Não é incomum um
garoto brasileiro gostar e saber mais sobre os jogadores do campeonato inglês
do que sobre os nossos “brazucas”. Há até fã-clubes das principais equipes,
como Manchester, Liverpool e Chelsea espalhados por nossas terras. Para muitos,
a Liga dos Campeões é mais importante (e talvez até mais assistida) do que o
Campeonato Brasileiro.
Marcos Alvito,
professor de história e doutor em antropologia, apaixonado pelo futebol,
começou essa ligação com o futebol inglês muito tempo atrás quando os ídolos
dos gramados da Rainha eram outros.
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Hooligans |
Decidido a conhecer
e a entender melhor tudo isso, Alvito resolveu estudar para valer o futebol
inglês, especialmente, o fenômeno dos “hooligans”, torcedores organizados que
levaram medo e terror às arquibancadas.
Nada de teoria.
Marcos Alvito foi “beber direto da fonte” e o resultado pode ser encontrado e
lido no belo “A Rainha de Chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra” (Clube
dos Autores, 2013). Você, leitor, mesmo que não curta muito o futebol inglês,
vai gostar de conhecer os bastidores do berço do futebol mundial.
Abaixo, Literatura
na Arquibancada destaca o texto de apresentação e um trecho do capítulo 6, exatamente sobre os
“hooligans”. Mas há também outros trechos que podem ser “degustados” antes da
compra no link http://www.clubedeautores.com.br/book/139046--A_Rainha_de_Chuteiras
Apresentação ou de como a rainha calçou
chuteiras
Por Marcos Alvito
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Kevin Keegan |
Até hoje me lembro
dela. Era uma caixinha de papelão branco. Na tampa, eu havia recortado e colado
uma foto da seleção inglesa pisando o solo sagrado de Wembley. Lá dentro, meus
craques de galalite, o material com que eram feitos os times de botão naquela
época. Muita atenção para o número 7, o diabólico ponta-direita Kevin Keegan.
Eu devia ter uns doze anos e sonhava com o futebol inglês. Claro que gostava do
futebol brasileiro e também tinha outro time com a seleção de 70. Destaque para
Tostão, um botão amarelado e mais alto do que os outros, mas que gostava de
fazer gols de longe. Mas o futebol da terra da rainha não me saía da cabeça.
O tempo passou, os
botões ficaram guardados na caixinha. Eu me formei em História, tornei-me
professor universitário e doutor em Antropologia. Em 2005 comecei uma pesquisa
chamada "A paixão vigiada". Seu objetivo era comparar o policiamento
de torcedores no Brasil e... adivinhem? Na Inglaterra. Afinal os ingleses
tinham enfrentado e aparentemente resolvido o problema dos
"hooligans". Fiz dois anos de pesquisa no Brasil e em julho de 2007
fui para a Inglaterra passar um ano. A pesquisa me "obrigou" a
assistir jogos de todo o tipo, desde Liverpool x Arsenal até partidas da 8ª ou
9ª divisões. Assisti a jogos da Champions
League, da FA Cup e do Campeonato Escocês. Acompanhei até mesmo
as aventuras de um time de futebol feminino. Entrevistei policiais e
torcedores, fui com ambos a jogos no frio, na chuva e até na neve.
Este livro é um
relato daquele ano maravilhoso na forma de pequenas crônicas, sobre os
hooligans, sobre os fanzines, sobre os clubes semi-profissionais, sobre
projetos educacionais utilizando o futebol, sobre a atuação da polícia, as
grandes rivalidades e por aí vai. Enfim, é um livro sobre a cultura do futebol
inglês. Há também uma ou duas crônicas sobre outras paixões inglesas: as
apostas, o rugby, o cricket... Sempre em um enfoque antropológico e bem
humorado.
O
leitor também vai ganhar oito "faixas bônus" com uma breve
história do futebol inglês, das batalhas campais da Idade Média até a Premier
League. É por aqui que começamos o nosso A
Rainha de Chuteiras - um ano de futebol na Inglaterra.
Os hooligans e a grande crise do futebol inglês
(capítulo 6, pp. 40-42)
Por Marcos Alvito
No início da década de 1960, os jovens estavam
revolucionando a maneira de torcer nos estádios
britânicos. Passaram a se concentrar nos terraces
localizados atrás do gol, onde os ingressos eram mais baratos e a distância
da parte “respeitável” do público era maior.
“You will never walk
alone”, uma música tocada por um grupo local, Gerry and the Pacemakers, foi
transformada pelos torcedores do Liverpool F.C. em um verdadeiro hino do clube.
