Ele é um contador de histórias. Do futebol, da vida. Suas
crônicas estão aí para nos ajudar a manter viva nossa memória afetiva,
especialmente com o esporte que move paixões pelo país da bola.
Lúcio Humberto Saretta está aí, novamente, com mais um
belo livro: “Lições da Barbearia – Crônicas de gols, cestas e nocautes”
(Edições BesouroBox).
A nostalgia que
move a paixão
Por Geneton Moraes
Neto
O que é que alimenta essa paixão irrevogável do
brasileiro pelo futebol? Vou me arriscar a produzir uma tese, sem qualquer base
científica, é claro: um dos principais combustíveis dessa paixão é a nostalgia.
Todo fã de futebol é, no fundo, um nostálgico incurável. Ainda bem!
Lições da Barbearia
é um mergulho na bendita nostalgia que move a paixão pelo futebol: aqui, Lúcio
Saretta trata de transformar o passado em palavras.
O elenco desta Barbearia é variadíssimo: lá vem
Claudiomiro (o que teve a ventura de substituir Pelé no jogo em que o Rei se
despedia da Seleção), lá vem Garrincha, lá vem o Inter, lá vem o Grêmio, lá vem
Oreco (o craque que morreu num jogo de veteranos), lá vem a lembrança, lá vem a
saudade.
Ah, as doces memórias do esporte!
Pausa para a digressão número um. Uma vez, eu estava
entrevistando um exilado cubano famoso, o escritor Guilherme Cabrera Infante.
Lá pelas tantas, ele me perguntou se eu costumava gravar todas as entrevistas que
eu fazia. Eu disse que sim, religiosamente. O cubano refugiado em Londres fez,
então, uma observação interessante. Disse que eu poderia, um dia, fazer uma
entrevista sem gravador e, depois, escrever sobre o que ouvi. “Pode ter certeza
de que você só vai se lembrar do que é realmente importante.” Bingo! Bola na
rede! Cabrera Infante tinha razão: a gente só se lembra do que importa. A gente
só guarda na memória rostos, cenas, datas e nomes que, por um ou outro motivo,
nos são realmente importantes. O trator dos neurônios soterra o resto.
Pausa para digressão número dois. Quando eu tinha meus
doze anos, no Recife, meu professor de desenho no Colégio São Luís – que Deus o
perdoe – passou o ano tentando me fazer entender que o “quadrado da hipotenusa
é igual à soma do quadrado dos catetos”. Declaro solenemente, diante deste
tribunal, que passei o ano preocupado com outro problema: o Sport Clube do
Recife, afinal de contas, iria ou não barrar a caminhada do Náutico rumo ao
título de heptacampeão pernambucano? O meu time de botão iria ou não ganhar o
dificílimo campeonato que a gente organizava na rua Dom Manoel da Costa, no
bairro da Torre?
Enquanto o professor – com cara de zagueiro alemão –
tentava me familiarizar com o fantástico mundo da geometria, eu ficava pensando
com meus botões: quem é hipotenusa? O que significa cateto? Onde fica a saída,
pelo amor de Deus? Cadê o meu timaço de botão?
Em resumo: o futebol ficou. A hipotenusa se foi. Dou
razão a Cabrera Infante: a memória é seletiva. Sou até hoje capaz de recitar de
cor a escalação do time do Palmeiras de 1968/1969: Perez, Scalera, Baldochi,
Minuca e Ferrari; Dudu e Ademir da Guia; Gildo, Servílio, Tupãzinho e Rinaldo.
Era meu time de botão. Jogava partidas épicas contra o Internacional, treinada
por Tonho (o Inter de Bráulio, Claudiomiro, Scala & Cia Ltda!).
Todo mundo é capaz de citar um jogador, uma vitória, uma
derrota, um título, um lance que a memória tratou de guardar.
Aos saudosistas: Lições
da Barbearia chegou para reavivar as lembranças. Aos que se esqueceram: Lições da Barbearia chegou para
refrescar a memória.
Literatura na Arquibancada destaca abaixo a primeira
crônica da obra.
A gôndola fantasma
Por Lúcio Humberto
Saretta
Chovia em Veneza. No escuro da noite, as gotas geladas
ameaçavam virar neve a qualquer momento. Eu e meus amigos estávamos totalmente
desprevenidos, sem “ombrello” ou coisa parecida. Descendo pelas ruelas
escorregadias, iluminadas pelo brilho tênue do interior das tavernas, tremíamos
de frio. Nosso alento era o vinho, comprado a granel e bebido direto no bico
das garrafas verde-escuro. A Praça São Marcos estava completamente vazia,
envolvida por uma sinistra névoa cinza. Dirigimo-nos, então, até a beira do
canal próximo ao Palácio Ducale, onde um grupo de gondoleiros conversava
despreocupadamente. Não perdi a oportunidade de perguntar a um deles: “Dov’è
stadio Pier Luigi Penzo?”. O sujeito, transtornado pela questão inusitada,
chegou mais perto e apontou para além da água, onde, muito longe, percebiam-se
vagamente pequenas luzes trêmulas.
