Arte: Zuca Sardan |
Deixa Falar: o megafone do esporte é um espaço que estará aqui no Literatura na Arquibancada , no blog
do Juca (http://blogdojuca.uol.com.br/
)e na Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br)
quinzenalmente, sábado sim, sábado não, debatendo o esporte em geral e o
futebol em particular, dialogando com a História, Política, Música, Economia,
Literatura, Cinema, Teatro, Humor etc.
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Arte: Zuca Sardan |
O Megafone do esporte não
tem medo de bola dividida e não vai tirar o pé diante de fatos cotidianos
polêmicos, assim como não deixará de reverenciar a memória de ícones do esporte
brasileiro.
Mas tudo sempre pautado pelo bom humor e aberto ao contraditório,
pois Megafone que se preze não é dono da verdade: Deixa Falar.
O time do Deixa Falar: o megafone do
esporte tem treze participantes (confira no final o time de craques).
O
grupo é plural, com opiniões diferentes nos assuntos, nas ideias e também
nas idades de seus componentes, que variam dos 30 aos 80 anos.
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Arte: Zuca Sardan |
Nesta terceira edição (divida em dois artigos), a
recordação do escritor Flavio Carneiro sobre as lentes do histórico Canal 100, em crônica publicada
no livro Passe de Letra: futebol & literatura (Editora Rocco, RJ,
2009). O canal 100 era um cinejornal criado por Carlos Niemeyer e que entre 1959 e 1986 deixou amantes do futebol e do cinema fascinados.
No segundo artigo, em outro post, uma homenagem do mestre
Sebastião Witter a um dos maiores jogadores de futebol do planeta bola: Leônidas
da Silva.
Canal 100
Por Flavio Carneiro
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Arte: Zuca Sardan |
Quem gosta de futebol e já era grandinho nos anos 1980 há
de se lembrar do Canal 100. Quando as luzes da sala de cinema se apagavam, a
tela se enchia de bolas coloridas de variados tamanhos, explodindo como se fossem
fogos de artifício, e se ouvia em alto e bom som a musiquinha inesquecível:
pananan nanammm...
Nesse momento abriam-se, de par em par, as janelas do
sonho. E por elas atravessávamos de corpo e alma, entregues à grandiosidade das
imagens, à magia da câmera lenta, ao encanto de uma voz potente e familiar que
narrava cada lance da partida como se fosse uma decisão de Copa do Mundo.
Criado no final da década de 1950 por Carlos Niemeyer, o
Canal 100 surgia como um telejornal provocador. Não era como os pequenos
números da televisão: 2,3,5,6,7. Era o canal 100 ora essa, faça-me o favor!
Exibido antes das sessões de cinema, e renovado a cada
semana, o telejornal abordava assuntos do momento, mas seu forte mesmo eram as
matérias sobre futebol. Às vezes, o filme em si era fraquinho, e saíamos do
cinema com aquela sensação de tempo perdido. Quer dizer, quase perdido. Por
pior que fosse o filme, tínhamos assistido antes ao Canal 100 e isso já fazia
valer o ingresso.
Em artigo para o site Cinemascópio, Kleber Mendonça Filho
lembra bem o que era aquilo: “O futebol do Canal 100 tinha releituras de
jogadas impossíveis de serem vistas das arquibancadas ou na televisão, um
futebol em 35mm, gingado nos seus mínimos detalhes. Mulheres na platéia
geralmente amavam as imagens ampliadas de coxas musculosas dos atletas, os
jogadores escarravam elegantemente ansiosos em câmera lenta, a tensão de uma
barreira de homens preocupados com um chute potente, a bola rodopiando doida em
direção à rede.”
Era isso. E era mais do que isso. Quando assistia às
sessões do telejornal, ficava em mim a vaga intuição de que aquilo não era
apenas efeito da arte de um grupo de cinegrafistas de primeira linha, com
destaque para Francisco Torturra. Havia algo mais, que não se podia explicar
pela técnica do cinema. Quem sabe fosse alguma coisa no campo da intuição, do
espírito, talvez uma fagulha divina que se insinuava em algum lugar indecidível
entre a câmera, a arquibancada, o gramado e, se metendo em meio aos torcedores,
jogadores, juiz, bandeirinhas, gandulas, repórteres, encontrava o espaço exato
para o indizível, para o que não se pode pegar com a mão.
Minha intuição ganhou força quando um cinema do Rio, o
Estação Botafogo, resolveu apresentar sessões mais longas do telejornal. Não
seriam sessões que antecedessem as de um filme qualquer, nada disso, o Canal
100 deixaria de ser o jogo preliminar e passaria a ser ele mesmo o grande
clássico. Seriam sessões editadas, reunindo séries de apresentações de modo a
compor cada uma mais ou menos o tempo de duração de um longa-metragem.
Não me lembro bem de quando se deu o festival do Estação,
mas me lembro do que pensei quando soube da notícia: não vai dar certo.
