Os Jogos Olímpicos, Rio 2016, estão logo aí. Pode parecer distante,
pois há uma Copa do Mundo de Futebol neste ano. Mas, quebrando a longa e péssima
tradição brasileira de deixar tudo para “ontem”, a professora e doutora Katia
Rubio acaba de lançar mais um entre tantos livros sobre o tal “Brasil Olímpico”:
“Atletas do Brasil Olímpico” (Editora Kazuá).
Incansável na defesa dos atletas deste país, Katia Rubio reúne em papel
um pouco, mas muito pouco da gigantesca pesquisa que desenvolve junto aos
atletas brasileiros que um dia participaram da competição esportiva mais
importante do planeta.
Não é à toa que o prefaciador do livro tenha escrito que esse trabalho custou
à autora: “sangue, suor e lágrimas”. É a mais pura verdade. Logo a seguir, o
texto de apresentação da obra.
Prefácio
Por Juca Kfouri
Katia Rubio ataca novamente.
No bom sentido, é claro.
Rubio ataca as falsas ideias no mundo do esporte e revela
o que há por trás das inúmeras confusões que o obscurecem.
A nobreza do amadorismo, a ganância do doping, o
preconceito contra as mulheres, a frustração da derrota, a convivência diária,
muitas vezes sem fim, com a dor. E apresenta uma pesquisa soberba, digna das
melhores artesãs, para jogar luz num universo que todos imaginamos compreender,
muita vezes apenas tangenciando a superfície, incapazes de mergulhar fundo em
suas nuances.
Rubio escolheu desde sempre o caminho mais difícil.
Em vez da proteção dos poderosos, optou pela
independência intelectual, imprescindível para se tornar das pesquisadoras mais
respeitadas do país.
O monumental trabalho que apresenta aqui neste formidável
"Atletas do Brasil Olímpico" custou, sem demagogia, sangue, suor e
lágrimas.
Razão pela qual lhe confere não uma, mas todas as
medalhas de ouro a que pode fazer jus, com a vantagem de ser um trabalho com o
rigor da academia e o frescor do texto singelo, ao mesmo tempo em que vigoroso,
temperado pela inteligência e musculatura incomparáveis.
Impossível não se comover com as histórias que conta para
ilustrar suas teses.
Impressionante a amplitude dos temas e aspectos
abordados, de a a z, no emocionante universo esportivo.
A Doutora Rubio rompe limites, se supera, vai além da
cátedra.
Para subir no lugar mais alto do pódio e erguer, com
justo orgulho, e proveito extraordinário para nós, ignorantes, mortais comuns,
o troféu da sabedoria.
Com o que, pela honra de ser o autor destas poucas linhas
a guisa de prefácio, fico cheio de mim e me concedo uma brilhante medalha de
bronze, embora nem precisasse, pois o orgulho da deferência já é mais que
suficiente.
Brava Katia Rubio!
Apresentação
Por Katia Rubio
Há 14 anos dedico minha energia de pesquisadora a buscar
entender a trajetória do esporte olímpico brasileiro. Parte dessa determinação
se dê, talvez, pelos sentimentos que a performance dos atletas brasileiros me
provocam a cada 4 anos, durante a realização do Jogos Olímpicos. Falo isso
porque compactuo com o pensamento de intelectuais como Stuart Hall que afirmam
a impossibilidade de isenção e distanciamento do pesquisador de seu objeto de
pesquisa. Eu iria dizer que essa mobilização se inicia quando do desfile de
abertura e perdura até a cerimônia de encerramento, mas isso não seria verdade.
Muito antes de me envolver com os estudos olímpicos e a
psicologia do esporte eu me emocionava ao ver aquela mobilização toda em torno
de uma competição esportiva. Fui atleta quando criança e tudo o que era
oferecido de atividade esportiva competitiva eu me vi envolvida até o último
ano do colegial. O esporte para mim era vital, tanto pelo que ele me
proporcionava como atividade corporal em sim, e talvez sem saber naquele
momento, pelo que ele me proporcionava do ponto de vista social. Sair do
próprio bairro, pegar ônibus sem a presença de meus pais, mobilizar a escola
para assistir a um jogo, enfrentar a torcida, lidar com a vitória e a derrota,
ir a competições com escolas de outros bairros ou cidades, enfim, naquele micro
cosmos em que fui criada o esporte era a possibilidade de fazer meu mundo ser
muito maior do que ele parecia.
