Se 2013 é um ano com importantes efemérides sobre a vida
do genial Mané Garrincha, como os 80 anos de seu nascimento e os 30 de sua
morte, a literatura esportiva acaba de ganhar um livro sobre outro ano de sua
trajetória importantíssima. Trata-se de 1962: O ano Mané (LivrosdeFutebol.Com),
que tem autoria de Maurício Neves e edição do “quase” fanático botafoguense, o
editor César Oliveira.
Sinopse (do
editor)
Por César Oliveira
“Se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo
irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar
de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um Deus cruel, tirou do
estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino.
Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas
tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha
disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.” (Carlos
Drummond de Andrade)
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No final de 2010, recebi um telefonema do advogado
catarinense Maurício Neves de Jesus, rubro-negro de coração, que se apresentou
a mim oferecendo os originais do livro “1981: o primeiro ano do resto de nossas
vidas”, um diário do ano mais vitorioso da história do Club de Regatas do
Flamengo, justamente quando “O Mais Querido” conquistara três títulos
importantíssimos no curto espaço de três semanas: a Libertadores da América (em
22 de novembro), o Campeonato Carioca (em 6 de dezembro) e o Mundial em Tóquio
(a 13 de dezembro), arrasando os ingleses do Liverpool.
Como editor, meu compromisso é com a história do futebol
brasileiro e mundial, seus ídolos, craques e lendas. Por isso, o editor
botafoguense e o autor rubro-negro se uniram para lançar a obra.
O livro tem uma proposta interessante. Escrito em forma
de diário, o autor reuniu o material que já tinha no meu acervo – jornais,
revistas, livros. Depois, passou à pesquisa nas fontes da época, principalmente
jornais, do Brasil e do exterior. Anotados os trechos fundamentais, passa a
escrever com o material selecionado como fonte principal. Os relatos dos jogos
são baseados no maior número possível de jornais que fizeram a cobertura da
partida e também nos vídeos disponíveis, de modo a evitar que a impressão de um
único cronista vicie o texto.
Para mim, Mauricio criou um estilo que vale a pena levar
adiante. Motivado por isso e pela aproximação das comemorações dos 80 anos de
nascimento de Mané Garrincha, pedi a ele que escrevesse... 1962: O ANO MANÉ, assim
mesmo, já com o título pronto; e o subtítulo “Diário do ano mais vitorioso do
Anjo das Pernas Tortas”.
A princípio relutante, Mauricio aceitou fazer o livro,
percebendo que a história era maior que a rivalidade. Em meio ao trabalho, eu
brincava com ele, dizendo que seria duro mesmo era escrever sobre o dia 15 de
dezembro, justamente quando Mané Garrincha arrasou com o Flamengo, 3 a 0 no
final do Campeonato Carioca, com certeza a sua derradeira atuação individual de
gala, dois gols e um chute que provocou um gol contra. Mas depois daquele dia,
Mané nunca mais foi Garrincha.
A partir dali, os demônios venceram o frágil Manoel dos
Santos, que virou “joão” do álcool e das mazelas físicas que o acompanharam em
toda a sua vida.
É preciso, contudo, louvar sempre, lembrar para não
esquecer, quem foi Mané Garrincha. Um gênio dos gramados, um craque acima de
muitos os que hoje se enchem de dinheiro e glórias. Um índio simples, vítima do
alcoolismo e de problemas físicos incontornáveis, quem sabe presa da ganância
dos que precisam fazê-lo jogar mesmo à custa de injeções e infiltrações para
que suportasse as dores nos joelhos.
Naquele 1962, Mané produziu performances extraordinárias,
o ponto máximo da sua brilhante carreira. Com a Seleção Brasileira, durante o
Mundial do Chile, jogou por ele e por Pelé, que se contundira no segundo jogo.
