Música e Futebol. Futebol e Música. A tabelinha perfeita
na literatura esportiva nas mãos de um craque. Paulo Luna escreveu o que se
pode definir como “joia rara”. “No compasso da bola” (Irmãos Vitale Editores,
2011) é leitura obrigatória para os amantes da bola e da música. Uma pesquisa
histórica espetacular, feita com paciência e detalhamento necessários para se
transformar em livro.
Literatura na Arquibancada destaca abaixo a apresentação
do autor e o prefácio da obra feito pelo presidente do Instituto Cultural Cravo
Albin, Ricardo Albin. Outros trechos da obra podem ser acessados também pelo
link http://www.vitale.com.br/sistema/produtos/produto.asp?codigo=36369
Apresentação
Por Paulo Luna
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Arte Luciana Mello e Monika Mayer |
“É missão das histórias selecionar e é de sua natureza
incluir excluindo, e iluminar lançando sombras. É um grave equívoco, além de
uma injustiça, culpar as histórias por favorecerem uma parte do palco e
negligenciarem outra. Sem seleção não haveria história”. (Zygmunt Bauman).
Esporte e arte. Som e movimento. Futebol e música.
Consagração do instante em momento mágico. O futebol e a música se aproximam na
graça do movimento. A música leva à dança e o futebol é um jogo que propicia o
acontecer de um balé no campo. Ondulações cintilantes que extasiam. Em sua
curta trajetória no planeta Terra, a espécie humana tem perpetrado mistérios
variados. Fome, guerra, exclusão e miséria são situações que exploram as mais
altas consciências na tentativa de descobrir os seus porquês. Por outro lado, a
espécie humana é a mesma capaz de produzir as coisas mais espetaculares, as
obras mais fantásticas. Num exercício de imaginação, digamos que daqui a cem
mil anos a vida humana já tenha sido extirpada do planeta e alguma espécie de
outro sistema solar aqui chegar e, tendo a capacidade do raciocínio e da
compreensão tal qual a conhecemos, encontre entre destroços algumas partituras
musicais, alguns velhos discos ou CDs e, quem sabe, imagens de jogos de
futebol. Que impressão levaria da extinta raça que habitara o belo planeta
azul? Talvez rissem, talvez chorassem ou, quem sabe, levassem de volta a seu
planeta natal amostras desse enigmático povo capaz de matar e criar belezas em
proporções semelhantes.
A música popular, tal qual a concebemos hoje, e o futebol
são fenômenos que possuem certa contemporaneidade, pois são fruto da série de
transformações ocorridas, primeiramente, em várias sociedades europeias e,
posteriormente, espalhadas pelo mundo, a partir da chamada Revolução
Industrial. Assim, embora existindo desde remotas eras como parte de práticas
rituais religiosas e profanas, a música popular ganhou impulso com o
desenvolvimento das cidades e suas variadas formas de diversão e maneiras de se
ganhar a subsistência diária.
No Brasil não foi diferente o processo, mas sim o
resultado dessas transformações, uma vez que em nossa terra variados fatores
quase nunca pacíficos terminaram por propiciar uma mistura, um mestiçamento
tal, que as forças criadoras de negros, brancos e indígenas se amalgamaram para
criar possibilidades novas que continuam a intrigar os mais conceituados
estudiosos. E essa força nova, criativa, se fez presente de forma avassaladora
na música popular e no futebol, campos em que, por diferenciados aspectos, foi
possível mais rapidamente aos mestiços e negros romperem barreiras, o que em
outros campos da sociedade brasileira permaneceram intransponíveis.
Este livro se dedica a estabelecer um paralelo, observar
as sincronicidades, as convergências e divergências entre a música popular e o
futebol no Brasil. Como ocorre com todo o trabalho de pesquisa na área da
cultura não se pode reivindicar nenhum ineditismo ao tema, mas sim reconhecer
os trabalhos pioneiros sobre este. Porém, o pesquisador que se debruça sobre o
estudo da cultura, ainda mais em um imenso mosaico que não permite conclusões
definitivas, nem superlativas. As maneiras de jogar e de fazer música no Brasil
possuem, inevitavelmente, as tonalidades locais, regionais, assim como a
maneira de olhar sobre cada uma dessas duas facetas aqui investigadas.