A memória mais remota que tenho de Jogos Olímpicos é de
Munique 1972, principalmente por causa das cenas do atentado da Vila Olímpica.
Lembro-me das cenas em uma TV em preto e branco e naquele momento não entendi
muito bem o que eram aquelas pessoas armadas dentro de um lugar feito para se
praticar esporte...
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Nadia Comanecci |
Mas foi Nadia Comanecci quem me contaminou com o espírito
olímpico. Na época eu fazia ginástica olímpica na escola (não na minha porque
não havia qualquer equipamento para isso, mas em uma outra, também estadual,
perto de casa onde havia um professor especialista em GO que viu em mim uma atleta
em potencial). Embora o único aparelho de que a escola dispunha fosse uma trave
de equilíbrio e eu fizesse todos os exercícios de solo no chão de madeira (o
que obrigava minha mãe a fazer compressas com todos os unguentos que ela
conhecia para diminuir os hematomas das costas) ao ver Nadia realizando todas
aquelas rotinas com perfeição, e conquistando as notas máximas pela primeira
vez na história, fui levada a crer que eu também poderia me tornar uma atleta
olímpica. Naquele momento eu não era capaz de avaliar criticamente o abismo
técnico que separava o Brasil das potências do esporte mundial, mas ficou em
mim aquele desejo profundo de participar daquele universo. Da ginástica migrei
para o voleibol, onde fiz minha transição de carreira depois de muitos anos
para a vida profissional em outras carreiras que não a de atleta.
Tudo isso foi vivido intensamente em um momento em que o
esporte no Brasil experimentava uma imensa revolução, passando do amadorismo
para o profissionalismo. E embora eu não tenha me tornado uma atleta olímpica
nunca deixei de acompanhar o esporte pela imprensa e de gastar muitas horas dos
meus dias durante a realização dos Jogos Olímpicos assistindo a competições e
às cerimônias de abertura e encerramento de cada uma delas. Gosto de fazer isso
sozinha até hoje porque me emociono, talvez por não ter realizado o desejo de
estar lá, ou simplesmente porque eu seja mais uma, entre muitos, a ver sentido
em tudo aquilo, como um grande congraçamento entre os povos, como a
oportunidade de se viver um momento de igualdade na diversidade. Sem que eu
soubesse no passado, eu vivia e sentia aquilo que muitos chamam de espírito
olímpico.
Passados todos esses anos, a dedicação à Psicologia do
Esporte e aos Estudos Olímpicos me reaproximaram desse tema que sempre me foi
tão caro. Já não mais com o sonho de ser atleta, mas, certamente sem sabê-lo,
tentando entender todo o processo que leva uma pessoa a se dedicar
integralmente a um projeto de vida que envolve restrições, abdicações,
negações, antes da conquista de recompensa, fama e glória.
Comecei essa empreitada pelo entendimento dos motivos que
levam alguns jovens à prática esportiva e fui levada a relacionar essa busca
com a trajetória do herói (O atleta e o
mito do herói. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.). A imersão na
mitologia, mas especialmente no mito do herói, foram fundamentais para a minha
trajetória como psicóloga do esporte atuando com atletas de alto nível
competitivo. Mais do que razões objetivas que mobilizam e levam pessoas a
escolher esse estilo de vida é preciso entender as questões de ordem subjetivas
e arquetípicas para a construção de uma identidade como atleta. E observo com o
passar dos anos como isso se transforma com o tempo, dependendo das tantas
variáveis sociais e culturais que se mesclam com o esporte, de forma cada vez
mais intensa a medida que o espetáculo esportivo se torna um dos principais
negócios do planeta.
