Arte: Zuca Sardan |
A partir de hoje (15/12), um espaço nobre dentro do conteúdo
do Literatura na Arquibancada. Deixa Falar: o megafone do esporte
surgiu da cabeça de um mestre, o historiador e apaixonado pelo esporte
(especialmente quando o tema for o seu querido Botafogo), Raul Milliet Filho.
Deixa Falar: o megafone do esporte é
um espaço que estará aqui no Literatura na Arquibancada , no blog
do Juca (http://blogdojuca.uol.com.br/
) e na Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br
) quinzenalmente, sábado sim,
sábado não, debatendo o esporte em geral e o futebol em particular, dialogando
com a História, Política, Música, Economia, Literatura, Cinema, Teatro, Humor
etc.
O Megafone do esporte não tem medo
de bola dividida e não vai tirar o pé diante de fatos cotidianos polêmicos,
como a privatização do Maracanã e os mandatos quase vitalícios de cartolas em seus
cargos.
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Arte: Zuca Sardan |
Mas tudo sempre pautado pelo bom humor e aberto ao
contraditório, pois Megafone que se preze não é dono da verdade: Deixa
Falar.
O time do Deixa Falar: o megafone do esporte
tem treze participantes (confira no final o time de craques). O grupo é plural,
com opiniões diferentes nos assuntos, nas
ideias e também nas idades de seus componentes, que variam dos 30 aos 80 anos.
Nesta primeira edição, um tributo a Togo Renan Soares,
Kanela, o maior técnico da história do basquete brasileiro, nos 20 anos de sua morte.
Kanela
por Raul Milliet
Filho.
Arte: Zuca Sardan |
Togo Renan
Soares, o Kanela, não foi apenas o maior técnico da História do basquete
brasileiro ou do basquete mundial como declarou esta semana Rubén Magnano. Foi
um homem à frente do seu tempo. Maior do que os números impressionantes de sua
ficha técnica.
Dirigindo a
seleção masculina, conquistou o bicampeonato mundial (1959 e 1963), a medalha
de bronze nas Olimpíadas de Roma em 1960, foi decacampeão carioca pelo
Flamengo, dentre vários outros títulos.
Kanela era eclético,
inquieto, disciplinado e explosivo.
Técnico de
futebol (Botafogo, Bangu, E.C.Brasil e Flamengo) e de remo, sua vida se
confunde com a História do esporte brasileiro na transição do amadorismo para o
profissionalismo.
Estrategista
brilhante, metódico, um líder à beira da quadra e do campo, respeitado por
atletas e dirigentes. Sem saber nadar, foi técnico de water polo, campeão pelo
Botafogo em 1944.
Paraibano,
nascido em 1906, muda-se para o Rio de Janeiro com 11 anos, ingressando no
Colégio Militar, instituição que lhe apresentou o mundo dos esportes.
Em 1921,
torna-se sócio do Botafogo, onde pela sua canela branca e fina, ganha o apelido
que o acompanhou para sempre.
“Eu comecei
minha vida esportiva jogando e torcendo para o Botafogo...eu entrei para
sócio-atleta, mas praticava futebol muito mal, era um mau atleta em questão de
habilidade. A minha vida era: de manhã,
o Botafogo de Regatas, e à tarde, o Botafogo de Futebol.” (Depoimento a Pedro
Zamora- em “A Era Kanela”)
Em 1925, Kanela
é convidado por Carlito Rocha, então diretor geral dos esportes do clube, para
dirigir o time juvenil de futebol do Botafogo, conquistando naquele mesmo ano,
aos 19 anos, o título de campeão carioca invicto.
Começava ali sua
carreira vitoriosa de técnico.
Poucos sabem, mas ele foi o responsável por revelar Domingos da Guia
para o futebol. No início da carreira, Domingos jogava no meio campo do
Bangu. O centro-médio da época. Kanela
convenceu-o a recuar e jogar como zagueiro de área. Domingos tornou-se o maior
zagueiro da História do futebol brasileiro, um dos grandes do futebol mundial.
