Cinema e
Futebol. Duas paixões do povo brasileiro. Dois temas que caminharam juntos
desde os primórdios de suas criações. No início, pareciam duas linhas paralelas
que jamais se cruzariam. Para muitos “especialistas”, pela pura impossibilidade
de se reproduzir nas “telonas” a realidade das incríveis jogadas realizadas
pelos craques brasileiros.
O tempo passou.
E depois de mais de um século de história, o balanço é pra lá de positivo
quanto às conquistas de um e outro tema. E quando os dois se juntaram, vários
títulos encantaram e ajudaram a pelo menos preservar a memória desse esporte no
País.
Faltava quem
reunisse toda essa história em um livro. E quem fez isso magistralmente teria
de entender de um e de outro tema também. Foi o que o crítico de cinema Luiz
Zanin Oricchio conseguiu com o seu Fome de bola: cinema e futebol no Brasil
(Imesp, 2006). Um livro fundamental na história da literatura esportiva
brasileira.
Apresentação
Por Luiz Zanin
Oricchio
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Charles Miller |
Em 1894, o paulistano Charles Miller voltou de uma viagem
de estudos na Inglaterra trazendo duas bolas, uniformes e um livro de regras na
bagagem. Queria apresentar aos amigos um esporte que conhecera em Southampton,
o football. No ano seguinte, na
Várzea do Carmo, entre as ruas Santa Rosa e do Gasômetro, em São Paulo, seria
realizada a primeira partida de futebol oficialmente reconhecida no Brasil. Era
um domingo, 14 de abril de 1895, e, nesse dia, dizem os historiadores, nasceu o
futebol brasileiro.
Em 1896, um aparelho que mostrava imagens em movimento, o
Omniógrapho, foi instalado na Rua do
Ouvidor, no Rio de Janeiro, e chamou a atenção de curiosos. No ano seguinte,
várias outras máquinas semelhantes foram se espalhando, não apenas no Rio como
em outras cidades. Em 1898, Alfonso Segreto, um dos irmãos de uma família de
italianos dedicada a esse novo negócio do entretenimento, voltava da Europa a
bordo do paquete Brésil. Com uma
maquininha fabricada na França, registrou as primeiras imagens em movimento da
terra brasileira, algumas vistas da Baía de Guanabara tomadas do tombadilho do
navio. Era 19 de junho de 1898 e, nesse dia, também afirmam os historiadores,
nasceu o cinema brasileiro.
Foi exatamente assim? Bom, há quem diga que já se jogava
bola pelo Brasil quando Charles Miller voltou da Europa trazendo a novidade para impressionar amigos que
até então tinham o críquete como o esporte mais empolgante entre todos.
Há quem diga, também, que as tais imagens da Baía da
Guanabara, supostamente filmadas por Alfonso Segreto, na verdade nunca
existiram. Não há traço delas, nem são mencionadas em jornais ou revistas da
época.
Como saber ao certo como e quando as coisas começam?
Hoje, cinema e futebol são atividades planetárias, interessam a bilhões de
pessoas e movimentam fortunas em negócios. Mas, naquela época, o
recém-inventado cinema era uma reles atração de feira e o futebol não passava
de um jogo entre amigos, uma brincadeira inocente da elite.
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Alfonso Segreto |
É assim mesmo: quando se buscam os mitos de origem pisa-se terreno incerto, versões se contradizem ou
convivem alegremente. Neste caso, como em outros, talvez seja melhor ficar com
a sacada de um clássico faroeste de John Ford, O Homem que Matou o Facínora: se a lenda for melhor que o fato,
imprima-se a lenda. E ponto final.
Lenda ou fato, existe algo bem real em tudo isso: cinema
e futebol chegaram praticamente juntos ao Brasil nos últimos anos do século
XIX. Logo encontraram adeptos, se difundiram, caíram de vez no gosto do
público, tornaram-se populares. Seria fácil imaginar que esse esporte e essa
forma de entretenimento (porque no início o cinema não era ainda uma arte)
teriam tudo para dar-se as mãos e iniciar um diálogo intenso. Mas será que foi
assim?
Quando comentei o desejo de escrever um livro sobre a
presença do futebol no cinema brasileiro, o documentarista João Moreira Salles
riu e disse que seria o mesmo que fazer uma pesquisa sobre as escolas de samba
de Tóquio, tão pobre seria o material disponível.