Este trabalho teve início com uma observação sobre a
grande quantidade de canções existentes no repertório de variados artistas que
evocam o futebol. Evidente que tal observação em si nada tem de original, mas
possibilitou o ponto de partida para a busca da ampliação desse campo
investigativo para um pouco além do trivial, ou classicamente já conhecido, e
buscar resgatar outras criações e relações sobre a temática do futebol ainda
não devidamente investigadas.
Logo, foi possível ampliar gradativamente nosso campo
investigativo, o que possibilitou a listagem de mais de 300 composições tendo o
futebol como tema ou por ele passando de forma incidental. Não consideramos,
evidentemente, que a pesquisa factual esteja encerrada, pois se assim
estivesse, estaríamos contradizendo nossas palavras iniciais. Por estarmos no
Rio de Janeiro, ainda guardamos resquícios do passado e temos a mania de ver a
cidade maravilhosa como o centro civilizador do Brasil, o que impede uma melhor
observação sobre os fenômenos culturais das demais regiões do país. Apenas como
exemplo: músicas tendo como referência o Rio de Janeiro são entendidas por
muitos como se fossem músicas nacionais, enquanto as variadas musicalidades de
outros estados são tidas genericamente como regionais.
Evidente que as dimensões continentais do nosso país, o
avassalador volume de produção cultural, bem como o precário estado de guarda
de boa parte desse acervo impedem qualquer tentativa de buscar uma investigação
definitiva. Não pretendemos, por certo, realizar tal tarefa e conhecemos, de
antemão, muitas de nossas lacunas. Buscamos traçar, porém, uma radiografia das
relações entre a música popular e o futebol no Brasil, procurando seus pontos
de encontro e recortes comuns. Não tivemos nenhuma preocupação estética que
guiasse nossa investigação em torno de criações mais ou menos elevadas
musicalmente. Deixamos essa tarefa a quem dela quiser se ocupar. Escalamos
nosso time e o pusemos em campo, ou melhor, em pauta para atuar e esperamos que
o concerto possa servir de inspiração
a outros investigadores que, a partir do nosso levantamento, deem continuidade
a pesquisa e cheguem a novas conclusões. Na música, as notas musicais se
volatizam no ar e se dissolvem no ato da audição. No futebol, o gol (momento
maior desse esporte) é uma quimera que se dissolve no olhar e no grito de
alegria ou de dor de quem o vê. Músicas ficam registradas em discos, CDs e
outras formas mais modernas de registro, enquanto o futebol se eterniza em
filmes e videoteipes, mas ambas as artes, a música e o futebol, se
notabilizaram por lidarem com o efêmero e é desse sutil equilíbrio que essas
artes possibilitam o surgimento daquilo que possuem de mais belo, genial e
duradouro.
Foram cerca de dez anos de pesquisa, em parte de forma
sistemática e dirigida e, por outro lado, contando com a sorte e com o modo
aleatório. A tarefa foi realizada em arquivos particulares, bibliotecas, livros
e sites sobre música em geral, além do nosso acervo particular de LPs e CDs, e,
naturalmente, no respeitado conjunto de informações sobre o assunto constituído
pelo Dicionário Cravo Albin da música
popular brasileira, o qual conta com nossa participação na equipe de
pesquisa.
Para se descobrir a grande quantidade de músicas aqui
listadas foram necessárias inúmeras audições, isso sem falar no acaso que,
muitas vezes, colocou diante dos nossos olhos LPs ou CDs que continham alguma
música de acordo com o tema da pesquisa. Isso sem mencionar ainda toda a nossa
experiência de anos a fio frequentando as arquibancadas do Maracanã (Estádio
Mário Filho), do Estádio Mané Garrincha, do Caio Martins, da Arena Ilha do
Governador e, finalmente, do Engenhão (Estádio Olímpico João Havelange). Creio
que avançamos um pouco no tema, embora muito ainda tenha ficado de fora;
algumas coisas por não caberem nas nossas possibilidades temporais e outras
porque não conseguimos chegar até elas, e porque tínhamos, por força da própria
caminhada, que chegar a um ponto final.