Cantavam, criavam gestos e roupas próprios, sobretudo para diferenciarem-se dos
adultos, mas também dos outros grupos de jovens. Esses estilos viajavam
rapidamente pela mídia, influenciando outros jovens por todo o país.
Os terrace ends são cada vez mais exclusivamente frequentados por
jovens, que começam a percebê-los como um
território particular, onde eles afirmavam sua identidade e seus valores. As
rivalidades futebolísticas eram apropriadas por esses jovens, resultando em
disputas e conflitos entre os grupos. Antes de mais nada, havia a agressão
verbal do tipo:
“Oxford boys we are here
Shag your women
Drink your beer”
(Chegaram os caras de Oxford
Transamos com suas mulheres
E bebemos sua cerveja)
Ou então:
“You're gonna have your fuckin' heads kicked in”
(Vocês vão ter suas cabeças chutadas)
“Oxford boys we are here
Shag your women
Drink your beer”
(Chegaram os caras de Oxford
Transamos com suas mulheres
E bebemos sua cerveja)
Ou então:
“You're gonna have your fuckin' heads kicked in”
(Vocês vão ter suas cabeças chutadas)
Além de ofensas, xingamentos e ameaça, as brigas
entre torcedores rivais, as invasões de
campo e o arremesso de objetos tornavam-se a cada dia mais frequentes. Já em
novembro de 1963, o Everton F.C. é o primeiro clube a colocar cercas atrás do
gol, chamadas pelos jornais de “hooligan barriers” (barreiras contra os
hooligans). Ao mesmo tempo, estava havendo uma diminuição do público que frequentava o estádio,
causada pelas transformações em curso na sociedade, mas também agravada por
esse aumento na violência.
Confrontos entre grupos de
jovens ocorriam também fora do futebol, e o público começa a ficar extremamente
sensível a este tipo de notícia, o que é amplamente explorado pela imprensa,
cada vez de forma mais sensacionalista. Os jornais do final da década de 1960
passaram a vender a idéia de que havia uma “guerra” em curso nos estádios, o
que sem dúvida contribuiu para afastar ainda mais o público bem-comportado e
para tornar o sábado à tarde ainda mais excitante para os jovens.
Começava assim um círculo
vicioso que logo iria resultar na criação de pequenos grupos de jovens
torcedores voltados exclusivamente para a violência e o combate entre si, as
chamadas “firms” ou “crews”. No início da década de 1970 os jornais populares
já publicavam rankings dos grupos de torcedores mais violentos. E as “firms”
começaram a ousar cada vez mais, buscando aumentar a sua “reputação”. A violência
no futebol começa a fazer parte do cardápio de atrações da televisão que começa
a focalizar os confrontos entre as torcidas, os palavrões e desafios obscenos
em um verdadeiro estímulo ao à agressividade exibicionista.
De início a “brincadeira” era tomar o end da torcida adversária, pois a
invasão do território inimigo era a suprema humilhação dos contrários. Mas a
polícia começa a prever estes incidentes e a prender os envolvidos. A minoria
de jovens interessados somente em brigar começa a planejar outros tipos de
ação, muitas vezes encontrando os grupos rivais fora do estádio. Ao mesmo
tempo, começam a ser tomadas medidas para prevenir a violência, mas que
transformam os estádios em verdadeiras prisões: são levantadas cercas em torno
de todo o campo e o estádio é dividido em pens
(“chiqueirinhos”) separados por grades.
De ambos os lados, as
torcidas estavam enjauladas. Esta divisão e segregação dos torcedores aumenta
ainda mais o clima e as manifestações de rivalidade e de agressão verbal. Os
torcedores visitantes passam a ser escoltados pela polícia desde o seu
desembarque dos trens e marcham como se fossem um exército inimigo até o local
do jogo. Cada vez mais a polícia usa cães e cavalos, é montada uma verdadeira
“operação de guerra” a cada sábado. Os torcedores passam a ser revistados à entrada,
mas os interessados em violência conseguem ludibriar a polícia com uma maligna
criatividade: afiam moedas até torná-las pontudas, enrolam jornais até transformá-los
em armas e por aí vai. A presença de enormes contingentes policiais o clima
belicoso tornam tudo aquilo ainda mais atrativo para os torcedores
patologicamente violentos, ao mesmo tempo em que a frequência aos estádios cai assustadoramente.
Sobre Marcos Alvito:
É carioca de Botafogo e Flamengo até morrer. É um
antropólogo que dá aula de História na UFF desde o longínquo ano de 1984.
Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo que nunca conseguiu jogar direito: o
futebol. Mas encara qualquer um no futebol de botão. Participa, aqui, no
Literatura na Arquibancada, do “Deixa Falar: o megafone do esporte”, criado e
editado por Raul Milliet Filho.
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