Ao final daquele trabalho, que se tornou minha tese de
doutorado percebi que para eu poder entender como se dava a escolha pela
carreira de atleta era preciso conhecer os desencadeadores desse imaginário, ou
seja, os grandes atletas do país, os medalhistas olímpicos de todos os tempos. Por
dois anos busquei e entrevistei todos os atletas que ganharam uma medalha para
o Brasil ao longo de sua história olímpica. De Guilherme Paraense até os
medalhistas dos Jogos de 2000 foram 52 entrevistas, com a história dos atletas
que deixaram suas marcas para a história, conquistando, quase todos a duras
penas, aquilo que seriam as referências para o desenvolvimento do esporte no
país. Dessa pesquisa resultaram dois livros (Heróis Olímpicos Brasileiros. São Paulo: Editora Zouk, 2004./ e Medalhistas olímpicos brasileiros:
memórias, histórias e imaginário. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.),
minha tese de livre docência (Memória e
imaginário de atletas medalhistas olímpicos brasileiros. São Paulo, 2005.)
e a dúvida geradora de minha próxima pesquisa.
Constatei ao longo daqueles dois anos de coletas de dados
que embora as mulheres brasileiras participassem dos Jogos Olímpicos desde 1932
elas só foram conquistar as primeiras medalhas em 1996. A questão que não quis
calar foi: o que teria acontecido ao longo desses anos para desencadear tal
cenário?
E então, uma vez mais com auxílio pesquisa Fapesp e para
esse projeto em específico um auxílio de um edital sobre estudos de gênero do
CNPq, fomos em busca das mulheres olímpicas para delas ouvir as histórias,
memórias e lembranças que as tiraram da condição de coadjuvantes para serem
hoje as grandes heroínas do esporte olímpico brasileiro, uma vez que elas
passaram a representar um papel fundamental na conquista de medalhas olímpicas
para o Brasil.
Do projeto dos medalhistas para as mulheres observamos um
acréscimo considerável do número de sujeitos com os quais trabalhamos. Saltamos
de 52 entrevistas para mais de 150, indicando que as histórias coletadas também
indicavam a construção de uma metodologia. Isso porque no princípio seguimos de
perto os passos dos teóricos das histórias de vida e da história oral para
então construirmos um método próprio, baseado sim nessas referências, mas que
apontavam necessidades específicas voltadas para essa população.
As olímpicas foram fundamentais para o desenvolvimento do
trabalho como um todo porque foi por meio delas que pudemos tomar contato com
uma perspectiva sobre a qual pouco falaram os medalhistas: a derrota, a
dificuldade de se chegar a um resultado positivo, apesar de todo o esforço e
trabalho realizado ao longo de anos e anos de treinamentos. E ao atentarmos
para a relação número de participantes x medalhas pudemos perceber que o número
de participantes é imensamente maior do que o de vencedores. Mas, as mulheres
também nos mostraram outras coisas como a exclusão velada que vivem as atletas
não apenas das situações de treinamento, mas também da direção e organização
institucional do esporte, das posições de técnicas no alto nível e a relação
disso com a forma particular como se deu o movimento feminista no país. Parte
dessas discussões pode ser encontrada no livro “As mulheres e o esporte
olímpico no Brasil”. E foi a partir dessa pesquisa que chegamos ao presente
texto.
As mulheres nos apontaram a necessidade de irmos à busca
de todos os atletas olímpicos que representaram o Brasil em Jogos Olímpicos. A
história do esporte olímpico no país é feita de todas essas presenças, em
diferentes momentos, com distintos atores sociais e protagonistas. Ouvir essas
narrativas e entendê-las nos permite ter um panorama ampliado das questões
mobilizadoras do esporte brasileiro.
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Joaquim Cruz: ouro nos 800m, Jogos Olímpicos 1984. |
Isso porque observa-se pelo esporte as intensas
transformações do último século XX. A carreira de um atleta não é fruto apenas
de uma disposição e talento individuais, da afirmação de uma vontade latente ou
da determinação em perseguir objetivos. Fatores externos como a influência
parental, políticas públicas, formação e papel dos formadores, sejam eles
professores de Educação Física ou técnicos, podem influenciar e mesmo
determinar a transformação de um aspirante em atleta.