De fato, à primeira vista o cinema tratou mal a grande
paixão dos brasileiros. Tão socialmente enraizado é o jogo da bola entre nós
que deveria ter rendido filmes memoráveis e em quantidades apreciáveis.
Aparentemente não foi assim. No entanto, a pesquisa revelou que o futebol, se
não recebeu tratamento à altura da sua importância, certamente viu-se retratado
pelo cinema – e em quantidade e qualidade bem superiores às que eu imaginava
antes de começar.
Já nas primeiras décadas do século XX registram-se filmes
de ficção dedicados ao futebol. Poucos. Na década de 30 há dois: Campeão de Futebol (1931), dirigido pelo
cômico Genésio Arruda, em sua primeira e única experiência na direção,
homenageando os grandes jogadores da época. Depois, em 1938, há Futebol em Família, de Ruy Costa, uma
ficção baseada em peça de Antonio Faro e Silveira Sampaio. A história é a do rapaz
em briga com o pai que não quer que ele siga a carreira de jogador de futebol.
O jovem resolve treinar no Fluminense e, com o dinheiro ganho, custeia as
despesas do curso de Medicina.
Nos comentários da época, lê-se que o filme se beneficia
da febre do futebol, propagada pela
Copa do Mundo de 1938, aquela mesma que o Brasil perdeu, mas revelando ao mundo
a magia de Leônidas da Silva, artilheiro do torneio com oito gols.
Já na década seguinte, aparece Gol da Vitória, um longa-metragem de 1946, dirigido pelo cineasta
José Carlos Burle. Trata-se de uma produção da Atlântida com Grande Otelo no
papel do jogador Laurindo, personagem que, em muitas cenas, lembra passagens da
vida de Leônidas, ainda o futebolista da hora.
Isso no cinema de ficção. Mas, como lembra o ensaísta
Jean-Claude Bernardet, os filmes de
enredo, aqueles que contam uma historinha com princípio, meio e fim, eram
antes as exceções do que a regra nos primeiros tempos do cinema brasileiro.
O grosso da produção, naquela época, eram os filmes que
hoje chamaríamos de documentais – os
cinejornais de atualidades, os filmes de cavação
ou encomenda, registros do cotidiano, todos eles exibidos com pompa e
circunstância nas casas de espetáculos e variedades, os cinemas de então.
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Brasil x Itália, Copa do Mundo de 1938. |
E, buscando esses pequenos documentários, nos damos conta
da riqueza do material filmado sobre futebol. Esses modestos filmetes registram
um sem-número de jogos, através dos quais poderíamos refazer toda a história
inicial do futebol no Brasil. A começar por um mais do que simbólico Brasil x
Argentina, de 1908, considerado o primeiro documentário sobre o futebol
realizado no País. A rivalidade latino-americana está toda lá, presente nessas
películas dos primórdios, com disputas entre brasileiros e paraguaios, ou
uruguaios. A excursão de um clube inglês chamado Corinthians foi amplamente
documentada quando ele passou por aqui em 1910 goleando todo mundo e inspirou
um grupo de aficionados a fundar um time brasileiro com o mesmo nome. Outro
desses filmes dedica-se menos a um jogo em si do que ao formidável
quebra-quebra que sobreveio no Parque Antárctica depois de um malsinado (sic) Paulistas x Cariocas. A
Copa do Mundo de 1938, realizada na França, teve seus principais jogos
documentados, e eles eram exibidos nos cinemas muito tempo depois de terem sido
disputados. Apesar de o Brasil haver perdido a semifinal para a Itália, o
cinema registra a recepção entusiástica aos jogadores, capitaneados pelo grande
ídolo Leônidas. Nesse torneio, o Brasil foi desclassificado por causa de um pênalti
discutível cometido por Domingos da Guia no atacante italiano Piola. Pois bem:
realizou-se um filme para tratar exclusivamente desse lance decisivo. Teria
sido pênalti ou não? O juiz roubara o Brasil?
Tudo isso para dizer que o futebol interessou ao cinema,
sim, e muito, e desde os primeiros tempos. O problema é que a maior parte
dessas películas se perdeu. Cinema é memória perecível, ainda mais a daquele
tempo, acumulada em nitrato, material altamente inflamável. Não temos notícia
de muitos desses filmes, a não ser por vias indiretas, como registros em
periódicos ou nas empresas exibidoras. Mesmo assim não podemos nos comportar
como se não tivessem sido feitos. Seria ignorar a História. Fazer de conta que
a Roma antiga não existiu porque dela só restam relatos, lendas e ruínas.
