Quando um goleiro sofre o que na gíria do futebol
batizou-se de “frango”, pode-se colocar toda uma carreira profissional no lixo. Por
mais que eles, os goleiros personagens desta fatalidade, digam se tratar de um “acidente
de trabalho”, jamais serão vistos pelos torcedores ou pela mídia com os mesmos
olhos.
Entre tantos “frangos” espetaculares, existe um que
marcou definitivamente a carreira do goleiro Valdir Appel. E o lance inusitado não aconteceu com a camisa de um clube peladeiro qualquer, mas com a camisa do
titular do Vasco da Gama. Foi em 1969, quando Appel, após defender um chute
disparado por um atacante do Bangu, acabou, na reposição da bola,
arremessando-a para o próprio gol.
Muito mais do que simples fatalidade, Valdir Appel serve
como exemplo de superação para muitas pessoas (sejam elas ou não atletas
profissionais).
Enfrentou o drama de cabeça erguida. Seguiu a carreira
profissional, mas sabia que teria de sempre ser lembrado pelo frango histórico
e não pelo que realizou com perfeição debaixo das traves de vários clubes
brasileiros.
O bom humor pode ser definido por uma frase cunhada por
ele após as insistentes perguntas sobre a trágica jogada: “...Uma vez disse a um repórter
que o Pelé fez mil gols para ficar famoso e eu só fiz um”.
![]() |
O gol contra de Appel. |
A “tragédia” de Appel pode ser vista nas centenas de
entrevistas que já foi obrigado a dar para recontar seu drama pessoal. Na
internet, são várias as fontes (uma delas, essa que vale a pena ler http://globoesporte.globo.com/sc/noticia/2012/09/goleiro-famoso-por-gol-contra-no-maracana-da-forca-michel-alves.html),
e até mesmo um documentário já foi feito onde o goleiro reconta passo a passo o
que aconteceu naquele dia de 1969.
Outra entrevista interessante foi feita por um blog que o
Literatura na Arquibancada recomenda, o www.ultimadivisao.com.br (histórias a
contar, personagens a descobrir). O autor do bate-papo é Matheus Trunk. Na
conversa com o ex-goleiro, Trunk nos revela que uma das formas de Valdir Appel suportar
as eternas cobranças foi escrever, mas não escrever somente sobre o lance
fatídico, mas também sobre as histórias positivas e curiosas vividas dentro dos
gramados. Tem dois livros publicados: Na boca do gol e O goleiro acorrentado,
ambos da S&T Editores.
Veja a entrevista abaixo, e a reportagem completa
acessando: http://www.ultimadivisao.com.br/o-atleta-dedica-se-integralmente-ao-futebol-sao-dez-anos-em-busca-da-independencia-financeira/
![]() |
Na Boca do Gol: primeiro livro escrito por Valdir Appel |
Última Divisão: Seu primeiro
livro (Na Boca do Gol) contém diversas histórias que o senhor
testemunhou como jogador profissional. Qual é a principal diferença deste para
o segundo (O Goleiro Acorrentado)?
Valdir Appel: Basicamente, O Goleiro Acorrentado segue a mesma linha do primeiro.
São
crônicas bem humoradas sobre os bastidores do futebol, profissão que exerci
durante vinte anos.
Tenho um acervo de fotos, livros, revistas que ajudam na
pesquisa e na ilustração dos textos.
UD: Num dos melhores capítulos
do Na Boca do Gol, há uma história de eliminação que o
senhor viveu jogando pelo Alecrim. Parece que você tinha feito inclusive uma
promessa para conseguir a vaga. Como foi isso?
![]() |
Valdir Appel defendeu o Alecrim (RN) no Campeonato Potiguar de 1974. |
VA: O Alecrim foi um divisor de águas na minha carreira.
Após a cirurgia que custou minha saída do Vasco, joguei pelo CEUB de Brasília
ainda com os reflexos de uma má recuperação. Em Natal, recuperei meu joelho
totalmente nas águas potiguares. Para ficar bom ficar bom e levar o Alecrim às
finais do campeonato deixei até de beber cerveja.
UD: De todos os técnicos que o
senhor teve qual foi o melhor?
VA: Conheci vários técnicos competentes: gosto de citar
Elba de Pádua Lima (Tim), Zezé Moreira e Paulinho de Almeida. O primeiro um
senhor estrategista; o segundo um conhecedor profundo do futebol, educadíssimo;
Paulinho herdou do Zezé a disciplina, a rigidez e era extremamente imparcial
nas decisões.
UD: O senhor jogou numa época
em que o Campeonato Brasileiro era longo e com diversas equipes. Quais as
vantagens e desvantagens de jogar uma competição dessa maneira?
