Para o bem da literatura esportiva o número de títulos
publicados no gênero romance está aumentando cada vez mais. Só em 2013, três
grandes histórias: “Escravos do jogo” (Editora Multifoco, selo Desfecho) de
Marlos Bittencourt; “O último minuto” (Companhia das Letras) de Marcelo Backes
e agora, o romance de Sérgio Rodrigues, “O drible”, tema deste artigo e também
da Companhia das Letras.
Aqui, no Literatura na Arquibancada, você pode acessar
outras histórias resgatadas sobre autores que se atreveram a fazer ficção com o
tema futebol:
Abaixo, acompanhe a sinopse e um capítulo
disponibilizados pela editora Companhia das Letras.
Sinopse (da
editora):
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Sérgio Rodrigues |
“Desenganado pelos médicos, um cronista esportivo de
oitenta anos, testemunha dos anos dourados do futebol brasileiro, tenta se
reaproximar do filho com quem brigou há um quarto de século. Toda semana, em
pescarias dominicais, Murilo Filho preenche com saborosas histórias dos craques
do passado o abismo que o separa de Neto.
Revisor de livros de autoajuda, Neto leva uma vida
medíocre colecionando quinquilharias dos anos 1970 e conquistando moças que
trabalham no comércio perto de sua casa, no bairro carioca da Gávea. Desde os
cinco anos, quando a mãe se suicidou, sente-se desprezado pelo pai famoso.
Como nos romances anteriores de Sérgio Rodrigues, há um
contraponto de vozes narrativas. Entremeado com o relato principal, transcorre o
livro que Murilo escreve sobre um extraordinário jogador dos anos 1960 chamado
Peralvo, dotado de poderes sobrenaturais e que teria sido “maior que Pelé” se
não tivesse encontrado um fim trágico.
A alternância entre o realismo da história de Neto, seco
e desencantado, e o realismo mágico da história de Peralvo sinaliza a perícia
de Sérgio Rodrigues, um dos narradores mais habilidosos de sua geração.
O personagem do velho cronista é o veículo de uma
celebração da história do futebol raras vezes empreendida pela literatura
brasileira. Murilo Filho, porém, é mais do que isso. Com atraso, como se
tomasse um drible, Neto entrevê nas frestas da narrativa do pai - e o leitor,
um pouco antes dele - um sombrio segredo de família e um episódio tenebroso dos
porões da ditadura militar”.
Capítulo de abertura
da obra:
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O "quase gol" de Pelé contra o Uruguai, na Copa de 1970. |
A tv é uma velha trambolhuda de tubo de imagem.
O lance não deve ter mais de dez segundos, mas com
as interrupções de Murilo enche minutos inteiros enquanto ele narra sem pressa,
play, pause, rew, play, o que na época foi narrado com assombro.
O que você vê primeiro é uma imagem parada que logo
identifica como da Copa de 1970 pelo short da seleção brasileira, que é de um
azul mais claro que o habitual, além de escandalosamente curto para os padrões
de hoje. Tostão, cabeçudo inconfundível, número 9 às costas, conduz a bola
observado a certa distância por um sujeito de camisa azul clara e calção preto.
Murilo solta a imagem por três segundos, Tostão conduz a bola, e quando volta a
congelá-la Pelé aponta no canto superior direito do quadro e você sente um
tranco na barriga como se a velocidade do mundo desse de repente um arranque,
alguém ligando um acelerador de partículas. O velho segue na sua narração
caseira, aí então, diz, olha só, nós vemos aquilo que o Tostão também acaba de ver,
Pelé se projetando da meia-direita feito um bicho, uma pantera com sangue de
guepardo.
O ímpeto é logo contido, editado, rew, play, pause,
play. A bola sai do pé do Tostão, volta, sai, volta. O passe do cara é
perfeito, diz Murilo, sentado perto de você no sofá junto da lareira acesa, uma criança brincando com sua pistola de
laser. Um miligrama de força a mais ou a menos, seria quase perfeito,
praticamente perfeito, mas não, é perfeito, metido da meia-esquerda com o pé
esquerdo numa linha diagonal de desenhista de Brasília, a mais leve curvatura,
em direção ao centro da grande área.
Nesse momento a imagem começa a andar para a frente
em câmera lentíssima. De repente tudo o que vemos, a voz do homem é baixa e
roufenha, sem o tom de comando de antigamente, tudo o que vemos é Pelé correndo
em direção a uma bola branca, mas aí vem o goleiro e agora a bola está entre
Pelé e o goleiro, mais perto do grande crioulo mas cada vez menos, porque o
goleiro, aliás o famoso Mazurkiewicz, o goleiro resolve ir à luta e sai com
tudo da área, não quer nem saber.