E os números nos mostram isso.
O Brasil esteve representado em 20 das 27 edições dos
Jogos Olímpicos da Era Moderna, conquistando a primeira medalha olímpica em
Antuérpia (1920). Até os Jogos de Pequim (2000) o Brasil totalizou 108
medalhas, sendo 20 de ouro, 26 de prata e 46 de bronze, das quais apenas 14
foram ganhas em modalidades coletivas. Essa é uma indicação do quanto o esporte
nacional sobrevive à custa de esforços individuais, uma vez que o processo de
formação de equipes esportivas é complexo e envolve mais do que a soma de
valores individuais, necessitando de tempo e a construção de vínculo entre os
atletas e comissão técnica para que resultados positivos sejam alcançados.
Conhecer a trajetória de atletas olímpicos brasileiros é
gravar não só uma história individual importante para a memória nacional como,
juntamente com a história de demais atletas olímpicos, reconstituir o
imaginário esportivo de diversos períodos. Essas histórias de vida,
relacionadas por vias diretas ou indiretas, permitem compreender o imaginário
esportivo do presente dentro de um contexto maior que é o esporte nacional e
sua relação com a sociedade e seu movimento.
Quando iniciamos o projeto não tínhamos ainda a dimensão
do nosso objeto, uma vez que não tínhamos de antemão a totalidade de atletas
brasileiros participantes dos Jogos Olímpicos, nem um acervo organizado desses
sujeitos.
Na medida que avançamos na busca desses atletas e em suas
histórias foi possível observar que o que estávamos fazendo era quase um senso
do esporte olímpico brasileiro, uma vez que não estávamos trabalhando com uma
amostra, mas com toda a população. Muito embora a metodologia adotada fosse
qualitativa e a narrativa fosse conduzida pelo próprio sujeito pudemos ao longo
de todas as entrevistas obter dados objetivos sobre a trajetória de todos esses
atletas como local e data de nascimento, nível socioeconômico, onde e quando
iniciou a prática esportiva, que clubes defendeu, com quantos anos participou
pela primeira vez a seleção nacional, quem foram os primeiros
professores/técnicos, como foram as experiências como atleta olímpico, em que
momento da história do esporte defendeu o país, que percepção teve do
amadorismo (ou do profissionalismo), de que forma as questões institucionais
atravessaram sua vida, no caso das mulheres, se viveram algum tipo de
preconceito ou discriminação, idem para os negros, como foi a condução dos
estudos ao longo da carreira, a relação com a mídia tanto na fase do amadorismo
como do profissionalismo, como se deu a transição de carreira para aqueles que
já são pós-atletas, a relação com a dor e a vida presente para aqueles que já
não mais competem.
Temos então aqui um panorama do esporte olímpico
brasileiro, a partir da perspectiva do atleta. Mais do que revelar verdade
absolutas ou determinantes oferecemos um ponto de vista poucas vezes
considerado de fato na construção e execução de projetos para o futuro.
Espero que os dados apresentados aqui possam contribuir
para o desenvolvimento do esporte não apenas para a geração olímpica que
representará o Brasil nos Jogos do Rio de Janeiro em 2016, mas para uma herança
definitiva desse patrimônio cultural.
Sobre a autora:
Psicóloga, professora Associada da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Mestre em Educação Física e doutora em Educação. Ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte. Autora e organizadora de 16 livros e vários artigos em revistas nacionais e internacionais. Membro da Academia Olímpica Brasileira e pesquisadora de Estudos Olímpicos e Psicologia do Esporte.
Crônicas da Dra Katia Rubio já
publicadas no Literatura na Arquibancada:
As aventuras de uma pesquisadora olímpica
As palavras mal-ditas
Nota sobre um trabalho de base
Heroínas olímpicas brasileiras
O peso de ser olímpico
Quando falta inspiração
A César o que é de César
Psicologia, Esporte e Valores Olímpicos
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