No dia 15 de abril ele completou 50 anos, meio século de
uma vida que por muito pouco teria sido interrompida tragicamente. Walter
Casagrande Júnior, o Casão, ídolo do futebol brasileiro e comentarista da Rede
Globo presenteou-se com a publicação de um livro, a sua biografia escrita a
quatro mãos com o jornalista Gilvan Ribeiro.
“Casagrande e seus demônios” (Globo Livros) é, na
verdade, um documento histórico e importantíssimo para aqueles, esportistas ou
não, que passam ou já passaram por dramas similares ao que o ex-jogador passou
e ainda passa, com a dependência química.
Ao assumir a dependência, internar-se e, logo a seguir,
publicar em livro tudo que passou (e ainda passa), uma verdadeira enxurrada de “puristas”,
especialmente nas redes sociais, passou a recriminar o personagem e a obra. “Que
país é esse, com ‘exemplos’ como este?”. Esta foi uma das mais suaves críticas
recebidas.
Só mesmo quem tem ou teve algum dependente químico sabe o
que Casão está vivendo. Aqueles que não tem coragem para enfrentar o próprio drama,
perguntam-se: para que revelar o próprio martírio? Casão tem a resposta: “Fiquei
encurralado por minha própria história, decidi contar tudo para que ninguém
mais fique me perguntando sobre esse período negro.”
O livro surgiu muito antes de Casagrande ser internado.
Em 2000, junto com o amigo e guitarrista Marcelo Fromer, começou a produzir algo
que, no futuro, poderia virar um livro. Só que, um ano depois, o amigo morreu
atropelado por uma motocicleta. Várias fitas gravadas por ambos perderam-se.
Somente oito anos depois, o jornalista Gilvan Ribeiro ressurge com a ideia de
escrever a biografia de Casão. Outro período complicado, pois o personagem já
estava internado e seus médicos resistiam à ideia temendo que o trabalho para
produzir o livro pudesse desequilibrá-lo. Há dois anos, Gilvan Ribeiro,
finalmente, começou a encadear uma história que, fatalmente, virará um filme.
Sim, um filme, porque a vida de Casagrande é um roteiro
pronto para telas. É o que garante o autor do prefácio da obra, Marcelo Rubens
Paiva. A obra escrita por Gilvan Ribeiro é o ponto de partida para qualquer
diretor cinematográfico. Do texto abaixo, o prefácio de Marcelo Rubens Paiva,
há uma frase definitiva para quem ainda discorda da atitude de Casagrande, de
enfrentar e tornar público seus “demônios”: “A verdade ajuda a sanidade”.
Por Marcelo Rubens
Paiva
(Corintiano,
maloqueiro, escritor)
“Minha vida dá um livro”. Se alguém tem o direito de
fazer este comentário, seu nome é Walter Casagrande Júnior, nosso amigo Casão,
o homem gol com sangue de roqueiro, inquieto, curioso, destemido, atirado e,
sobretudo, amigo prestativo e fiel.
Recentemente, ele se emocionou e se divertiu em Tóquio,
chorou e riu, cobrindo o seu Corinthians no Mundial de Clubes da Fifa 2012. Nos
mandava mensagens pelo celular antes dos jogos, ainda madrugada no Brasil: “Acorda,
meu, vai começar o jogo!”.
Sua vida dá um livro. Dá um filme. Dá uma ópera rock, sob
a supervisão de Lobão, Nasi Valadão, Kiko Zambianchi, Lee Marcucci e Titãs,
rapaziada bem vivida de seu círculo de amizades.
Ópera que começaria com ele sozinho em seu apê no bairro
Alto de Pinheiros, em São Paulo, na meia-idade, com um dos melhores empregos do
telejornalismo, o de comentarista esportivo respeitado e com prestígio na Rede
Globo.
As janelas estão fechadas há dias, e as portas,
trancadas. Um cheiro de cigarro, bebida, busca e mofo no ar. Por que sempre
queremos mais? Se nos dão o topo, queremos atravessar as nuvens. Se estamos na
estratosfera, queremos ir a outros planetas, outras galáxias. Uma inquietação
que alimenta a humanidade.