Como bem explicitado na epígrafe deste livro, esta é uma
história e como toda história, ela foi criada a partir de uma seleção que
clareou alguns pontos e deixou outros obscurecidos, em que, afinal de contas,
não seria possível fazer diferente. Que a magia das vozes, das mãos e dos pés
possa falar mais alto nessa dança.
Prefácio
Por Ricardo Cravo
Albin
São duas – e muito claramente aceitas, reconhecidas e
apregoadas – as paixões do brasileiro.
Nem há como discutir sobre a verdade consolidada que
defere à música e ao futebol as preferências nacionais. Preferências, paixões?
Mais que isso: são uma e outra, por isso mesmo, as consolidações mais afetuosas
da alma deste país, miscigênico, inquieto e criativo. Até porque música e
futebol redefinem e colocam nosso temperamento nacional no seu devido lugar
sociológico, embora aqui ou acolá narizes retorcidos (de intelectuais metidos a
besta, que sempre os há...) tentem em vão apregoar o oposto, negando-lhe sua
grandeza e colocando o dedo sujo nas feridas dos preconceitos.
O pesquisador Paulo Luna – que já por dez anos presta
serviços acadêmicos ao nosso Dicionário
Cravo Albin da música popular brasileira, online (e em papel desde 2006) –
apresenta neste livro uma das mais bem cuidadas sínteses do relacionamento das
duas vertentes. Ambas são historicamente frutos de preconceitos e do pouco
apreço das elites pela miscigenação deste país. Elas – a música e o futebol –
são vistas por Paulo Luna com olhar fraterno, até piedoso, mas não menos
categórico, aprofundado e rigoroso. No que ele faz muitíssimo bem. E no que não
decepciona – muito antes pelo contrário – este seu velho orientador.
Paulo faz ambas as paixões percorrerem caminhos
conjuntos, convergentes e intensamente interligados. Desse modo, o leitor –
aficionado ou não por futebol ou música (existe, de fato, no Brasil quem não
seja ao menos por um deles?) – se encantará com as conexões entre eles. Que em
determinado momento passam a redefinir a argamassa da quintessência da
brasilidade.
Claro que música e futebol não têm a mesma idade. Nossa
MPB se maturou lentamente, forjada pela miscigenação desde o século XIX. Já o
futebol se instala no Brasil basicamente a partir das fraldas do século
posterior, o XX.
Mas ambos convergem, e se depuram, a partir de um inimigo
comum que tentou ir contra a essência do melhor deles e que sempre foi o
exercício da liberdade: o preconceito, especialmente o mais abominável entre
todos, o racial.
Paulo Luna investiga fragmentos preciosos, especialmente
aqueles escritos por Ruy Barbosa vociferando contra a “ignomínia” de a
primeira-dama do país, dona Nair de Teffé (esposa do marechal Hermes da
Fonseca), adentrar com o “Corta jaca”, de Chiquinha Gonzaga, nos salões do
Palácio do Catete.
Quase ao mesmo tempo, aliás, o célebre “conselheiro da
República” brame indignação pela possibilidade de ter que viajar no mesmo
“vapor” a Buenos Aires com a nossa delegação de futebol, que disputaria o
histórico “Primeiro Campeonato Sul-Americano de Seleções” (julho de 1916).
Em resposta ao ministro do Exterior Lauro Müller –
episódio citado por Lóris Baena em A
verdadeira história do futebol brasileiro, pp. 56-57 – irrompe Ruy: “Saiba
o Senhor que eu, minha família e meus auxiliares não viajamos com essa corja de
malandros. Futebol é sinônimo de vagabundos. E pode escolher, Senhor Ministro,
ou eles ou eu!”.
A identidade nacional, mesmo em suas origens ofendida por
preconceitos tolos e desparafusados, é uma construção alegórica, forjada a
partir do imaginário coletivo e sedimentar. Por isso, poucos países do mundo
ostentam tamanhas conexões entre sua música popular e seu futebol, origens da
nossa ascensão miscigênica, que define a criatividade, a ginga dos dribles num
estádio ou a manemolência do samba, quando não os desafios improvisados num
choro.