No ano de 1984,
em uma longa conversa/entrevista que tivemos, puxei o assunto sobre Domingos da Guia. Kanela lembrou-se das
afirmações de Gilberto Freyre em seu prefácio ao livro clássico de Mário Filho,
“O negro no futebol brasileiro” O escritor fala do estilo “um tanto
álgido” do futebol de Domingos, quase sem floreios e jogadas de efeito. Para ele, e para o próprio Kanela, Domingos
da Guia tinha as qualidades da moderação, sobriedade, sem perder a
criatividade.
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Domingos da Guia |
Pude perceber que a definição de Gilberto Freyre para Domingos da Guia
caía como uma luva em Kanela: “Um apolíneo entre dionisíacos”.
Em outro texto, Gilberto Freyre lembra as características dos apolíneos,
relativas a Apolo, deus grego caracterizado pelo equilíbrio, disciplina e
comedimento. E dos dionisíacos, de Dionísio, deus grego dos ciclos vitais, do
entusiasmo, da alegria e da inspiração criadora. Dionísio ou Baco, para os romanos.
A decisão de Kanela de recuar Domingos da Guia para a zaga revela sua
ousadia e criatividade, próprias de um dionisíaco e abre caminho para
conhecermos outra história, ainda mais desconhecida.
Uma história que diz respeito à marcação da defesa no início dos anos
30. Só o espírito observador e inquieto de Kanela poderia explicar porque ele
foi um dos primeiros a estudar e aplicar no Brasil a segunda lei do impedimento
de 1925. Ele e Gentil Cardoso.
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Kanela, no Flamengo (1º a esquerda), o vice de futebol Francisco de Abreu, Esquerdinha, Walter Miraglia, presidente Dario de Melo Pinto e Juvenal. |
Esta mudança da lei do impedimento representou um divisor de águas no
futebol mundial, tornando este esporte mais interessante, rápido e alegre.
A partir daí, era imprescindível recuar mais um jogador e formar uma
linha de 3 na zaga. No Brasil poucos enxergavam isso.
Ao recuar Domingos da Guia, Kanela foi profético e certeiro, não só
revelando um grande craque, mas dando um passo decisivo para modernizar
taticamente o nosso futebol.
Ao tomar esta atitude, Kanela teve a frieza e o equilíbrio de um
apolíneo e a inspiração criadora de um dionisíaco. E ninguém melhor do que
Domingos da Guia para executar esta função até então desconhecida no futebol
brasileiro. Frio, conhecia como ninguém
a arte da colocação em campo, dono de passes precisos e antecipações quase
perfeitas.
Em 1925, os times europeus começaram a jogar no 1-3-2-2-3, o famoso WM,
inventado por Herbert Chapman, treinador do Arsenal.
No Brasil, continuamos por mais de 10 anos jogando no antiquado
1-2-3-5. Perdemos alguns títulos
importantes, como o da Copa do Mundo de 1938, por este atraso tático.
Kanela e Gentil Cardoso foram pioneiros e dirigiram o Bangu e o
Bonsucesso, respectivamente, no esquema tático inovador. Embora não tenham tido
força e prestígio para implantar esta nova filosofia de jogo no país, abriram e
pavimentaram o caminho para o técnico húngaro Dori Kurschner realizar esta e
outras mudanças a partir de sua passagem pelo Flamengo e Botafogo, entre 1937 e
1940.
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Kanela e o Botafogo campeão na excursão de 1935/1936. |
No futebol juvenil do Botafogo, Kanela foi campeão em vários anos. Em 1935-1936 dirigiu o time principal do
clube em uma excursão ao México e EUA, voltando invicto. Em 1942, ainda no
Botafogo, o técnico Kanela inicia a jornada do tricampeonato de futebol amador,
com um time que fez história. Atuaram craques como Paulo Tovar, Otávio de
Morais e Augusto Willemsen. Cabe lembrar a grande popularidade e importância do
futebol amador e de seus campeonatos no Rio de Janeiro nas décadas de 1930 e
1940.
