, nem quando
marcava um gol. Não era um caso de velocidade ou de força (seus pés, tamanho
41, eram pequenos para sua altura, 1,91m), mas de visão, passes inteligentes e
truques. Sua marca registrada era o calcanhar. Pelé disse que Sócrates jogava
melhor para trás do que muitos jogadores jogavam para a frente.
Ao lado dele em 1982 estavam Zico e Falcão, um meio-campo
dos mais fortes que já vestiu a camisa canarinho. O time foi derrotado pela
Itália por 3x2, ou mais precisamente por Paolo Rossi, que marcou todos os gols
italianos. Apesar de não ter ganho o título, a turma de 82 é lembrada com mais
carinho do que qualquer outra desde 1970 – muito mais, sem dúvida, do que os
campeões de 1994, quando a vitória teve um gostinho amargo pelo fato de o time
ter jogado defensivamente e vencido a final nos pênaltis. Em 1982, o Brasil era
Brasiiiiiil; parecia jogar por puro divertimento.
Lembro de Sócrates nas copas de 1982 e 1986 mais
vividamente do que qualquer outro jogador brasileiro. Quando vim para o Brasil,
aprendi logo que também era igualmente excepcional por suas atividades
extracampo. Passou a ser o jogador que eu mais queria conhecer. Sócrates
iniciou sua carreira no futebol quando estudava medicina. Depois de pendurar as
chuteiras, retomou os estudos, formou-se e abriu uma clínica multidisciplinar
de medicina esportiva em Ribeirão Preto. Seu apelido é “Doutor”.
Porém, o mais importante, Sócrates era um militante.
Conseguiu politizar o futebol de um modo que o Brasil jamais havia visto.
Jogadores geralmente são das classes trabalhadoras, pobres e sem acesso à
educação. O Doutor foi um garoto de classe média brilhante que incutiu seu
idealismo esquerdista em seus colegas e acabou assumindo um papel no
desdobramento dos destinos políticos de seu país.
Quando quis conversar com um “expert” sobre a situação do
futebol brasileiro, raciocinei que Sócrates seria um excelente oráculo.
Provavelmente não existe ninguém mais qualificado.
Sócrates é conhecido por sua independência. Fala o que
quer quando quer. Nunca teve um empresário. Se você quiser falar com ele é só
ligar para seu celular, que atende pessoalmente. Combinamos um almoço num bar
de São Paulo. Quando chego, o bar está quase vazio. Sócrates está sentado
sozinho, usando um par de óculos espelhados e com um cigarro numa das mãos. Tem
um chope com colarinho na mesa à sua frente. Dá mais impressão de um roqueiro
envelhecido do que de um antigo astro do esporte. Tem o cabelo preto cortado
curto. Sua barba, apesar de aparada, permanece resolutamente desgrenhada e já
meio grisalha.
Eu me apresento. Sócrates tem uma voz grave de fumante e
o sotaque do interior paulista. Como um bom brasileiro, me dá as boas-vindas
como se eu fosse um velho amigo. Uma vez tendo começado a falar, não pára mais.
Então, Doutor, pergunto, qual é o seu diagnóstico?
(...)
O futebol mudou, começa Sócrates, porque o Brasil mudou.
“O país se tornou basicamente um país urbano”, diz. “Antigamente, não tinha
muito limite – você podia jogar bola na rua ou em qualquer lugar. Com as
mudanças sociais e estruturais, é muito mais difícil ter espaços para isso
atualmente. Então qualquer relação que você tenha com o esporte hoje tem algum
tipo de normatização”.
(...)
Sócrates diz que o outro problema estrutural é que o
futebol brasileiro ficou mais branco. Os negros, argumenta, têm maior aptidão
natural. Mas você não é branco?, retruco imediatamente.
“Na verdade tem um negro dentro de mim”, provoca.
Sócrates ri com os dentes fechados. É bem-humorado e sensível ao longo de toda a
entrevista. Faz graça de si mesmo sem nunca perder a seriedade.
(...)
“Eu sou branco mas tinha um nível de futebol para jogar.
Isso nem sempre é verdade em nosso país. Privilégios podem existir em todos os
níveis. Se tivermos uma relação pessoal ou política ou familiar, poderemos
privilegiar essas pessoas em detrimento talvez da capacitação”.
(...)
“Tive que desenvolver isso (jogar bem mesmo sendo
branco) por necessidade. Eu sou um cara absolutamente a favor da criatividade.