Foi lá que o time da cidade conquistou seu maior título,
a Copa Itália de 1941. Na final do torneio, o Venezia desbancou a Roma de
Amedeo Amadei e companhia. Após um empate na partida realizada na “cidade
eterna”, o conjunto “neroverde” botou o caneco no armário graças a um gol
concretizado por Ezio Loik. O júbilo tomou conta do torcedor presente ao
pequeno estádio que, depois eu descobri, fica na ilha de Sant’Helena.
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Ezio Loik |
Em breve, Loik teria um novo companheiro para armar as
jogadas de ataque: Valentino Mazzola. Esse jovem craque, que vinha atuando pela
equipe da Alfa Romeo, de Milão, servia também à Marinha e, após algum tempo em
alto-mar, acabou alojando-se em Veneza. E assim, meio por acaso, juntou-se à
equipe. No princípio, Mazzola sofreu para decifrar a personalidade de Loik, com
suas sombrancelhas cerradas e seu jeito de poucos amigos. Com o correr dos
dias, contudo, os dois passaram a se entender melhor, até serem conhecidos como
“i gemelli veneziani” e maravilharem as plateias da Europa com a sincronia e
beleza do seu futebol. Loik possuía o nervo do trabalhador incansável e, embora
fizesse muitos gols, primava pelo espírito de luta na meia cancha direita.
Pelo lado esquerdo, por sua vez, Valentino era puro
refinamento. Suas ações eram urdidas com a fantasia e a coragem dos grandes
artistas. Cerebral e sanguíneo, foi um dos maiores jogadores da história do
futebol italiano. Não demorou para a dupla chamar a atenção do técnico da
seleção do país, Vittorio Pozzo. A estreia com a malha “azzurra” foi em abril
de 1942, contra a Croácia. Com o continente em guerra, o esporte tinha pouco
espaço para vicejar. Isso fazia ainda mais esperadas as fascinantes jogadas de
Loik e Mazzola. Infelizmente, para a torcida do Venezia, esse privilégio estava
com os dias contados.
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Valentino Mazzola |
Ofereço vinho para o gondoleiro. O tipo recusa,
provavelmente mais interessado em conduzir ricos turistas para garantir o lucro
do dia. Sobre nós, a estátua do leão alado, símbolo da cidade, contempla
impávido o horizonte. Recentemente, o Venezia havia militado com destaque na
Série A do campeonato italiano. Porém, aos poucos, o clube foi entrando em uma
linha descendente, de volta ao ostracismo. Quando questiono o gondoleiro sobre
quem era o técnico do time no momento, ele exclama, num misto de humor negro e
resignação: “Cambia più che mutande”. Algo como trocar de técnico como quem
troca de cuecas.
Tamanha desilusão encontra eco no momento da venda de
Loik e Mazzola para o Torino, em maio de 1942. Foi um duro golpe para a torcida
que perdia, repentinamente, a sua dupla de ouro e esperança maior de futuras
conquistas. Uma multidão enfurecida saiu às ruas, protestando contra a
desvairada decisão. A direção alega o estado precário das finanças do clube
como razão do negócio. Era o fim de um breve e intenso romance entre os dois
excepcionais jogadores e a charmosa cidade. O destino dos “gêmeos venezianos”
oscilaria com a malha grená do Torino, entre a fama, a lenda e a tragédia.
Valentino tornou-se o capitão do time que conquistou
cinco “scudettos” consecutivos durante a década de 1940. De fato, as façanhas
do Torino correram o mundo e a sua superioridade avassaladora sobre as demais
equipes marcou época. Em maio de 1949, Valentino troca flâmulas com o capitão
do Benfica, Ferreira, antes do encontro amistoso entre as equipes. Ao retornar
de Lisboa, o avião que conduzia o time choca-se contra a basílica de Superga
nos arredores de Turim, matando todos os passageiros e encerrando subitamente a
história do “Grande Torino”. Na ocasião, nuvens carregadas, pesadas como o
chumbo, vertiam uma chuva inclemente, enquanto relâmpagos rasgavam os céus com
fúria.
A névoa, então, foi se fazendo cada vez mais espessa,
misturando-se com as águas do canal como se fosse uma mancha, obscurecendo a
visão do redor. Bebi outro gole de vinho, procurando despertar os sentidos. Por
um instante, o breu tornou-se absoluto. Até que, aos poucos, a bruma foi
desvanecendo e pude vislumbrar, entre gaivotas que voavam baixo, uma gôndola
partindo lentamente. Como se fosse um fantasma, o vulto do gondoleiro
conduziu-a para o mar, levando embora um pouco da história extraordinária do
futebol de uma cidade e seus ídolos imortais.
Sobre o autor:
Lúcio Humberto
Saretta é autor dos livros Alicate
contra Diamante e Crônicas Douradas.
Escreve suas impressões sobre a vida em diversos sites e blogs eletrônicos,
resgatando grandes personagens que fizeram a história do esporte e da arte ao
redor do mundo.
Publiquei no FeedTurbo.
ResponderExcluirUm abraço querido.
Fui!
Aqui: http://www.feedturbo.com/beth-muniz
Obrigado Beth. Sempre atenciosa. bj
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