Obrigado, Nilton Santos
Por André Ribeiro
Entre tantos “defeitos” que os seres humanos possuem um dos
maiores é a falta de gratidão.
O agradecimento, aqui, sugerido pelo título deste artigo, não
é para o que Nilton Santos fez dentro dos gramados, ensinando a jogar, criando
novas formas de atuar naquele longo corredor esquerdo de um campo de futebol.
Isso muita gente está fazendo agora.
Serei eternamente grato à Enciclopédia da bola por um ato
muito simples, generosidade pura.
Se hoje consegui criar uma pequena história dentro da
literatura esportiva, tudo começou por causa dele, Nilton Santos. E pelo
atrevimento de um grande amigo.
Quando decidi produzir e escrever a biografia de Leônidas da
Silva, o Diamante Negro, não fazia a menor ideia do que seria o mercado
editorial. Estávamos no final do ano de 1996. Amigos diziam: “mas você está
fazendo errado, tem que ter um projeto”. E cobravam: “Já tem uma editora?”.
A resposta à primeira pergunta deixou muita gente com a
impressão de que seria eu um arrogante: “Primeiro vou fazer. Tenho certeza que
arrumar uma editora será o problema menor”. Sabia que tinha uma grande história
nas mãos, mas não fazia a menor ideia das dificuldades que as pessoas enfrentavam
(e continuam a enfrentar) para conseguirem ser publicadas.
Para a segunda resposta, sobre ter uma editora interessada,
era mais simples: “Não. Não tenho”.
![]() |
Primeira edição da biografia |
Após um ano e meio de trabalho, sacrifícios pessoais,
familiares e profissionais, tinha em mãos os originais da biografia do Diamante
Negro. E agora? O que fazer?
Neste período de vida, trabalhava como produtor executivo na
TV Cultura de São Paulo. Desta equipe fazia parte um grande amigo, já falecido,
José Henrique da Cruz. “Mutum” era o seu apelido, nome da sua terra natal. Uma
figura inesquecível, produtor do programa Cartão Verde, dos tempos de Armando
Nogueira, Juca Kfouri e companhia.
Mutum soube que minha empreitada e sonho de ter um livro
publicado chegara ao fim. Mal sabia que só estava começando. Sua pergunta foi
direta: “Já arrumou editora?”. A resposta foi seca e ao mesmo tempo preocupante:
“Não”.
Atento a tudo que acontecia no mundo da bola, Mutum fez,
primeiro um pedido, e, logo a seguir, uma sugestão: “Imprima tudo e encaderna.
Nós vamos ao lançamento do livro do Nilton Santos”.
Não entendi absolutamente nada. Mas com Mutum, sempre fora
assim, sua genialidade e sacadas sobre tudo era incrível. O evento que ele
descobrira era o lançamento do livro de Nilton Santos, a autobiografia “Minha bola, minha vida”, em São Paulo,
em uma livraria na Zona Sul da capital. Sem entrar em detalhes, comecei a
perceber sua intenção, e tratei de fazer o que pediu. Impresso o original com
espirais bonitonas, fomos ao tal evento de lançamento.
No caminho, pensando comigo mesmo, comecei a me dar conta do
absurdo que ele estava propondo. Era uma festa, cheia de convidados ilustres do
futebol mundial, assédio de fãs, jornalistas...Seria impossível conversar com
quem quer que fosse sobre a existência de um livro prontinho para ser impresso
sobre o Diamante Negro.
Eis que ao chegar a livraria, a enorme surpresa. Nilton Santos,
acompanhado de sua esposa Célia, conversava com alguns de seus antigos companheiros
de conquistas mundiais, três ou quatro campeões, ou melhor, bicampeões mundiais
de 1958 e 1962.
Bellini, zagueiro que ergueu a taça do primeiro título
mundial era um deles. Esses amigos estarem ali, prestigiando Nilton Santos, era
pra lá de natural. O que parecia absurdo estar acontecendo era a absoluta falta
de público e até mesmo da imprensa. Ninguém, quase ninguém para ver ali, numa
livraria, alguns dos maiores nomes da história do futebol mundial.
Nilton Santos, como sempre, estava feliz da vida. Conversar
e lembrar de boas histórias era com ele mesmo. Não parecia nem um pouco
incomodado com a falta de público. Não queria vender livros. Queria contar suas
histórias eternizadas em papel.
Ainda mais depois do estrondoso sucesso do lançamento de seu
livro, no Rio de Janeiro. Dois dias de noite de autógrafos para atender os
apaixonados botafoguenses. Duas mil pessoas, por baixo !!!
Mas aqui, em São Paulo, por alguma falha na divulgação, o
evento era quase um fracasso.
Para mim, não, porque, com pouca gente a rodeá-lo, Mutum
poderia colocar em prática sua ideia. E foi direto ao ponto. Direto e reto,
como costumava fazer com os convidados que estava acostumado a levar ao Cartão
Verde. Com aquela “maçaroca” de papéis na mão, foi direto ao assunto: “Nilton,
você conheceu o Diamante Negro, Leônidas da Silva?”. Nilton disse que sim, mas
não eram amigos. E Mutum prosseguiu: “Então, isso aqui na minha mão é a
biografia dele, escrita por esse camarada aqui ao meu lado, o André Ribeiro”.
Sem jeito, envergonhado, foi assim que cumprimentei o campeão mundial pela
primeira vez.
Mutum emendou: “Então, preciso que você o apresente para a
editora que fez o teu livro”. Direto, assim. Mutum era figura de aparência
engraçada. Usava óculos chamados de “fundo de garrafa”, pois tinha uns 15 graus
de miopia. Na redação, divertiam-se maldosamente alguns com o seu jeito de ler
os jornais, quase colados aos olhos. Olhando firme para o campeão mundial, ele
ouviu a resposta simples, como sempre, de Nilton Santos: “Olha aqui, Mutum. Eu
não entendo nada dessa história de livro. Quem entende disso é minha esposa, a
Célia”. De imediato, Nilton chamou a esposa que estava em uma roda próxima de
amigos: “Célia, vem aqui. Esse aqui é o Mutum e esse aqui é o André Ribeiro.
Eles dizem ter um grande livro em mãos. A biografia do Diamante Negro. Querem a
nossa ajuda para publicar.”
Naquele mesmo instante, Célia folheou os originais, leu
rapidamente alguns trechos e fez algo que jamais esquecerei: pegou o telefone
celular e ligou para o editor e um dos donos da editora Gryphus, Guilherme
Zingoni.
![]() |
Nilton e Célia, eterna gratidão. |
Resumindo, em uma semana eu estava no Rio de Janeiro,
sentado a frente de Guilherme, com os originais em mãos, e pronto para assinar meu
primeiro contrato de edição.
Um ano depois, a biografia do Diamante Negro e a de Nilton Santos
eram os livros de maior repercussão na mídia. A editora promoveu nossa
participação na Bienal Internacional, no Rio de Janeiro. Os dois, juntos, lado
a lado, prontos para autografar cada qual a sua obra. Em minha fila, quase
ninguém. Na de Nilton, dezenas de pessoas enfileiradas. Brincava com ele
dizendo: “É covardia, Enciclopédia”. E ele, sorrindo, sacaneava: “Quer uns
emprestados?”.
Tudo isso para dizer que se não fosse a generosidade de
Nilton Santos e sua esposa, Célia, de me apresentarem para a Editora Gryphus,
quem poderia garantir que teria conseguido outra para publicar?
Ele não precisava ter me indicado para “seu ninguém”. Por
isso, onde estiverem, Nilton e Mutum, agradeço a vocês de coração.
Linda história, André! Até me motivou a continuar escrevendo.
ResponderExcluirCompartilhei aqui: http://www.tumblr.com/blog/bethmuniz
ResponderExcluirBeijão.