Há dois anos Décio Pignatari
(02/12/2012) nos deixou. Filho de imigrantes italianos, poeta, ensaísta, tradutor,
contista, romancista, dramaturgo, advogado e professor, aos 85 anos de vida, ele
era um dos criadores do movimento da poesia
concreta. Décio Pignatari também
era um dos maiores especialistas no estudo e análise dos meios de comunicação
de massa, especialmente a televisão.
E poesia concreta dava rima
com o futebol? Décio Pignatari, boleiro que era durante quase 30 anos na várzea
paulistana, não só jogava como escrevia sobre o esporte. Mas a “aventura” durou
pouco. Durante entrevista do programa Roda Viva, da TV Cultura, Décio respondeu
à pergunta do jornalista esportivo Alberto Helena Jr sobre o que de fato
ocorreu:
Décio Pignatari: Foi
uma jogada engraçada! [risos] O Cláudio Abramo [(1923-1987) jornalista que foi
secretário de redação do Estado de S. Paulo em 1953 e que em 1963 passou a ser
chefe de reportagem e parte do conselho editorial da Folha de S.Paulo] que
estava lá e tal, soube que eu gostava muito de futebol - joguei 30 anos de
futebol na várzea -, me chamou e falou: “Eu quero alguém que venha de
fora e fale do futebol, mas faça uma ligação com outras coisas” e tal. E foi
realmente muito interessante. Durou exatamente 26 dias, era fevereiro [risos]
e, num dado momento, eu escrevi uma crônica onde eu imaginei o Pelé ensinando
alguns lances de futebol para umas moças suecas que queriam aprender futebol.
Então ali eu usava termos estritamente de descrição futebolística e aquilo,
claro, tinha todo um lado erótico, maroto, não é? “Não fazer cruzamentos pelo
alto à boca da pequena área”, essas coisas... E o negócio de... Usando todo o
jargão da narração futebolística com um sentido ambíguo e dúbio. Isso foi
escandaloso naquele tempo – que era impossível em 1965, né? -... “Matar a bola
no peito”, essas coisas desse tipo e criou-se um problema lá dentro e eu,
quando fui um dia entregar minha crônica, estava cortado, eu estava despedido.
Décio era fá
ardoroso do futebol e, em 1973, um de seus livros, “Contracomunicação” (Editora
Perspectiva) revela toda essa sua paixão pelo esporte. 'Contracomunicação' é uma coletânea de entrevistas, textos e ensaios divididos
em quatro entrevistas, seis ensaios sobre Comunicação, cinco sobre Literatura,
três textos - Tripé, onze crônicas sobre
futebol e mais cinco ensaios sobre Artes.
Décio
Pignatari também falou sobre o futebol em seu primeiro romance, “Panteros”, história
de uma juventude com cinema, futebol, sexo e poesia. Como o próprio Pignatari
afirmou: “Uma autobiografia não autorizada”.
Só mesmo
Pignatari para escrever uma crônica inspirada em Homero, o
maior poeta da Grécia Antiga, autor do poema épico Ilíada, 15.693 versos que narram os acontecimentos do último
ano da Guerra de Tróia, e é associada a
reflexões sobre a vida do homem e sua relação com os deuses. E numa
noite de quarta-feira
comum no futebol, Pignatari criou a sua “Guerra”...
500 a.C
Por Décio Pignatari
“Os
dois exércitos, na arrancada de um contra o outro, calcam já o mesmo terreno.
Os guerreiros defrontam-se, afrontam-se, baralham-se. Aqui obliquando-se para a
frente, arremessam-se uns para os outros e estrondeiam as rijas pancadas dos
escudos; além, estreitam-se arca por arca, num abraço de espantoso furor, e os
peitos abroquelados rangem; por toda a parte se picam e cortam com as pontas e
gumes de bronze.
Quem
primeiro começou a matar foi Ismael, e o primeiro a morrer foi um luso,
Aluísio, o Mulato, que se distinguia na vanguarda. Ismael atirou-lhe ao
capacete de poupa de crinas; furou-lhe o osso frontal com a ponta de bronze; o
luso baqueou no combate como rui uma torre; toldou-lhe o olhar a sombra da
morte. E o poderoso Mengálvio o tomou pelos pés e o ia arrastando debaixo dos
dardos, desejoso de lhe arrebatar as armas; mas frustou-se-lhe o intento,
porque o generoso Ditão, vendo-o curvado a puxar o cadáver e que o escudo lhe
deixava descoberto o flanco, meteu-lhe pelo vazio o pique de bronze e o matou.
Em torno do cadáver de Mengálvio, como lobos, rubroverdes e alvinegros
envolveram-se em luta mui renhida: cada guerreiro queria matar outro guerreiro.