E Mané fez chover nos gramados andinos. Contra Espanha,
Chile e Inglaterra, jogou mais do que se podia esperar dele. Sem Pelé em campo,
Mané jogou como o peladeiro de Pau Grande, que gostava mesmo era de jogar de
meia-esquerda. Fez gol de perna esquerda e até de cabeça, saltando contra os
altos zagueiros ingleses. Desmontou a defesa da Fúria espanhola para deixar
Amarildo na cara do gol e virar um jogo que se encaminhava para um fracasso e
nos tiraria da Copa. E o fazia com a mesma tranquilidade com que jogava pelo
seu Botafogo num estadinho qualquer do subúrbio carioca.
Em dezembro, na final do Carioca, perante mais de 155 mil
pessoas, Garrincha tomou conta do gramado e desfilou seu repertório de
“manjadíssimos” dribles pela direita – ele só sabia driblar por ali. Com 10
minutos de jogo, passou como quis por Gérson e Jordan, abrindo o placar,
pulando por cima dos repórteres e fotógrafos e dando início ao seu baile particular.
Mais 25 minutos, de novo a mesma jogada, uma bomba pra gol que explodiu no
goleiro Fernando, quebrou o nariz do zagueiro Vanderlei para fechar o primeiro
tempo em 2 a 0.
O segundo tempo nem começou e lá estava ele de novo, pelo
meio da pequena área, aproveitando o rebote do goleiro Fernando numa temível
“tesoura voadora” do Quarentinha, para fechar o placar.
Lamentavelmente, depois daquele sábado, 15 de dezembro,
Mané nunca mais foi Garrincha. Aos poucos, seu brilho foi se acabando, ele
ainda tentou a sorte em outros times, Olaria, Flamengo e Corinthians, mas era
então uma pálida lembrança da Alegria do Povo, do Anjo das Pernas Tortas, do
Demônio da Copa... ele voltara a ser apenas Manoel do Santos, sem o “Francisco”
que a mídia acolheu depois que ele quis homenagear o pai, incorporando-lhe o
nome.
Em 18 de outubro, Manoel dos Santos completaria 80 anos.
Infelizmente, em outra data redonda, ele nos deixou há 30, nem bem completado
meio século de vida. Este livro é uma forma de homenagear o craque, agradecer pela
alegria que trouxe aos nossos olhos e corações. Pelos dribles, pelos gols, pela
molecagem, pelos títulos.
*********
Confira abaixo o prefácio assinado por Péris Ribeiro,
autor de “Didi, o Gênio da
folha-seca”, vencedor do I Prêmio João Saldanha de Jornalismo Esportivo (Literatura),
da Associação de Cronistas Esportivos do Estado do Rio de Janeiro (2011).
A primeira vez em que vi Garrincha
Péris
Ribeiro
Agora,
já de banho tomado, roupa trocada e tendo desfrutado de um delicioso almoço à
base de saladas e da tradicional macarronada dos dias de domingo, lá caminhava
eu, lado a lado com o meu intrépido tio Ernane – na verdade, um rubro-negro
histórico, que havia visto inclusive o Flamengo ser campeão com Leônidas da
Silva, em 1939 –, para subirmos juntos uma das largas rampas de acesso às
arquibancadas do Maracanã. Era a minha primeira vez no “Maior do Mundo”, e só
em me deparar com o seu gigantismo já era o suficiente para começar a tremer
nas bases.
Acontece
que não era só o descomunal tamanho do velho e querido Maraca que me impressionava.
Naquele instante, tudo ali me deixava maravilhado. A entrada dos dois times em
campo, surgindo triunfais na boca do túnel; a festa da torcida, tanto nas arquibancadas
como nas cadeiras e gerais; aquele público esfuziante, de quase 150 mil
pessoas... Tudo aquilo era demasiado para um garoto de apenas nove anos, até
então acostumado às vibrações que pouco ecoavam nos modestos estádios dos
subúrbios cariocas. Ou naqueles de igual dimensão lá da minha Campos, terra de
craques como o mestre Didi, Lelé, Amarildo, Paulinho Almeida, Pinheiro e Evaldo
– este, o parceiro predileto do grande Tostão, naquele Cruzeiro campeoníssimo
dos primeiros anos dourados do Mineirão.