As relações entre futebol e cinema irão se estreitar em
períodos descontínuos. Essas relações não são lineares ou regulares, como se
poderia esperar. As trajetórias do cinema e a do futebol seguem juntas, mas não
paralelas.
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Clube Atlético Paulistano |
Na primeira década do século XX, poucos anos depois
daquela primeira pelada na Várzea do Carmo, o futebol já se tornara uma
nascente paixão do brasileiro. Alguns dos grandes clubes tinham sido fundados,
havia campeonatos em andamento, rivalidades entre torcidas, etc. Quer dizer,
estavam presentes todos os ingredientes necessários para que o jogo deixasse de
ser apenas um esporte entre outros e assumisse caráter predominante na
sociedade, mesmo que os pobres e os pretos ainda o testemunhassem à distância e
o praticassem no anonimato.
O cinema brasileiro também não ia mal, pelo menos em seu
início. Nos primeiros tempos faziam sucesso as reconstituições dos crimes
escabrosos que viraram manchetes na crônica policial da época, como o crime da
mala ou o crime de Banhados. Havia espaço também para musicais (com cantores
atrás da tela, pois o cinema era mudo, lembremos) ou melodramas. Mas eram os
filmes de atualidades que forneciam subsistência aos pioneiros, que então, vez
por outra, se aventuravam em películas de enredo.
Para se ter ideia: de 1912 em diante, durante 10 anos, apenas seis filmes de
enredo foram lançados (Gomes, 1986, p.30). Todo o resto era formado pelas
atualidades. E, nelas, o futebol estava muito presente, pois cada vez mais
fazia parte do cotidiano das gentes.
O futebol não para de evoluir e de ganhar em popularidade
ao longo das décadas. Desde a boa participação do Brasil na Copa de 1938, ser
campeão do mundo virou obsessão nacional. Mas demorou um pouco. Primeiro porque
não aconteceram as copas de 1942 e 1946, devido à guerra. Depois houve a
tragédia de 1950 no Maracanã, e assim a redenção só chegaria em 1958 na Suécia.
Com Pelé e Garrincha, o Brasil virou a coqueluche do mundo da bola e tornou-se
hegemônico entre 1958 e 1970, apesar da derrota em 1966. Mas nem só de copas
vive um país boleiro.
O nosso divertia-se alegremente com seus belos times,
campeonatos com estádios cheios, torcidas apaixonadas e, de quatro em quatro
anos, tentava firmar-se novamente no panorama internacional.
Já o cinema vivia aos trancos. Com a entrada dos
poderosos grupos estrangeiros no mercado na segunda década do século XX, perdeu
muito espaço e passou de produtor a exibidor dos filmes dos outros. Mesmo
assim, criou seus primeiros clássicos a partir dos anos 30, conheceu o sucesso
das chanchadas a partir dos 40 e tentou virar indústria com a Companhia
Cinematográfica Vera Cruz, nos 50. Nos anos 60, os rapazes do Cinema Novo
entenderam que filmes podiam exercer função crítica e discutir política. Depois
o cinema compôs-se com a ditadura, apostou no espetáculo ao longo da década de
70 e teve êxito; enfraqueceu-se aos poucos nos anos 80 e quase morreu de choque
anafilático com a vacina neoliberal que lhe aplicaram. Renasceu em meados dos
anos 90 e, redivivo, reaprendeu a gostar do futebol.
Mas de que futebol estamos falando? Porque este também
não deixara de se transformar no correr dos anos. Do amadorismo de fachada dos
anos 20 passou a profissional a partir de 1933. Excluídos de início, negros e
mulatos entraram para o esporte e lhe deram estilo único. Surgiram os grandes
astros, Friedenreich, Feitiço, Fausto, Domingos, Leônidas, Heleno, Zizinho. O
futebol viveria, mais ou menos entre o final dos anos 50 e começo dos 70, uma
fase de êxito fora do comum, que se poderia chamar de romântica não fosse esse um termo pejorativo hoje em dia. E,
finalmente, após longa etapa de adaptação ao capitalismo da bola, o futebol
brasileiro ingressaria alegremente na era global, ligando-se aos grandes
negócios mundiais de forma igualmente bem-sucedida, pelo menos no âmbito
externo.