VA: No passado, as viagens longas e cansativas
contribuíam muito para o desgaste das equipes, somando-se a isso os campos
ruins e pequenos, que fortaleciam os esquemas das equipes do interior. Numa
época em que nenhum clube ia jogar fora com o argumento de que o empate era um
bom resultado.
![]() |
O ex-goleiro atuou por equipes menores do futebol brasileiro como o Bonsucesso do RJ. |
UD: O mercado editorial está
expandindo o espaço para obras literárias sobre futebol. Por quê poucos
ex-atletas resolvem lançam livros como o senhor?
VA: Mesmo não tendo lançado meus livros como uma
biografia – já que passeio pelo tema futebol, contando causos e histórias,
presenciadas à beira do gramado, dentro ou em torno dele. Meus livros falam de
momentos, lances curiosos, atletas folclóricos e todos aqueles que estão nos
bastidores de um time de futebol (médicos, roupeiros, massagistas, dirigentes,
torcedores, jornalistas, etc…) e jogos inesquecíveis; é impossível não deixar
nas entrelinhas o perfil do escritor. O atleta dedica-se integralmente ao
futebol e pouco tempo sobra para estudar. São praticamente dez anos em busca da
independência financeira. Irá sentir a falta dos estudos após o termino da
carreira. Por isso não poucos se sentem preparados para escrever suas memórias.
UD: O senhor jogou por diversas
equipes tidas como menores. Quais eram as principais dificuldades em atuar por
esses clubes?
VA: Salários baixos, atrasados, que dificultavam o dia a
dia do atleta e da família. Mesmo sabendo que o jogador no dia do jogo esquece
os problemas e procura dar o máximo (porque sabe que se não fizer o máximo a
tendência é piorar), leva dentro dele os problemas da semana, não resolvidos no
clube e na família, que refletem no seu desempenho.
![]() |
Valdir Appel pelo Goiânia, em 1978. |
UD: O senhor jogou pelo
Goiânia. Atualmente, o clube está disputando a segunda divisão estadual. Para o
senhor é muito triste ver o atual momento do time?
VA: Tenho o Goiânia no coração, praticamente encerrei a
minha carreira no Galo. Engraçado (é uma longa história) é que joguei
praticamente de graça por lá, dei meu passe de presente ao clube e depois dei
lucro ao ser vendido ao Atlético. Em contrapartida, após abandonar o futebol
fui convidado e fui treinador das equipes de juniores e juvenis por um período
de um ano. Descobri que não nascera para o cargo e me demiti ao final da
temporada, mesmo deixando bons resultados. Gostaria de vê-los de volta a elite.
Sempre que vou a Goiânia procuro pessoas envolvidas com o clube.
![]() |
Valdir Appel percorreu o Brasil jogando pelo Volta Redonda no Campeonato Brasileiro de 1976. |
UD: O senhor ficou conhecido
por um gol contra num jogo Vasco e Bangu pelo Campeonato Carioca de 1969. O
lance foi parecido com o lance do goleiro Michel Alves do Criciúma no jogo
contra o América de Minas. Esse episódio marcou a carreira do senhor?
VA: Marcou, mas não encerrou a minha carreira. O mesmo
acontecerá com o Michel, que tem o beneficio da imagem para mostrar que já
superou o episodio.
UD: Como ex-atleta experiente,
o que o senhor diria para o Michel?
VA: Que tenha muita paciência com os torcedores porque
irá contar este momento pelo resto da sua vida. Eu já conto há 43 anos.
UD: Na sua opinião, quais são
os grandes goleiros brasileiros na atualidade?
VA: Gosto muito do Rafael do Santos. Ele é jovem ainda, mas
revela uma personalidade marcante. É um atleta discreto, seguro e tem tudo para
se firmar entre os melhores da posição. Jefferson, Felipe, Victor e Diego
Cavalieri são bons goleiros. Mas podem render mais.
Literatura na Arquibancada agradece duplamente a Matheus
Trank, porque abaixo você pode ler a crônica onde o goleiro descreve o gol que
o marcaria para sempre, publicada no livro de Valdir Appel e transcrita em
partes por ele.
Trechos da crônica
publicada no livro Na Boca do Gol
Por Valdir Appel
A massa vascaína tomava conta praticamente de todo o
estádio, contrapondo-se a pequena torcida do Bangu.
O jogo foi equilibrado até os 19 minutos, quando o
goleiro Devito cometeu duas falhas consecutivas. Na primeira, atrapalhou-se num
cruzamento do nosso ponta direita Nado, largando a bola nos pés de Adilson, que
não perdoou: 1 a 0. Logo em seguida, cometeu um pênalti desnecessário. Pênalti
mal cobrado por Buglê, que conseguiu a proeza de mandar a bola quase nas
arquibancadas do Maracanã.