Mas,
retornando às emoções daquele Botafogo e Flamengo de 7 de setembro de 1953, o
que não me sai da memória é o estilo agressivo que o Flamengo procurou imprimir
à partida, logo nos primeiros 30 minutos. Naquele meio tempo de domínio
rubronegro, os meus olhares de admiração e ansiedade eram todos dedicados à
arte e aos malabarismos de Rubens, o Doutor Rúbis, espécie de maestro e
dono do time da Gávea. Só que, do lado alvinegro, alguns jogadores também
começaram a me chamar a atenção. Em especial, Nilton Santos, Geninho e um
ponta-direita estranho, que corria esquisito e andava mais esquisito ainda.
Com
o tempo passando, e o Flamengo – líder e favorito – começando a desaparecer em campo,
foi o momento exato de o Botafogo crescer assustadoramente, passando a tomar
conta do jogo.
Dino
da Costa e Vinícius balançaram as redes do goleiro paraguaio Garcia, fixando o
placar em 2 a 0, mas quem desequilibrava tudo era o cara esquisito da
ponta-direita. Até que, após mais um drible no lateral-esquerdo Jordan, seu
marcador direto, acaba aterrado dentro da área pelo zagueiro Pavão. Pênalti
claro, que faz um estridente Mario Vianna apitar incontinente, logo apontando
para a marca da cal.
Da
boca do túnel, o técnico Gentil Cardoso apenas sinaliza para o capitão Geninho,
definindo o camisa 7 como o batedor oficial. Tranquilo, mãos na cintura, com
todo jeito de um peladeiro descompromissado, ele apenas caminha para a bola e
chuta à meia altura, quase sem defesa. Mas o goleiro que estava do outro lado não
era um qualquer, era Garcia, o melhor do Rio naqueles dias, que em um salto
espetacular ainda consegue tocar na bola com a ponta dos dedos. O seu azar,
porém, foi que o desconjuntado ponta-direita seguiu acompanhando a jogada e,
tal qual numa típica pelada de rua, apenas deu um pequeno mergulho e, de cabeça,
fez Botafogo 3 a 0. Gol de pênalti de cabeça!
Agora,
no entanto, dava para sentir que as coisas correriam de maneira bem diferente.
E, realmente, tudo terminou em uma grande festa, pois o Flamengo colocou as
faixas de campeão carioca de 1953, além de ganhar do Botafogo de 1 a 0, com um
golaço de Rubens, em um chute de curva de fora da área, bem na “forquilha” do
goleiro Gilson. Foi ali, aliás, naquela típica tarde de festa popular, que pude
sentir que o Maracanã era capaz de nos envolver em um universo especial. A
torcida rubro-negra, por si só, já era um espetáculo à parte. E Rubens, o meu
primeiro grande ídolo, acabara de ser consagrado como o “’Maior Jogador” do Campeonato.
O Campeonato que tivera o Flamengo como um mais que merecido campeão.
Vibrando
e me emocionando com tudo aquilo, o que mal sabia eu - talvez, podendo até
então apenas suspeitar – era que o Garrincha apenas discreto daquela tarde de
14 de fevereiro, seria o maior dos meus ídolos no futebol. Para tanto, bastou que
a sabedoria de um João Saldanha desatasse o nó com que vários outros treinadores
tentaram amarrar o seu futebol alegre, imprevisível e genial. Apenas isso.
Até
que, em campos do Chile, iria ocorrer o ápice do gênio. Uma façanha e tanto.
Coisa para poucos, bem poucos. Até porque, foi aos pés dos Andes que, jogando
por ele e por Pelé, e jogando ainda por um país inteiro aflito, agoniado, que
um Mané Garrincha definitivamente iluminado deu ao Brasil a glória do sonhado
Bicampeonato Mundial.
Era
o artista, vivendo na plenitude a sua arte.
Era
o gênio, completando enfim a sua obra.
**********
Literatura na Arquibancada destaca abaixo, trecho de um
dos capítulos da obra.