O quíper uruguaio faz o que pode, entra no semicírculo um milésimo de segundo antes do Pelé, mas não a tempo de interceptar a bola. Ela fica entre os dois e nós voltamos a sentir, como o Mazurka também sente, que está mais para o negão que vem no embalo. O que o bom goleiro da Celeste faz é se ajoelhar e, mesmo já estando fora da área, que remédio, abrir os braços.
Congelada, a imagem do velho videoteipe fica
distorcida. Parece que o negro de camisa amarela e o branco todo
de preto vão colidir, quem sabe se fundir, feixes luminosos tentando esquecer
que um dia foram carne.
Olha o Mazurkiewicz, diz o velho. Ninguém precisa
ser telepata para saber que ele torce para o Pelé buscar o gol dali mesmo, é o
que faria a maior parte dos atacantes, porque nesse caso teria uma chance de impedi-lo. Só pode rezar para
que o brasileiro não faça o que um jogador da envergadura dele provavelmente
vai preferir fazer, isto é, cortar o goleiro para a esquerda, coisa fácil na
passada em que vem, movimento que levaria a das duas, uma: ou o goleiro agarrar
faltosamente as pernas do Pelé ou o Pelé concluir de canhota para o gol aberto
ou quase, defendido só pelo zagueiro que, não demora, vai entrar no quadro
esbaforido feito quem está prestes a perder o último trem e acabar às
cambalhotas pelo chão. O nome desse infeliz era Ancheta. Só para constar.
Murilo olha para você com um meio sorriso. Seus
olhos espelham as chamas da lareira e têm um fulgor frio que você não se lembra
de um dia ter visto, um olhar que parece já quase póstumo, brasas minúsculas dentro do gelo. Agora eu
te pergunto, Neto, por que o Pelé não fez isso? Era a coisa certa, não era?
Óbvio que era, pedrinhas fosforescentes no gramado, um caminho que ele já tinha trilhado um trilhão de
vezes igualzinho, zunindo da meia-direita para o centro da área atrás da bola
enfiada pelo Coutinho ou pelo Zito, ou por Didi na seleção. Mas de repente estamos em 1970, a bola é passada pelo
Tostão e, aí é que está, Pelé já é Pelé. Está farto de saber que é um mito, um
semideus, o que tem a perder tentando ser um deus completo?
Aí ele não faz o certo, faz o sublime. Troca o
caminho batido do gol, o gol certo que tinha feito tantas vezes, pelo incerto
que, como veremos, jamais faria.
Na tv, enquanto os dois borrões lentamente se
fundem, a bola, um descalabro, passa por eles. Como se eles
fossem porosos, o espírito esquecido de que é carne no ato mesmo, antecipando o
videoteipe.
Rá, você ri nem tanto de surpresa, reconhecendo o
lance tantas vezes visto, mas feliz, como sempre, com seu retorno. Você olha
para a tv e Murilo olha para você, estudando sua reação.
Parece satisfeito com o que vê. Na sua recusa em tocar na bola feito um Bartleby súbito, diz, Pelé refinou o futebol à sua essência mais rarefeita. O futebol virou ideia pura e de repente homens, bola, ninguém mais se comportava como seria de esperar que se comportasse neste mundo vão. Apanhado de surpresa como todos nós, o pobre Mazurka vê a bola passar à sua esquerda e ir cortar feito faca o filé direito da grande área, enquanto Pelé é um flash auriceleste que chispa para o lado oposto.
O que o Pelé tem que fazer agora é bem facinho,
mamão, é ou não é?, o velho abre um sorriso em que se vê com nitidez a sombra
da caveira que logo será. Tem que frear para corrigir radicalmente seu ângulo de deslocamento, frear e no
mesmo instante recomeçar a correr na outra direção, atrás da bola agora, ele
que vinha no tropel mais desembestado fingindo ignorá-la.
Acabou o reinado da ideia pura, sublime demais para
durar no tempo, o mundo material se impõe outra vez com sua massa, sua
aceleração, as leis da física todas. O cara tem que dar uma quebrada de noventa
graus e não perder velocidade porque, veja bem, há que chegar na bola antes dos
adversários e ainda com um bom ângulo de chute.