O protagonista Casão, de short, sem camisa, barba por
fazer há dias, cabelos escorridos, emaranhados, começa seu ritual macabro e
rotineiro. O que buscava? O fundo. O outro lado. A fronteira.
Tranca as portas. Coloca o DVD do The Doors. Senta-se
diante de uma mesa. Primeiro, cheira três carreiras de cocaína. Toma uns
comprimidos para dar barato. Prepara, aí sim, o néctar, a estrela de sua
festinha particular, uma seringa com heroína. Faz um torniquete, procura uma
das poucas veias que ainda aguentam o tranco de uma agulhada. Enquanto a droga
injetada vagueia pelo corpo, ele enxuga meia garrafa de tequila e, para dar a
liga final, fuma um baseado.
E quem me descreveu essa cena, com uma sinceridade
comovente, num fim de tarde comum, foi o próprio. Continua.
Ele se deita no chão sobre uma mandala, abraçado a um
grande crucifixo. Acende um
Marlboro light e vê pela enésima vez Jim Morrison cantar: “This is the end, my
only friend, the end our elaborate plans, the end of everything that stands,
the end, no safety or surprise, the end…” [Este é o fim, meu único
amigo, o fim dos nossos planos traçados, o fim de tudo que interessa, o fim sem
saída nem surpresa, o fim...]
Difícil tal cena ser imaginada. Por mais exagerada e
absurda que possa parecer, isso acontecia nos últimos dias do mergulho profundo
a uma viagem tenebrosa e solitária que, por milagre, foi interrompido graças à
sua família e à perseverança de um filho. Sua busca não tinha mais um fim em si
mesmo, mas o próprio desfecho embutido.
Ele é levado à força a uma clínica, e nos primeiros
quatro meses fica em isolamento, sem TV ou jornais. Ao todo, o tratamento dura
um ano.
Repensa. Relembra. Aos dezoito anos de idade, como jogador,
faz quatro gols na estreia como profissional do Corinthians. Dias depois, faz
três contra o arquirrival Palmeiras. Parece sonho de um moleque torcedor, mas
assim ele começou.
Corta. Estamos agora no comício das Diretas Já. Ele,
Sócrates, Wladimir e Zenon, diante de mais de 1 milhão de pessoas no
Anhangabaú, ao lado de Osmar Santos, gritam: “Queremos eleições diretas!”.
Num flashback, aparece com dois amigos levando uma dura
da Rota, que procura o baseado que ele, Casão, dispensou segundos antes. O jogador
já famoso e articulador do movimento Democracia Corintiana apanha da polícia em
plena Marginal Tietê. Dias depois, é preso no aeroporto Santos Dumont com uma
presença implantada pela Polícia Federal, braço repressivo da ditadura, que
anunciou a prisão com toda a pompa.
Muitos acharão que o autor deste livro ou os roteiristas
do suposto filme carregaram na tinta, maltrataram o teclado e exageraram, para
ampliar os conflitos e pontos de virada, para tornar a narrativa mais atraente
do que ela é. Impossível.
![]() |
Casagrande e Sócrates, no comício das "Diretas Já". |
Sim, tudo isso aconteceu e está contado aqui por Gilvan
Ribeiro, que não segue a ordem cronológica previsível, não se censura, não
adoça, e começa pelo pior, pelos Demônios
à solta.
Casão faz questão de contar o inferno que viveu quando
era viciado em drogas e sua internação, pois para ele é fundamental passar
adiante a experiência, dividir as dores da dependência e alertar para os
perigos de um vício frenético, sem preconceitos, desvios ou mentiras. A verdade
ajuda a sanidade.
Ele nos lembra com uma incrível riqueza de detalhes,
coração aberto, sincero, memória preservada, como um alerta. Crianças, não se
espelhem em mim. Vi o inferno. Passeei de mãos dadas com o demônio. E não
recomendo.
Eu, “curíntia” fanático, amigo do Dotô, ou Magrão
(Sócrates), acompanhei de perto as aventuras e provocações da Democracia
Corintiana. Torcia por aquele camisa 9 cabeludo que frequentava as mesmas casas
noturnas que eu, como o Carbono 14, na Bela Vista, achava o Rose Bom Bom muito “playba”
– onde começou a cena roqueira brasileira dos anos 1980 –, era amigo dos meus
amigos e jogava muito!
Desde os catorze anos ele já era bicho-grilo. Andava de
Havaianas ao contrário, jeans desbotado, camiseta da irmã, tipo baby look. Usou tamancos na época. Saía
muito com o Magrão [Sócrates], que o adotou. Casão com dezoito anos, já no
profissional do Corinthians, ele com 27. Ele sábio, equilibrado, diante do
garoto passional, que queria experimentar tudo na vida.
Foi em 1982, durante o show de Peter Frampton no
Corinthians, que o apresentaram à cocaína. Sentiu-se Zeus no Monte Olimpo. “O
cara me deu um colar com uma conchinha cheia de pó, e eu ficava cheirando e
bebendo Campari a noite toda, nem vi o show. Depois fui tirar uma foto com o
Peter Frampton. Eu parecia um fantasma”, me disse certa vez.
Corinthians, Seleção brasileira. Seguiu o caminho dos
grandes ídolos. Ficou oito anos jogando na Europa, primeiro no Porto, Portugal,
e depois no Torino, Itália, com uma rotina bem família, sem se drogar, até ser
introduzido à heroína. Usou três dias direto, sem parar. Sacou que aquilo não
ia dar certo. A droga passou a fazer parte de sua “filosofia de vida”.
Em 2005, como comentarista, se injetava e saía dirigindo
o carro, vendo estrelas e fantasmas.
Galvão Bueno e, principalmente, Marco Mora, diretor
executivo da CGESP (Central Globo de Esportes em São Paulo), o bancaram durante
a internação. A imprensa o preservou, por respeito ao seu passado e ao grande
cara que todos adoram. Até o desafeto ex-goleiro e técnico Emerson Leão, que
era contra a Democracia Corintiana, o procurou e o apoiou. Paulo César Caju,
craque que viveu drama semelhante, deu suporte. Assim como Lobão.
Não fugia da clínica porque queria provar que não
precisava estar lá. Ficou quatro meses. Descobriu que, sim, precisava estar lá,
que “dependentes químicos usam drogas para se anestesiar de algo na vida com
que eles não conseguem lidar”. Ficou mais oito meses, totalmente isolado,
recebendo visitas apenas dos familiares.
Casão ainda faz terapia, anda com psicólogas. E, como
poucos, consegue rir da desgraça pela qual passou. Voltou a ser um dos melhores
comentaristas da TV brasileira.
Ciente de que é ex-dependente, grupo que, segundo ele,
mais sofre preconceito no Brasil, milita agora em palestras, abre o jogo em
eventos e entrevistas, alerta e expõe seu drama pessoal, tão bem contado aqui
nestas páginas pelo confidente e amigo jornalista Ribeiro.
Sobre os autores
(da orelha do livro):
A mistura de futebol e rock ganhou a sua mais perfeita tradução em 15 de abril de 1963, quando Walter Casagrande Júnior nasceu no bairro da Penha, em São Paulo. Revelado pelo Corinthians, em 1980, também deixou seu nome na história de Caldense, São Paulo, Porto, Ascoli, Torino e Flamengo. Pela Seleção brasileira, disputou a Copa do Mundo de 1986, no México. Logo após se despedir dos gramados, em 1996, tornou-se comentarista da ESPN/Brasil. A partir de 1997, passou a integrar a equipe da TV Globo e do SporTV.
Gilvan Ribeiro nasceu em Bauru, interior de São Paulo, no
dia 31 de dezembro de 1964, e iniciou a carreira de jornalista na Folha de S.
Paulo, em 1987. Trabalhou como repórter da ESPN/Brasil de 1994 a 1998. Está no
Diário de S. Paulo (antes, Diário Popular) desde 1992 e, atualmente, é editor do
caderno de esportes. Este é o primeiro livro dos dois.
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