1º. de janeiro, segunda
Os assuntos mais comentados no primeiro dia de 1962
eram o suicídio do cartunista Péricles de Andrade Maranhão e a mensagem de Ano
Novo do presidente João Goulart, os dois principais acontecimentos do último
dia de 1961. Criador do personagem Amigo da Onça, Péricles vedou seu
apartamento no Rio de Janeiro, abriu o gás e esperou pela morte. Antes, no
entanto, afixou na porta um bilhete de despedida que se encerrava com a frase
“não risquem fósforos”. Quase ao mesmo tempo, Jango dizia através do rádio e da
televisão que “temos muitas razões para acreditar que, mercê de nosso esforço e
de nosso patriotismo, o ano que amanhã se inicia será mais generoso para todos
os brasileiros”.
Ao menos no futebol, e em especial para um
brasileiro chamado Mané, a previsão se mostraria verdadeira.
2 de janeiro, terça
Ano de Copa do Mundo e o futebol entrava na pauta
com o maior jogo do país: Botafogo de Garrincha versus Santos de Pelé. Na véspera,
os dois times treinaram e confirmaram a escalação de todos os seus titulares
para o amistoso que abriria a temporada no Maracanã. Antes da partida,
Garrincha receberia um automóvel Simca Chambord, por ter sido eleito o jogador
mais querido do Rio de Janeiro em promoção do Jornal dos Sports e da revendedora
Simcar. Os cupons para votar foram publicados durante sete semanas no jornal e
eram depositados pelos torcedores em urnas espalhadas pela cidade. Ao final,
Garrincha foi o vencedor com 300.247 votos. O vascaíno Bellini ficou em
segundo, com 245.308 e ganhou um terreno em Cabo Frio.
Antes de a bola rolar, Garrincha recebeu a sua
Simca Chambord e a faixa de campeão carioca entregue por Pelé, a quem retribuiu
com a faixa de bicampeão paulista. Passadas as homenagens, nem a boa atuação de
Pelé segurou o Botafogo de Garrincha na abertura da temporada do futebol
brasileiro. O Santos começou no ataque, mas esbarrou em um impecável Manga e
pagou caro aos 24 minutos quando Calvet aterrou Amarildo na área. Romualdo Arppi
Filho botou na marca fatal e Amarildo executou Laércio chutando forte no canto
esquerdo. No segundo tempo, dois gols em oito minutos. China, que entrara no
lugar de Quarentinha que vinha de longa inatividade, arrematou na trave e
Amarildo pegou o rebote para fazer 2x0. No terceiro, inverteram-se os papéis: Amarildo
lançou China que deu um belo lençol para encobrir Laércio e marcar um
golaço. Festa dos cem mil botafoguenses, com direito a um gesto de
solidariedade. Parte da renda recorde de mais de quinze milhões de cruzeiros
foi doada às vítimas do incêndio no Gran Circus Norte-Americano ocorrido no dia
17 de dezembro de 1961 em Niterói.
Botafogo 3x0 Santos
3 de janeiro de 1962 – Amistoso
Estádio do Maracanã – Rio de Janeiro,
RJ
Público: 95.518 pagantes (102.348
presentes)
Árbitro: Romualdo Arppi Filho
Botafogo: Manga, Rildo, Zé Maria,
Nílton Santos e Chicão (Wilton); Ayrton
e Didi; Garrincha, Quarentinha
(China), Amarildo (Amoroso) e Zagallo.
Técnico: Marinho Rodrigues
Santos: Laércio, Lima, Mauro (Olavo),
Calvet e Dalmo; Zito e Tite; Dorval,
Coutinho (Pagão), Pelé e Pepe.
Técnico: Lula
Gols: Amarildo (pênalti) aos 24 do 1º
tempo; Amarildo aos 4 e China aos
8 do 2º tempo.
Sobre o autor:
Mauricio Neves de Jesus é advogado e professor universitário.
Na área jurídica, é autor da obra “Adolescente em Conflito com a Lei: Prevenção
e Proteção Integral”. Como cronista esportivo, foi editor do blog Jogo
Aberto, do jornalista Lédio Carmona, e publicou os livros “1981 – O Primeiro
Ano do Resto de Nossas Vidas”, sobre o ano mais glorioso da história do
Flamengo, e “Aquelas Camisas Vermelhas”, a história do Internacional de Lages,
campeão catarinense de 1965.
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