O jogo estava difícil, bem disputado, e eu fazendo boas
defesas e transmitindo confiança ao time. Aos 44 minutos da primeira etapa, o
centroavante adversário Dé dominou uma bola, de costas para a minha baliza,
entre a marca do pênalti e a risca da grande área; girou o corpo e desferiu um
sem-pulo espetacular no meu canto baixo, à direita.
Realizei um salto perfeito e encaixei firme a pelota!
Deu pra ouvir o comentário zangado do Dé:
“Filho da puta! Como é que pega uma bola dessas?!”
Um longo aplauso veio das arquibancadas.
Ergui-me do gramado, com a bola nas mãos. Observei a
saída da zaga e as colocações de Ebeval e Silvinho, pelo setor esquerdo da
minha área. O primeiro tempo estava para acabar, e decidi repor a bola nos pés
de Silvinho.
O braço fez a alavanca e a bola saiu forte de minhas
mãos. Perdi o equilíbrio: as pontas dos meus dedos tocaram de leve a bola, que
mudou sua trajetória, indo chocar-se com força no meio do poste esquerdo do meu
arco, morrendo no fundo das redes.
Apoiado em um dos joelhos, me senti impotente, com
vontade de sair correndo pra buscar a bola, fazer voltar o lance, apagá-lo da
minha mente!
Silêncio total no maior estádio do mundo...
Eu me senti profundamente envergonhado. Mesmo quando
Mário, do Bangu, e meus companheiros, foram me consolar.
Arnaldo César Coelho encerrou o primeiro tempo sem sequer
dar nova saída de bola.
Preparei-me para iniciar o que seria a maior travessia do
Maracanã. Estava no gol, à direita da tribuna de honra, e meu vestiário estava
do lado esquerdo.
Antes mesmo de chegar à linha da grande área, um batalhão
de repórteres, empunhando seus microfones, já me cerrava perguntando:
“O que é que houve?”
Minha resposta saiu rápida e definitiva, detendo outras
perguntas:
“Um acidente de trabalho”.
Continuei em frente. Aplausos tímidos da minha torcida
tentavam me consolar; os colegas faziam o mesmo.
Fiquei entorpecido. Minha cabeça não parava de pensar nas
consequências que poderiam advir daquele gol absurdo. Tinha que reagir ou
poderia ser crucificado.
Cheguei próximo ao banco de reservas. Pinga, Evaristo
Macedo, doutor Arnaldo Santiago e Carlos Alberto Parreira me aguardavam.
Apressaram minha descida para o vestiário.
“Espero que ninguém esteja pensando em me sacar por falta
de condições psicológicas”, disparei.
Pinga respondeu, tranquilo:
“Apenas desça, pra evitar maiores assédios”.
Nos vestiários, Parreira, que também era treinador de
goleiros, tomou uma providência importante: pediu para que eu fosse me
refrescar, trocasse a camisa, e o acompanhasse.
Enquanto os demais jogadores relaxam em suas cadeiras e
ouviam novas orientações do treinador, passei o intervalo inteiro batendo bola
com Parreira.
Desta forma, ele tentava impedir que eu parasse pra
pensar no desagradável episódio.
Como se isso fosse possível!
Na volta pro segundo tempo, Alcir me perguntou se eu
estava tranquilo quanto aparentava. Respondi que estava bem e que iríamos
ganhar o jogo.
Dentro do túnel, uma surpresa: o repórter volante de uma
emissora de rádio me perguntou:
“Valdir você vai voltar?”.
“Não! É sua mãe que vai pro gol, seu filho da puta!”.
Já no gramado, outro repórter me abordou. Colocou um fone
de ouvidos em mim e me botou em contato com o goleiro Barbosa, que estava nas
tribunas. Barbosa tentou me incentivar, dizendo que eu levantasse a cabeça, e
que com ele havia sido pior: uma falha havia custado ao Brasil o título da Copa
do Mundo de 1950.
Agradeci ao grande goleiro. Se bem que a última coisa em
que eu estava interessado naquele momento era com comparações. Minha preocupação
era fechar o gol e não permitir suspeitas sobre o meu equilíbrio emocional. Eu
sabia que um segundo tempo ruim poderia significar o fim da minha carreira.
Joguei bem, mas o placar permaneceu igual. Nos
vestiários, tive que dar mil entrevistas, repetindo sempre como a bola me
escapara das mãos ao arremessá-la. À noite eu estava parcialmente refeito.
Pesava um pouco o fato de o Vaso ter perdido um ponto – e por causa daquele
gol.
Sobre Valdir Appel, vale acessar o blog criado pelo ex-goleiro:
http://valdirappel.blogspot.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário