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Arte: Zuca Sardan |
“Deixa Falar: o
megafone do esporte”, espaço de debates que sai quinzenalmente,
sábado sim, sábado não, aqui, no Literatura na Arquibancada, na Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br), no blog
do Juca (http://blogdojuca.uol.com.br/
) e no Centro Esportivo Virtual (CEV) (http://cev.org.br/),
debatendo o esporte em geral e o futebol em particular, dialogando com a
História, Política, Música, Economia, Literatura, Cinema, Humor, apresenta
nesta sua sexta edição, artigo especial do cineasta e mestre Ney Costa Santos.
Como o tema do artigo de mestre Ney é João Cabral,
Literatura na Arquibancada recomenda também leitura de artigo já postado por
aqui sobre o poeta:
João Cabral de Melo Neto e o Futebol
Por Ney Costa Santos
O poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, um dos grandes da poesia brasileira, gostava de futebol e chegou a jogar como meio de campo no juvenil do Santa Cruz, onde foi campeão em 1935.
Sua
poesia era a das coisas em si.
O que o interessava era aquilo de dentro, o
interno, o miolo das coisas e, assim falando, falava do mundo, daquilo que nele
observava e vivia.
Embora
dissesse que o seu interesse por futebol tenha durado dos oito anos até a
adolescência, os poemas sobre esse assunto em sua obra revelam o olhar agudo de
quem vê o jogo por dentro e não se fixa tão somente às suas exterioridades: o
espetáculo, o rumor das torcidas, a plasticidade das jogadas, a fantasia
criativa de um gol raro ou decisivo.
No livro Museu de Tudo, publicado em 1975, há quatro poemas sobre o futebol: O torcedor do América F.C.; Ademir da Guia; Ademir Menezes; O Futebol Brasileiro evocado da Europa.
No
poema sobre o torcedor do América de Recife, tradicional clube pernambucano ainda
em atividade, Cabral desvenda o gosto raro daquele torcedor que não convive com
as vitórias, que torce pelo time pequeno nos estádios vazios.
O TORCEDOR DO AMÉRICA F.C
O desábito de
vencer
não cria o calo
da vitória
não dá à vitória
o fio cego
nem lhe cansa as
molas nervosas.
Guarda-a sem
mofo: coisa fresca,
pele sensível,
núbil, nova,
ácida à língua
qual cajá,
salto do sol no
cais da Aurora.
Os
cariocas ao lerem esse poema pensarão logo no América do Rio, matriz dos
Américas do Brasil, quase todos padecendo desse “desábito de vencer”.
Pessoalmente, penso na saga do América, o “Mequinha”, tão caro às tradições do
futebol carioca, time de meus tios-avós tijucanos, um time grande na minha
infância, que vi no Maracanã, na arquibancada atrás do gol, aos dez anos, ser
campeão carioca de 1960. Cabral fala do América do Recife e de todos os
Américas, de todos aqueles que torcem pelos times pequenos e carregam essa
paixão machucada pelas várzeas e estadinhos Brasil a fora, sofrendo e ansiando
por uma vitória que raramente vem, mas quando chega é saboreada como “coisa
fresca, pele sensível, núbil, nova, ácida à língua qual cajá”, tal um sol
brilhante e repentino.
Seria essa fruição rara o segredo da persistência da paixão do torcedor pelos clubes sem glórias?
Os dois
poemas seguintes são sobre ritmo: Ademir da Guia e À Ademir Menezes.
ADEMIR DA GUIA
Ademir impõe com
seu jogo
o ritmo do chumbo
(e o peso),
da lesma, da
câmara lenta,
do homem dentro
do pesadelo.
Ritmo líquido se
infiltrando
no adversário,
grosso, de dentro,
impondo-lhe o que
ele deseja,
mandando nele,
apodrecendo-o.
Ritmo morno, de
andar na areia,
de água doente de
alagados,
entorpecendo e
então atando
o mais irrequieto
adversário.
Ademir
da Guia era freqüentemente acusado de lento e de atrasar o jogo. Pura
inverdade. Filho do lendário zagueiro Domingos da Guia. Ademir começou no Bangu
em 1960, foi para o Palmeiras em 1962 e lá jogou até 1977, participando de
times como a célebre Academia. Seu ritmo era diferente, pensado e calibrado, sempre
atento às variações e alternâncias do jogo ao qual Ademir ia impondo o seu
ritmo. Organizava o meio de campo e a saída de bola. Quando seu time era
atacado, ele sabia desarmar o adversário e passar rapidamente da defesa ao
ataque. Sempre o pensamento em movimento, a cadencia exata e necessária a cada
circunstancia do jogo. Ademir fazia o passe médio e longo, era capaz de correr
com a bola dominada, ir à linha de fundo e cruzar com precisão, tinha presença na
área para uma cabeçada ou o arremate final. Seu repertório rítmico era variado
e por isso se impunha à correria adversária. A alegada lentidão não era a pouca
velocidade, mas a capacidade de pensar e alternar a cadencia de jogo, era o
ardil e não o espalhafato, futebol inteligente e não ornamental. Ademir da Guia
foi um artista sereno e refinado. Quem não o viu jogar ou está cansado de ouvir
essa conversa fiada de lentidão, deve ver o documentário “Um Craque chamado
Divino”.
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Ademir Menezes |
A ADEMIR MENEZES
Você, como outros
recifenses,
nascido onde
mangues e o frevo,
soube mais que
nenhum passar
de um para o
outro, sem tropeço.
Recifense e,
assim dividido
entre dois climas
diferentes,
ambidextro do
seco e do úmido
como em geral os
recifenses,
como você,
ninguém passou
de dentro de um
para o outro ritmo
nem soube
emergir, punhal, do lento.
secar-se dele,
vivo, arisco.
Ademir
Marques de Menezes, craque famoso dos anos 40 e 50, foi artilheiro da Copa de
1950 com nove gols. Jogou a maior parte de sua carreira no Vasco da Gama, no
famoso time do Expresso da Vitória. Em 1946 e 1947 jogou no Fluminense,
sagrando-se campeão carioca na sua primeira temporada.
Não vi
Ademir jogar e as poucas imagens que restam dele são aquelas da Copa de 50. Lembro-me
bem de quando era garoto e ouvia as conversas dos mais velhos, que tomavam
cervejas nos quintais enquanto as crianças zuniam pela casa nos aniversários.
Eles descreviam os rushes de Ademir, arrancadas fulminantes em dribles rápidos,
sua capacidade de sair da imobilidade e disparar em direção ao gol adversário.
Contavam que era um artilheiro agudo e preciso.
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Ademir Menezes |
João Cabral, em Ademir Menezes, fala dessa dualidade rítmica, própria dos recifenses.
O ritmo do mangue, que ata, e o do frevo, que dispara; a capacidade de passar de um a outro, sem tropeço, tal um punhal “vivo e arisco”.
Nesses
dois poemas Cabral fala da beleza que a mescla de habilidade técnica e
capacidade de variação rítmica desses jogadores-artistas proporcionava ao
espectador.
É um olhar para o “dentro” do futebol e não apenas para os seus
aspectos externos.
O FUTEBOL BRASILEIRO EVOCADO DA EUROPA
A bola não é a
inimiga
como o touro,
numa corrida;
e embora seja um
utensílio
caseiro e que se
usa sem risco,
não é o utensílio
impessoal,
sempre manso, de
gesto usual:
é um utensílio
semivivo
de reações
próprias como bicho,
e que, como
bicho, é mister
(mais que bicho,
como mulher)
usar com malícia
e atenção
dando aos pés
astúcias de mão.
Há uma
expressão entre os boleiros que bem define o perna-de-pau: “Esse não tem
intimidade com a bola...” A proximidade carinhosa com ela, a atenção aos seus
caprichos, como os de uma mulher, está no DNA do futebol brasileiro. Ao
contrário de Lima Barreto e Graciliano Ramos que viram o futebol como um
estrangeirismo passageiro, João Cabral percebe o modo original do estilo
brasileiro e define poeticamente essa maneira de jogar “com malícia e
atenção/dando aos pés astúcias de mão”. Entre essas astúcias estão o passe
longo e preciso ao vislumbrar o deslocamento do companheiro, a capacidade de
antever a jogada, a fantasia do drible e da resolução rápida, as trajetórias
surpreendentes da bola nas cobranças de faltas.
Em um poema do livro Agrestes (1985), João Cabral fala de outra característica do futebol brasileiro clássico. Digo clássico, pois em tempos de ênfase em times de guerreiros, primeiro combate, volantes de contenção e outras expressões de infantaria, a arte do passe parece em decadência. Telê Santana dizia que “o passe é um gesto de amizade”. É por aí.
DE UM JOGADOR BRASILEIRO
A UM TÉCNICO
ESPANHOL
Não é a bola
alguma carta
Que se levar de
casa em casa:
é antes telegrama
que vai
de onde o atiram
ao onde cai.
Parado, o
brasileiro a faz
ir onde há-de,
sem leva e traz;
com aritméticas
de circo
ele a faz ir onde
é preciso;
em telegrama, que
é sem tempo
ele a faz ir ao
mais extremo
Não corre: ele
sabe que é a bola,
telegrama, mais
que voa.
É uma
descrição precisa do que é ou foi a arte do passe no futebol brasileiro. Penso
logo em Gerson, Didi, Zico, Ademir da Guia. Talvez hoje no futebol brasileiro
apenas Deco e Ronaldinho Gaúcho, quando quer, sejam os herdeiros e praticantes
dessa arte requintada. Passe, sim, e não assistência, como quer o jargão do
atual jornalismo esportivo que importou o termo do basquete. Assistência lembra
sirene, socorro, ambulância...
Na arte
do passe brasileiro, o craque faz a bola chegar ao seu destino com cálculo de
engenheiro e “aritméticas de circo”. Ciência e fantasia.
Os dois poemas seguintes, publicados em Crime na Calle Relator (1987), tratam da liberdade absoluta em um futebol utópico, livre dos esquemas táticos, um futebol que não mais seria jogo e sim brincadeira absoluta.
BRASIL 4 X ARGENTINA 0
Quebraram a chave
da gaiola
e os quadros-negros da escola.
Rebentaram enfim
as grades
que os prendiam
todas as tardes
Nos fugitivos, é
a surpresa,
vendo que
tomaram-se as rédeas
(dos técnicos
mudos, mas surpresos
brancos, no
banco, com medo).
Estão presos os
da outra gaiola
que não souberam
abrir a porta:
ou não o puderam,
contra o jogo
dos que estavam
de fora, soltos.
De certo também
são capazes
de idênticas
libertinagens
uma vez soltos,
porém como
se liberar daquele
tronco
em que os
aprisionaram os táticos
argentinos,
também gramáticos.
E enquanto os
fugitivos seguem
com a soltura, a
sem lei que os regem,
nos bancos é uma
a indignação:
dos que vão
vencendo e dos que não:
“Voltamos ao
futebol de ontem?
Voltou a ser um
jogo dos onze
Voltou a ser
jogar de pião?
Chegou até cá a
subversão?
Como é possível
haver xadrez
Sem gramática,
bispos, reis?”
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João Cabral e a camisa do América |
Nesse Brasil e Argentina as gaiolas das táticas e estratégias foram abertas e jogou-se sem gramática, bispos e reis, um anti-xadrez, um jogo de invenção e criatividade permanente, tão destituído de qualquer calculo ou planejamento, que nem a múmia que vivia na Capelinha da Jaqueira precisou ser convocada.
A
MÚMIA
Na Capelinha da
Jaqueira
uma múmia
sobrevivera.
A de Bento José
da Costa
ou de alguma
amante preposta?
Ela não fazia
fantasma:
era mais bem alma
gorada,
ovo encruado,
infermentação,
que nunca pode
assombração.
*
Caminho do Campo
do América
se ensaiavam
dribles em sua pedra.
Se imitavam
chutes sem bola
na pedra anônima
em que mora.
E fosse de dia ou
de noite
nunca foi de
acenar a foice,
nem com gesto
armado de morte
acenar-se sequer,
de chofre.
*
Na Capelinha da
Jaqueira,
a múmia, amiga e
companheira,
punha-se acima de
quem joga:
nunca envergou a
negra toga,
ridícula, de juiz
de futebol,
de calças curtas
como um sol
castrado, já
antes do apito
epilético; é
Meritíssimo.
*
Talvez porque a múmia
era cega?
Nunca ela torceu
pelo América.
Também nunca
acendemos vela
para que ela, com
suas trelas,
driblasse a
defesa contrária,
o juiz, e até as
arquibancadas,
e entrasse só no
gol do Esporte,
num “gol de
chapéu”, com a Morte.
Talvez
só Garrincha, algum dia, tenha jogado esse futebol da ludicidade absoluta, o
prazer de jogar uma doce pelada cósmica.
Sobre Ney
Costa Santos:
É Flamengo, Mestre em Comunicação Social e Professor da PUC-Rio. Cineasta, dirigiu os filmes Heleno e Garrincha, Meu Glorioso São Cristovão, O Pulo do Gato, Cinema Interior, Cole in Rio e Padre-Mestre.
Ney Costa Santos é um convidado especial do Megafone que certamente passará a ser membro efetivo. Apoia enfaticamente “Fora Marin”.
Três toques do Megafone:
1) Como disse o autor sobre Ademir da Guia, “quem não o viu jogar ou está cansado de ouvir essa conversa fiada de lentidão, deve ver o documentário Um Craque chamado Divino.” No link o trailer do filme. Um colírio para os admiradores do futebol arte:
http://www.youtube.com/watch?v=SplZHzOUEDY
2) João Cabral de Melo Neto teve seu poema Morte e Vida Severina, musicado por Chico Buarque de Hollanda, a pedido de Roberto Freire, diretor do teatro TUCA da PUC de São Paulo. A peça encenada em 1966 se tornou um sucesso, recebendo premiação no festival universitário de Nancy, na França. João Cabral foi o poeta brasileiro que mais se dedicou ao futebol.
No link você pode ver a força e a beleza do poema (parte 8) de João Cabral musicado por Chico:
http://www.youtube.com/watch?v=uL9cDmQxMwo
3) Ney Costa Santos voltará em breve ao Megafone com o artigo Heleno e Garrincha, tema de um de seus filmes.
Deixa Falar: o megafone do esporte, criação e edição de Raul Milliet Filho.
Sobre os autores
do “Deixa Falar: o megafone do esporte”
Ademir Gebara – Graduado em História e Educação Física, mestre em História pela USP, PH D em História pela London School of Economics and Political Science., ex-diretor e coordenador de Pós da FEF Unicamp, professor visitante da Universidade Federal da Grande Dourados.
Antonio Edmilson Rodrigues – é América, livre docente em História, professor da UERJ e da PUC-RJ, pesquisador de História do Rio de Janeiro, escritor de temas vinculados à história urbana, coordenador do projeto Conversa de Botequim e autor de João do Rio, a cidade e o poeta.
Bernardo Buarque – professor da Escola Superior de Ciências Sociais (FGV) e pesquisador do CPDOC/FGV. `É editor da coleção Visão de Campo (7 Letras). Em 2012, publicou o livro ABC de José Lins do Rego (Editora José Olympio).
Flavio Carneiro – É botafoguense, além
de escritor, roteirista e professor de literatura na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro (UERJ).www.flaviocarneiro.com.br.
José Paulo Pessoa –
é botafoguense, ator, advogado, que achava o Didi mais impressionante que o
Garrincha (que foi o maior que já vi!). Diretor, cantor e compositor do Bloco
das Carmelitas, de Santa Teresa (RJ).
José Sebastião Witter –
é torcedor do São Paulo, professor emérito da USP e professor normalista.
Luiz Carlos Ribeiro é professor do Departamento de
História da UFPR e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade.
Marcelo W. Proni –
economista, doutor em Educação Física pela Unicamp, professor do Instituto de
Economia da Unicamp, torcedor do Botafogo de Ribeirão Preto.
Marcos Alvito - É carioca de Botafogo e Flamengo até morrer. É um antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984. Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão. Acaba de publicar A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra (www.clubedeautores.com.br)
Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para crianças e jovens.
Ricardo Oliveira –
é Vasco, jornalista, educador da prefeitura do Rio de Janeiro e pesquisador da
História do futebol. Coordenador da pesquisa do livro Vida que Segue: João
Saldanha e as Copas de 1966 e 1970.
Wanderley Marchi Jr – doutor em Educação Física e
Sociologia do Esporte e professor da Universidade Federal do Paraná/BRA e da
West Virginia University/USA.
Zuca Sardan (Carlos Felipe Saldanha) – É torcedor do Vasco, nasceu no Rio de
Janeiro em 1933, mas vive em Hamburgo, na Alemanha. Estudou arquitetura, mas
fez diplomacia. Estudou desenho, mas fez letras. Hoje dedica-se a desenhos,
vinhetas, poesias e folhetins. Entre seus livros, estão: Ás de colete, poesias,
desenhos e Osso do Coração.
(para acessar o currículo
completo, clique aqui http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_verbete=5288&cd_item=35)
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