Em 1933 assume o basquete do Botafogo, em paralelo às suas funções de
técnico do futebol juvenil. Foi tricampeão carioca de basquete (1935-1937),
campeão em 1939 e tetracampeão de 1942 a 1945.
Assim como nos outros esportes, Kanela afirmava que foi um bom técnico,
mas um péssimo jogador de basquete.
Togo fica no Botafogo de 1921 até 1947, quando após mais uma de uma
série de desavenças com Carlito Rocha, abandona o clube e vai para o
Flamengo.
Esta mudança será decisiva para a sua vida e para o basquete
brasileiro.
Enquanto no Botafogo, como era comum naqueles tempos de amadorismo (só
o futebol se profissionalizara em 1933), Kanela se dividia entre o futebol,
water polo e basquete; no Flamengo, a partir de 1950, passa a dedicar-se quase
que exclusivamente ao basquete.
Revolucionou o treinamento do basquete brasileiro, valorizando os
contra-ataques e introduzindo os arremessos da “zona-morta”. Decretou o fim da
“zona-morta”, fazendo seus atletas executarem esses arremessos à exaustão.
A preparação física, o condicionamento atlético e as inovações no campo
tático eram observados atentamente por Kanela, que foi precursor do treinamento
seriado no basquete nacional.
Foi um ídolo mesmo numa época em que a seleção brasileira era composta
por craques como Algodão, Wlamir Marques e Amaury Passos.
No Flamengo era comum o ginásio – que hoje leva seu nome – ficar lotado
para ver o time de Kanela treinar.
Respirava basquete o tempo todo. Era daquele tipo de técnico com estilo
professoral, que a toda hora parava o treino para explicar o jeito certo de
executar determinada jogada. Como no caso do jump, principalmente após
as mudanças das regras limitando a posse de bola até o “chute”.
Estreou como técnico da seleção brasileira de basquete em 1951. Dirigiu
a seleção em quinze competições: sete vezes campeão; três vezes vice; quatro
vezes terceiro lugar e uma vez sétimo lugar.
Em 1954, concentra a seleção brasileira de basquete durante três meses
na fase de preparação para o campeonato mundial no Rio de Janeiro, na
inauguração do Maracanãzinho. O Brasil conquista o vice-campeonato.
Ele considerava este momento como uma virada nos rumos desse
esporte.
“Em 1954 é que a coisa começou a mudar. Nós trouxemos oito cariocas,
oito paulistas, dois gaúchos para um treinamento sério. Neste treinamento
apareceram Wlamir e Amaury.” (Entrevista concedida ao Projeto Memória do
Esporte)
Amaury tinha apenas 19 anos e formou, ao lado de Wlamir, uma dupla de
ouro para o basquete.
O basquete
masculino brasileiro conquistou três medalhas de bronze em olimpíadas: em
Londres (1948); Roma (1960) e Tóquio (1964). Embora só tenha sido técnico em
Roma, o talento de Kanela esteve presente tanto em Tóquio (a base da seleção de
basquete tinha sido montada por ele no bicampeonato mundial de 1963) quanto em
Londres.
Se nos treinamentos era um estrategista, dentro de quadra ele se
transformava. Com um temperamento explosivo, envolvia-se constantemente em
brigas e confusões, principalmente com árbitros, dirigentes e torcedores
adversários.
Foi um personagem retratado pela pena privilegiada dos maiores
cronistas esportivos brasileiros.
Nelson Rodrigues, em O Tapa Cívico, exaltou a bofetada de Kanela
no árbitro uruguaio, durante o jogo histórico contra a União Soviética em pleno
Maracanãzinho, no Mundial de 1963.
Em 2006, o centenário de nascimento de Kanela quase não foi lembrado.
Agora, no dia 12 de dezembro: 20 anos do seu falecimento.
Deixa Falar: o megafone do esporte não poderia
deixar de reverenciar Togo Renan Soares.
Sobre
o autor:
Raul Milliet Filho – é botafoguense, mestre em
História Política pela UERJ, doutor em História Social pela USP. Como
professor, pesquisador e autor prioriza a cultura popular. Gestor de políticas
sociais, idealizou e coordenou o Recriança, projeto de democratização esportiva
para crianças e jovens. Escreveu Mario Monicelli e o samba
carioca: um diálogo possível e irreverente, para o XXVI Simpósio Nacional da Anpuh(
Associação Nacional de Historia) em 2011 e que pode ser acessado aqui http://www.snh2011.anpuh.org/ resources/anais/14/1308100822_ ARQUIVO_ MarioMonicellieosambacarioca. pdf.
Integrantes do Deixa Falar: o
megafone do esporte
Ademir Gebara – graduado em História e
Educação Física, mestre em História pela USP, PH D em História pela London School
of Economics and Political Science., ex-diretor e coordenador de Pós da FEF
Unicamp, professor visitante Universidade Federal da Grande Dourados.
Antonio Edmilson Rodrigues – é América, livre docente em
História, professor da PUC-RJ, pesquisador de História do Rio de Janeiro,
escritor de temas vinculados à história urbana, coordenador do projeto Conversa
de Botequim e autor de João do Rio, a cidade e o poeta.
Bernardo Buarque – professor da Escola Superior
de Ciências Sociais (FGV) e pesquisador do CPDOC/FGV. `É editor da coleção
Visão de Campo (7 Letras). Em 2012, publicou o livro ABC de José Lins do Rego
(Editora José Olympio).
Flavio Carneiro – é botafoguense, além
de escritor, roteirista e professor de literatura na UERJ. www.flaviocarneiro.com.br.
José Paulo Pessoa – é botafoguense, ator, advogado,
que achava o Didi mais impressionante que o Garrincha (que foi o maior que já
vi!). Diretor, cantor e compositor do Bloco das Carmelitas, de Santa Teresa
(RJ).
José Sebastião Witter – é torcedor do São Paulo,
professor emérito da USP e professor normalista.
Luiz Carlos Ribeiro, professor de História da
Universidade Federal do Paraná e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e
Sociedade.
Marcelo W. Proni – economista, doutor em Educação
Física pela Unicamp, professor do Instituto de Economia da Unicamp, torcedor do
Botafogo de Ribeirão Preto.
Marcos Alvito – é carioca de Botafogo e
Flamengo até morrer. É um antropólogo que dá aula de História na UFF
desde o longínquo ano de 1984. Perna-de-pau consagrado, estuda um jogo
que nunca conseguiu jogar direito: o futebol. Mas encara qualquer um no futebol
de botão.
Ricardo Oliveira – é Vasco, jornalista, educador
da prefeitura do Rio de Janeiro e pesquisador da História do
futebol. Coordenador da pesquisa do livro Vida que Segue: João Saldanha e
as Copas de 1966 e 1970.
Wanderley Marchi Jr – doutor em Educação Física e
Sociologia do Esporte e professor da Universidade Federal do Paraná/BRA e da
West Virginia University/USA.
Zuca Sardan (Carlos Felipe Saldanha) – Nasceu
no Rio de Janeiro em 1933, mas vive em Hamburgo. Estudou arquitetura, mas fez
diplomacia. Estudou desenho, mas fez letras. Hoje dedica-se a desenhos,
vinhetas, poesias e folhetins. Entre seus livros, estão: Ás de colete, poesias,
desenhos e Osso do Coração.
Deixa Falar: o megafone do esporte (apresentação)
http://www.literaturanaarquibancada.com/2012/12/deixa-falar-o-megafone-do-esporte.html
Deixa Falar: o megafone do esporte (apresentação)
Muito bom! Kanela merece esse respeito, é digno de ser lembrado e exaltado, de fato o m maior técnico do basquete brasileiro de todos os tempos..
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