Não consigo fazer nada, não consigo ficar numa consultoria porque não tenho
paciência, tenho que ir atrás de novidades. Isso faz parte de minha
personalidade. E também joguei futebol e estudei medicina. Tinha que ser mais
inventivo. Eu não tinha estrutura física para jogar futebol. Minha única
qualidade plausível é a técnica. Então tive que desenvolver uma técnica
incomparável. Caso contrário não poderia conviver nesse meio. Jamais poderia
imaginar que chegaria a uma seleção brasileira. Se não tivesse estudado
medicina eu seria um atleta mais limitado do que fui. Com certeza”.
(...)
Talvez seja minha pergunta mais juvenil. E com boa razão.
Desde 1982, quando eu tinha 12 anos, sempre quis perguntar a Sócrates se seu
nome influenciou seu caráter. Digo a ele que acho difícil dissociar o nome de
seu estilo – tanto dentro quanto fora do campo.
Descubro que a pergunta faz mais sentido do que imaginei.
“O meu nome em si não faz ninguém”, responde. “Mas é
óbvio que, pelo nome que escolheu para mim, dá para imaginar quem é o meu pai.
Ele vivia dentro da biblioteca. Então eu vivia com ele lá. Lia pra cacete. E é
essa experiência que ele passou, em particular a mim, que sou o mais velho dos
irmãos”.
(...)
Você leu Platão?, pergunto.
“Claro. Leio filósofos pra cacete. Gosto do Platão, gosto
do Maquiavel, muito do Hobbes. Depende da época, da sua cabeça, aonde você está
indo...eu leio muito, não tudo, mas gosto muito de filosofia também”.
Em 1964, ano do golpe militar, Sócrates tinha dez anos.
Um incidente acontecido dentro de casa despertou seu interesse pela política.
No dia em que os militares tomaram o poder, seu pai pegou um livro na estante
sobre os bolcheviques e queimou. “Eu nem sabia exatamente o que era, não tinha
conhecimento do que teria sido a Revolução Russa, mas me chamou a atenção o ato.
Me assustou”.
Isso plantou a semente das ideias esquerdistas de
Sócrates. “Sou filho de um processo ditatorial”, diz. “Quando entrei na
universidade, com 16 anos, comecei a viver isso: repressão dentro da
universidade, colegas que tinham que se esconder, que tinham que fugir”. Seus
preceitos éticos guiaram sua carreira no futebol (Platão teria ficado
orgulhoso). Duas décadas antes que Aldo Rebelo e o Congresso brasileiro
tentassem mudar o futebol, Sócrates fez isso do lado de dentro. Naquilo que
mais parece um capítulo oculto da história da Grécia Antiga, Sócrates fundou um
movimento de jogadores chamado “Democracia Corinthiana”.
(...)
Em 1984, aos 30 anos, ele discursou num comício para um
milhão e meio de pessoas. Fez uma promessa à multidão: caso o Congresso
aprovasse a emenda constitucional para o restabelecimento das eleições diretas
para presidente, que seria votada alguns dias depois, ele desistiria de uma
oferta que recebera para jogar na Itália. A emenda não foi aprovada, Sócrates
foi para a Fiorentina, e a era da Democracia Corinthiana estava encerrada.
(...)
Os heróis de Sócrates são Che Guevara e John Lennon.
“Pessoas de quem eu colocaria um retrato na parede de casa”, diz.
(...)
À medida que a entrevista vai chegando ao fim, fecho meu caderno
com as perguntas preparadas. (...) Pergunto se ele tem orgulho de ser
brasileiro. Ele diz que sim, definitivamente. “A cultura brasileira – essa
miscelânea de raças, essa forma de ver o mundo e a vida – talvez seja a nossa
maior riqueza. Porque ela é muito alegre, é muito pouco discriminatória, porque
é livre...É uma zona na realidade, nosso país é uma grande zona, que na verdade
é a essência da humanidade. Quando se organizou demais, a humanidade perdeu
suas características mais básicas, os instintos e seus prazeres. Eu acho que é
isso que a gente tem de melhor e é por essa razão que sou absolutamente
apaixonado por este país”.
Sobre Alex Bellos
E escritor,
radialista, filósofo e especialista em matemática, ciências e América do Sul.
Seu livro "Alex no País dos Números" foi indicado ao Prêmio Samuel
Johnson da BBC de não-ficção, e para o Galaxy National Book Award, sendo
traduzido para 20 idiomas diferentes. Também é autor de "Futebol: The
Brazilian Way of Life", obra frequentemente listada como uma das dez
melhores sobre futebol. Não por acaso, Bellos também foi autor da biografia do
eterno Rei Pelé. Morou por cinco anos
no Rio de Janeiro, de 1998 a 2003, como correspondente do jornal The Guardian.
Sócrates era diferente mesmo, tudo que leio e vejo sobre ele me fazem ficar mais fã.
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