O Canal 100 funcionava justamente porque era curto e
porque antecedia o longa-metragem. Colocado assim, no meio do palco, sob a luz
dos holofotes, o coitado corria o risco de dar vexame, de gaguejar na frente da
platéia, de esquecer a fala e ser vaiado ostensivamente por expectadores
raivosos. Confesso, fiquei com pena do Canal 100. Nutria por ele um carinho
fraternal e me doeu o coração saber que estaria exposto ao ridículo.
Claro que não poderia me furtar ao compromisso de
assistir. Afinal, era quase um irmão que estava lá, na berlinda. Escolhi uma
sessão que apresentava um histórico dos clássicos entre Flamengo e Botafogo.
Botafoguense de carteirinha, achei que não deveria ir
sozinho. Seria fundamental convidar um flamenguista, já que o programa, se
tinha a ver com futebol, exigia uma cerveja depois, acompanhada de apaixonado
embate. Convidei meu amigo Miguel Falbo, músico de primeira e jogador de
segunda, que apesar de tudo se dizia grande entendedor do esporte bretão.
Quando entramos na sala de cinema, o que vi foi
absolutamente insólito. Todos os lugares praticamente tomados (tivemos que
ficar espremidos num cantinho lá na frente) por alucinados torcedores, alguns
portando enormes bandeiras, a maioria com latas de cerveja ou refrigerante nas
mãos. Ao meu lado, um senhor estava sentado sobre uma almofada rubro-negra que
trouxera de casa e tinha um radinho de pilha colado no ouvido. A almofada até
dava para entender, fora um capricho, mas radinho de pilha?!
Como diria o velho Simão Bacamarte, saído da pena genial
de Machado de Assis: “insânia, insânia, e só insânia”.
Eram na maioria homens os espectadores, mas havia
mulheres também. E muitos usando as camisas dos times (não entendi a presença
de um moço branco, magro, pálido, com a camisa do Vasco – talvez tivesse errado
de sessão ou talvez fosse um poeta romântico em busca de emoções fortes). Boa
parte da platéia fumava desbragadamente, o que tornava ainda mais nebuloso o
cenário, de onde surgiriam dali a pouco as tão esperadas imagens na tela.
Aquilo não era uma sala de cinema, era uma mistura de bar e Maracanã em dia de
decisão.
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Paulo César Caju |
Começa a sessão. Bolinhas coloridas pipocando na tela,
música: pananan nanammm... Delírio da galera, bandeiras desfraldadas, uivos.
Insânia, insânia, e só insânia. Diante de tudo isso, desse clima de paixão
prestes a explodir, não era de se estranhar que, a cada cena passada na tela,
os torcedores reagissem como se estivessem assistindo ao jogo ao vivo!
Quando Paulo Cesar Caju deu um toque de classe, a turba
alvinegra gritou em coro: PC! PC! PC! Quando Zico bateu uma falta que passou
arrancando tinta do travessão, foi a vez de os flamenguistas soltarem um urro
vindo do fundo d’alma: uhhh!!! Um gol do Gerson quase fez o cinema vir abaixo.
Um gol, aliás, vindo de que lado fosse, era seguido de verdadeira apoteose.
Todos sabiam de cor e salteado o resultado dos jogos.
Para os que não se lembrassem, um cartaz na porta do cinema ainda ajudava,
anunciando os jogos (com placar e tudo) que seriam exibidos naquele horário. A
maioria já havia assistido aos lances – boa parte mais de uma vez até – , e, no entanto, todos torciam como se fora a
primeira vez.
Na condição de quem estava ali para analisar o fenômeno e
quem sabe utilizá-lo como matéria prima para um conto futuro, resistia o quanto
podia ao frenesi coletivo. Mas quando olhei pro lado e ouvi o Miguel mandando o
Mozer (do Flamengo) ir tomar naquele lugar, percebi que o caso estava perdido.
Não havia volta. Aquelas pessoas reunidas na sala de
cinema eram a nata da nata do manicômio, e o grande louco, na verdade, era eu.
Eu era o próprio Bacamarte, era o estrangeiro, o estranho no ninho e só havia
um jeito de salvar minha alma. E este jeito tomou forma quando surgiu a
ocasião: um zagueiro do Flamengo deu um carrinho por trás, uma entrada
criminosa no centroavante do Botafogo, e o juiz nem marcou falta. Então me
levantei, convicto, e do alto da minha doida sanidade gritei a plenos pulmões:
ladrão!
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Cine Estação Botafogo |
Pronto, estava decretada enfim minha entrada no país do
delírio. Um garoto passou vendendo cerveja numa caixa de isopor e isso, claro,
me pareceu perfeitamente normal, cheguei a perguntar onde é que ele estava que
não havia chegado antes.
Comprei duas latinhas, dei uma para meu amigo. Quando
houve um pequeno intervalo na projeção, brindamos como se nossas latinhas
fossem grandes canecas de vinho tinto nas mãos de valorosos guerreiros vikings.
E enquanto bebíamos olhávamos desconfiados um para o outro, na breve trégua que
antecedia o segundo tempo.
Notas do Deixa Falar: O megafone do esporte
Esta linha de passe entre o futebol e o samba é
antiga. A música tema do Canal 100, Na Cadência
do Samba, de autoria de Luiz Bandeira, foi lançada em 1956 sem grande
repercussão. Não tinha o futebol como tema, embora como todo bom samba
transpire futebol.
Alguns anos mais tarde, escolhido por Carlinhos Niemeyer
para prefixo e fundo musical do Canal 100, passou a ser um sucesso
estrondoso. O samba de Luiz Bandeira ficou definitivamente associado ao
futebol, sendo rebatizado pela
vida (por seu verso inicial) para Que
bonito é.
Na Cadência do
Samba (Que bonito é) de Luiz
Bandeira, um deleite para os admiradores do
futebol-arte e de um jornal da tela que
deixou saudades.
E este é um filão inesgotável. Não é o único grande
samba com este título. Em 1962, o gênio de Ataulfo Alves, em parceria com
Paulo Gesta, cria um outro samba, um outro Na Cadência
do Samba, gravado pelo próprio Ataulfo e Elizeth Cardoso. Um clássico da
MPB.
Com clara inspiração em “Fita Amarela”, de Noel Rosa, diz
o samba de Ataulfo Alves: Eu quero
morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba.
Abaixo, vale a pena ver e ouvir o samba de Ataulfo na voz
dos Novos Baianos:
A modernidade da cultura brasileira tem os pés fincados
no futebol e no samba.
Nota de Zuca Sardan sobre o Canal 100: A crônica do Flávio lembra filme do Fellini dos tempos do
preto-e-branco. Acho que a torcida retrospectiva fez um furo no devir da
História... os torcedores saíram do tempo, e o fato do resultado ser
conhecido não tem mais a menor importância. Eles entraram num
Presente-Contínuo, onde tudo o que foi vai ser agora.
Sobre Flavio Carneiro:
É botafoguense, além de escritor, roteirista e
professor de literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).www.flaviocarneiro.com.br.
*Deixa Falar: o megafone do esporte,
espaço de debates idealizado e editado por Raul Milliet Filho.
Sobre os autores do Megafone
do Esporte:
Ademir Gebara –
graduado em História e Educação Física, mestre em História pela USP, PH D em
História pela London School of Economics
and Political Science, ex-diretor e coordenador de Pós da FEF Unicamp,
professor visitante Universidade Federal da Grande Dourados.
Antonio Edmilson Rodrigues – é
América, livre docente em História, professor da UERJ e da PUC-RJ, pesquisador
de História do Rio de Janeiro, escritor de temas vinculados à história urbana,
coordenador do projeto Conversa de Botequim e autor de João do Rio, a cidade e
o poeta.
Bernardo Buarque – professor da Escola Superior de
Ciências Sociais (FGV) e pesquisador do CPDOC/FGV. `É editor da coleção Visão
de Campo (7 Letras). Em 2012, publicou o livro ABC de José Lins do Rego (Editora José Olympio).
José Paulo Pessoa – é botafoguense, ator, advogado, que
achava o Didi mais impressionante que o Garrincha (que foi o maior que já vi!).
Diretor, cantor e compositor do Bloco das Carmelitas, de Santa Teresa (RJ).
José Sebastião Witter – é
torcedor do São Paulo, professor emérito da USP e professor normalista.
Luiz Carlos Ribeiro é professor do Departamento de
História da UFPR e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade.
Marcelo W. Proni – economista, doutor em Educação
Física pela Unicamp, professor do Instituto de Economia da Unicamp, torcedor do
Botafogo de Ribeirão Preto.
Marcos Alvito – é
carioca de Botafogo e Flamengo até morrer. É um antropólogo que dá aula
de História na UFF desde o longínquo ano de 1984. Perna-de-pau
consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas
encara qualquer um no futebol de botão. Acaba de publicar A Rainha de
Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra (www.clubedeautores.com.br)
Ricardo Oliveira – é Vasco, jornalista, educador da
prefeitura do Rio de Janeiro e pesquisador da História do
futebol. Coordenador da pesquisa do livro Vida que Segue: João Saldanha e
as Copas de 1966 e 1970.
Wanderley Marchi Jr –
doutor em Educação Física e Sociologia do Esporte e professor da Universidade
Federal do Paraná/BRA e da West Virginia University/USA.
Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em História
Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como professor,
pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas sociais,
idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva para
crianças e jovens. Escreveu Mario Monicelli e o samba
carioca: um diálogo possível e irreverente, para o XXVI Simpósio Nacional da
Anpuh( Associação Nacional de Historia) em 2011 e que pode ser acessado aqui: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1308100822_ARQUIVO_MarioMonicellieosambacarioca.pdf.
Zuca Sardan (Carlos Felipe
Saldanha) – É torcedor do Vasco,
nasceu no Rio de Janeiro em 1933, mas vive em Hamburgo, na Alemanha. Estudou
arquitetura, mas fez diplomacia. Estudou desenho, mas fez letras. Hoje dedica-se
a desenhos, vinhetas, poesias e folhetins. Entre seus livros, estão: Ás de colete, poesias, desenhos e Osso
do Coração.
Confira os outros
artigos já publicados do Deixa Falar: o
megafone do esporte:
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