O propósito desse livro é mostrar como essas duas linhas
– a do futebol e a do cinema – se encontram em certos pontos nodais, em filmes
que exprimem, em cada época, o que de mais significativo existe tanto na história
de um como na história do outro. Por exemplo, Alma e Corpo de uma Raça registra os devaneios nacionalistas e de
eugenia da era Vargas; Garrincha e A
Falecida discutem uma suposta função alienante do jogo; Pra Frente Brasil revela a sua
utilização política, Boleiros mostra
seu rosto humano e também a sua face dura. Com outros títulos contemporâneos
como Ginga e Sonhos de Bola, testemunha as transformações sofridas pelo futebol
na era da economia global. Estilisticamente, cada um desses filmes é típico de
sua época: o melodrama dos anos 30, o cinema-verdade dos 60, o verismo de
espetáculo dos 80, a diversidade de poéticas dos 90 e 2000, e a fusão com uma
estética da publicidade, típica do nosso tempo.
Cada um desses filmes, se soubermos fazê-lo falar,
expressa tanto um momento da história do cinema como um momento da história do
futebol e da própria história do País. É um nó de significados.
Essas máquinas de gerar sentidos estão na parte inicial
do livro, nos quatro capítulos que formam o que chamei de Primeiro Tempo deste Fome de
Bola. No Segundo Tempo, vêm as
entrevistas com alguns dos principais cineastas que dialogaram com o futebol
através dos seus filmes. Fechando essa parte, uma longa e exclusiva conversa do
autor com Pelé, bate papo que ocorreu por ocasião da estreia do documentário Pelé Eterno.
Como acontece com alguns jogos, este aqui também vai para
a Prorrogação, para a qual gostaria
de chamar a atenção do leitor. Trata-se da Filmografia,
que vale uma olhada mesmo pelos que não tenham nenhuma pretensão a pesquisador.
Ela contém algumas curiosidades, como as mencionadas brigas no Palestra e a
discussão do pênalti cometido pelo zagueiro clássico que foi Domingos. Inclui
filmes que falam diretamente do futebol ou apenas o utilizam como elemento
narrativo. Mostra, de maneira límpida, como o Brasil foi, desde o início do
século XX, um país habitado pelo futebol – e como essa onipresença social do
jogo da bola impregna o cinema, infiltra-se nele, cola-se à sua pele. O futebol
entra em campo na tela grande, mesmo que às vezes pelas portas dos fundos, sem
bater nem pedir licença.
Sobre o autor:
Crítico de
cinema, Luiz Zanin Oricchio estudou
Filosofia e Psicologia na USP. Seus artigos já foram publicados em veículos
como o caderno Ideias, do Jornal do
Brasil, e as revistas Cultura Vozes, Imagens, Cinema, entre outras. Como
repórter especializado, cobriu diversos festivais de cinema no Brasil e no
exterior. Participou como jurado em festivais e concursos de roteiros, entre
eles os da Petrobras e da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. É autor
de três livros – Cinema de Novo: um
balanço crítico da retomada (Estação Liberdade, 2003), Guilherme de Arruda Prado: um cineasta cinéfilo (Imesp, 2005) e Fome de bola: cinema e futebol no Brasil
(Imesp, 2006) – e coautor de Cinema
Mundial Contemporâneo (Papirus, 2008), organizado por Mauro Baptista e
Fernando Mascarello. Além disso, participou com ensaios para as obras Menino de Engenho: 40 anos depois (UFPA,
2005), organizado por Lucio Vilar e Antônio Vicente Filho; e Cangaço – o nordestern no cinema brasileiro
(Avathar, 2005), com organização de Maria do Rosário Caetano. Escreveu ainda o
ensaio O sertão no imaginário
cinematográfico brasileiro para o livro New
Brazilian Cinema, organizado pela crítica e professora Lúcia Nagib, editado
na Inglaterra, além de verbetes para a Enciclopédia
do Cinema Brasileiro (Senac, 2000), de Fernão Pessoa Ramos e Luiz Felipe
Miranda. É um dos “blogueiros” do jornal Estadão (http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/
) e também do seu http://ojogodezanin.wordpress.com/
onde estão todos os artigos escritos por ele para o Estadão e outras reflexões
diárias atuais sobre o futebol.
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