Murilo solta a imagem, Pelé consegue fazer as duas
coisas, que beleza, congela-a de novo. Vai chutar e marcar, todos antevemos
isso, o estádio de pé com seus pulmões que nesse momento podiam ser todos de
pedra, diz, floreando um pouquinho, pois não inspiram nem expiram: vai chutar e
fazer o gol. Acontece que não é tão simples, porque Pelé agora está do lado errado
da bola, meio de ombro para o gol, tem que bater nela num movimento de meio
giro. E aí, meu Deus, ele erra. Pelé erra. Perde o gol que não poderia deixar
de perder, pensando bem, para que o mito se consumasse.
O que você vê na imagem solta pela última vez, a
definitiva, é o seguinte: enquanto o tal Ancheta que ia perder o trem se
estabaca na grama, a bola chutada por Pelé tira fino da trave direita do Uruguai. Linha de fundo, fato consumado,
o craque dos craques sai chupando um gelo catado por ali com expressão
levemente contrariada, mas serena.
Compacto do jogo Brasil x Uruguai. O lance de Pelé
está aos 6:05.
O velho detém o vídeo. Pousa o controle remoto no
braço do sofá, olha nos seus olhos outra vez e diz, o que houve aqui, Neto, foi
simples: Pelé desafiou Deus e perdeu. Imagine se não perdesse. Se não perdesse,
nunca mais que a humanidade dormia tranquila. Pelé desafiou Deus e perdeu, mas
que desafio soberbo. Esse gol que ele não fez não é só o maior momento da
história do Pelé, é também o maior momento da história do futebol. Você entende
isso? A intervenção do sobrenatural, o relâmpago de eternidade que caiu à
esquerda das cabines de rádio e tv do simpático Jalisco, 17 de junho de 1970?
Pois posso garantir que foi isso que aconteceu, eu estava lá e sei, e se for
mais ainda eu não vou me surpreender, mas foi isso, no mínimo, que aconteceu e
que o videoteipe nos dá a graça de ver e rever para sempre, está vendo? Coisa
tremenda, Tiziu.
Pondo-se de pé com dificuldade, afasta-se da bolha
de calor criada pela lareira e caminha até a varanda. Você vai atrás. Passa pouco do meio-dia, mas o inverno chegou com determinação. O hálito gelado que vem da mata os abraça e nesse
momento você vê seu pai em Guadalajara, um jovem de mais de trinta com
costeletas de Félix, bigodão de Rivelino, tomando cerveja com guacamole enquanto
aqui embaixo se acabava o mundo tal como você, em seus cinco anos, o conhecia.
É como se a vida inteira tivesse como único gonzo aquele verão mexicano,
inverno no Brasil, quando seu pai não foi na bola, o drible de Pelé em
Mazurkiewicz quebrou a espinha do destino e o mundo degringolou. Há desses
momentos em que tudo parece acontecer ao mesmo tempo, passado e futuro
achatados em presente, o mesmo que dizer que nada jamais aconteceu ou
acontecerá, tudo está sempre acontecendo sem chegar a atingir o ponto em que o
gesto se completa.
No domingo em que Murilo Filho lhe mostra em sua
casa no Rocio o gol que Pelé não fez, você se dá conta pela primeira vez na
vida de que aquele era o mesmo dia —
17 de junho de 1970 — em
que Elvira driblou a frouxa segurança de um semipronto elevado do Joá para se
atirar nas pedras batidas pelo mar lá embaixo. Claramente, como se uma luz de
açougue acendesse dentro da sua cabeça, vê-se preso para sempre
naquele dia, play, pause, rew, play, enquanto Pelé não fizesse o gol estaria
preso dentro daquele dia, sonhando que a vida tinha continuado. Nesse momento
você olha para o seu pai e revive pela última vez, com violência assombrosa, o
velho sonho de matá-lo.
Isso porque o Peralvo nunca jogou a Copa, diz
Murilo, parecendo imune às ondas de morte que emanam do filho, olhar perdido na
crista verde-chumbo dos morros recortados contra o céu cinza. Peralvo era para
ter sido maior que Pelé, Neto. Que merda de vida.
Sobre Sérgio
Rodrigues:
Nasceu em Muriaé (MG), em 1962, e vive no Rio de Janeiro
desde 1980. Ficcionista, crítico literário e jornalista, é autor do romance Elza, a garota (Nova Fronteira) e
das coletâneas de contos O homem que
matou o escritor (Objetiva) e Sobrescritos
(Arquipélago), entre diversos outros livros. Criou em 2006 o blog Todoprosa
(todoprosa.com.br), referência na web literária brasileira, hospedado desde
2010 no portal Veja.com. Em 2011, ganhou o Prêmio Cultura do Governo do Estado
do Rio pelo conjunto de sua obra.
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