Aliás, outro belo fragmento recolhido por Luna nos
capítulos iniciais é o de Gilberto Freire, que ao escrever a introdução de O negro no futebol brasileiro, de Mário
Filho, testemunha: “A capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presentes de
tal forma no estilo de jogar futebol [...] que foram com esses resíduos que o
futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado futebol britânico, para tornar-se
a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é”.
Esse amontoado de qualidades de essência anímica que
compreende ligeireza, improvisação, manha, ginga, exacerbações individuais
(fugindo do coletivismo frio da Europa) – além de astúcia e malandragem – liga
os jogadores de futebol do Brasil aos executantes da MPB.
Este livro – em capítulos convenientes e muito originais
– destila toda a adesão da música popular ao seu irmão mais novo, o futebol,
década a década do século XX. Desde o primeiro registro histórico que remeteu
diretamente ao tema futebol, como a marcha “Foot-ball” (ainda com a grafia
inglesa), de Francisco de Oliveira Lima, gravada para a Odeon Talking Machine
pelo Grupo Lima Vieira e Cia., até ao primeiro hino para um clube carioca, o do
Fluminense Football Club, escrito por Oswaldo Cardoso de Menezes (pai da
pianista Carolina Cardoso de Menezes) e que também foi o maestro do célebre
Rancho Carnavalesco Kananga do Japão.
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Partitura de 1x0, Pixinguinha. |
Paulo perfila com maestria o desabrochar da adesão
factual da MPB ao futebol, ao começo dos anos 20, partindo do Campeonato
Sul-Americano de Futebol no Rio (campo do Fluminense).
E traz de volta pepitas como o one step de Eduardo Souto
“Sul-Americano”, com letra de uma misteriosa Mlle. Tell: “Filhos da Terra do
Sol / Lutemos até morrer / Que o Brasil, nosso país / Há de vencer”. A que logo
se seguiu o choro clássico de Pixinguinha “1 x 0” (composto logo depois da
vitória contra o Uruguai) e também o Tango “El rey de la pelota”, do citado
Oswaldo Cardoso de Menezes, em honra a Friedenreich, o primeiro craque
homenageado individualmente pela MPB.
Não há dúvida que – ao ler o livro e desfiando cada
década com prazer – revi meu desabrochar para o mundo e, eu tricolor doente,
pude sentir – um pouco a contragosto – a força do Flamengo como centro
preponderante de paixões. Eu próprio cantarolei sambas de Wilson Batista, como
aquele que ainda hoje guardo de cor: “Flamengo joga amanhã / Eu vou pra lá /
Vai haver mais um baile no Maracanã / O Favorito tem Ruben, Dequinha e Pavão /
Eu vou rezar pra São Jorge / Pro Mengo ser campeão...”. Depois, como não deixar
de aqui me referir ao encantador, especialmente para mim, samba do Chico Buarque
“Receita pra virar casaca de neném”, espertíssima resposta musical do tricolor
Chico a seu amigo rubro-negro Cyro Monteiro (o grande cantor) que enviara um
perigoso presente a sua primogênita recém-nascida (Silvia): uma camisa do
Flamengo.
Berço – todas essas evocações musicais perfiladas na
pesquisa de Paulo Luna – do mais aceso grito da paixão pelo futebol na “Terra
do samba e do futebol”. Aquele do Miguel Gustavo que projetava – e nem a hora
política de tantas dúvidas e desencontros conseguiu inutilizar – o grito de
esperança para a conquista do tricampeonato em 1970: “Oitenta milhões em ação /
Pra frente Brasil / Do meu coração”.
Selo definitivo, malgré
tout, da congregação das duas cristalinas paixões brasileiras: sua música e
seu futebol.
Sobre Paulo Luna:
Pesquisador. Professor. Historiador. Poeta. Licenciado em
História em 1987, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ.
(acessar o perfil completo na página do autor em http://www.pauloluna.net/perfil.php
)
Este blogue é demais!
ResponderExcluirVoltarei com tempo para explorar mais.
E é cloro, compartilhar...
Beijo querido.