Foi nesse lance que Lima atacou o famoso jovem Ivair. Não chegou o infeliz moço
a realizar as esperanças e amorosas vistas de seus pais, porque pouco tempo
viveu, morrendo trespassado pela hasta do animoso Lima. Ferido no peito, junto
do mamilo direito, a ponta do bronze saiu-lhe pela espádua.
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Pelé e Coutinho. |
Sobre
Lima correu Edilson, revestido de esplêndida couraça, e arremessou um acerado
virotão; não acertou em Lima o virote, mas de Coutinho furou a virilha: puxava
Coutinho o cadáver de Ivair quando se lhe meteu e subiu por entre as pernas o
dardo; escorregou-lhe das mãos o cadáver, e caíram lado a lado dois cadáveres.
Era Coutinho de Pelé grande amigo. Mui sentido e exasperado com a morte do
camarada, investiu Pelé com grande fúria a multidão de lusos; relampejava-lhe
sobre a fronte o capacete de bronze e na mão vigorosa refulgia a lança.
Rodopiaram
num instante os lusos, mas nem todos fugiram a tempo. A lança de Pelé apanhou
Vilela. Foi este a quem Pelé, enfurecido pela morte do amigo, matou, e a morte
do homem foi assim: a lança entrou por um lado da cabeça e saiu pelo outro.
Grande
surriada fizeram os de Vila Belmiro ao inimigo, e férvidas aclamações aos seus
heróis; retiraram do campo de batalha os mortos; depois correram para a frente
e ganharam muito mais terreno.
Mas
Aimoré estava a ver do alto de Pérgamo
tudo que se passava, e não lhe agradava nada o que via. Por isso, começou a
gritar aos rubroverdes:
–
Para a frente, lusitanos! Quem cavalos doma fugir não deve! Não cedais em
ofensiva aos peixeiros! Tampouco deles a pele é pedra ou ferro insensível aos
golpes do cortante bronze!
Então
o destino apoderou-se de Edílson: ficou com o tornozelo direito esmagado por
uma angulosa pedra que lhe arremessou Olavo; a bruta pedra empastou totalmente
os dois tendões e os dois ossos. Expirando, Edílson caiu de costas na poeira,
estendendo ainda as mãos para os companheiros. Saltou sobre ele o mesmo que o
tinha ferido e com a lança furou-lhe o ventre pelo umbigo; as tripas desatadas
saíram, desenrolaram-se, correram e alastraram pela terra; os olhos velaram-se
de sombra”.
Eis
como, provavelmente, Homero teria descrito a pugna Santos F.C. vs Portuguesa de Desportos, ferida
dentro dos muros do Pacaembu, na última quarta-feira . Tudo mais ou menos de
acordo com fragmentos do Livro IV, da Ilíada, na horrível tradução do, digamos,
bondoso padre M. Alves Correia, para a coleção “Clássicos Sá da Costa”, Lisboa,
1951.
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João Mendonça Falcão |
Décio
Pignatari também sabia ser duro em suas críticas, especialmente, com os
dirigentes do futebol. No texto abaixo, um dos onze publicados na coletânea
Contracomunicação, Décio Pignatari destila humor e crítica ao cartola paulista,
João Mendonça Falcão, presidente da Federação Paulista de Futebol. E tudo isso,
no início da Ditadura, onde falar sobre comunismo era praticamente inaceitável.
Os jogos amistosos contra a União Soviética a que se refere Pignatari,
ocorreram, respectivamente, nos dias 04 de julho (em Moscou, vitória brasileira
por 3 a 0) e 21 de novembro de 1965, no estádio do Maracanã (empate em 2 a 2).
Observação: os jogadores paulistas acabaram participando dos dois jogos.
Bolítica
Por Décio Pignatari
Há
dez anos atrás, no começo da primavera, atravessei a Mancha rumo à Inglaterra,
em companhia de um inglês e um israelense. Este lutara contra os nazistas, no
exército de sua majestade britânica, e perdera as duas pernas dando combate aos
árabes, nas lutas pela independência de seu país. Não era judeu – era israelense,
fazia questão de frisar, mostrando um certo orgulho e uma certa irritação na
necessidade que sentia de afirmar sua nova nacionalidade.
O
outro era um operário de volta das férias, velho e bem humorado militante do
Partido Comunista inglês. Com não menor orgulho, exibia sua carteira de
filiação, datada de 1935.
No
meio da travessia, a barcaça começou a jogar; o israelense não podia manter-se
de pé, no convés: penoso demais. Ajudamo-lo a descer para o bar, com as suas
três pernas mecânicas (uma sobressalente que carregava numa caixa) e voltamos
para cima, o inglês e eu, rumo a um estranho bate-papo, entre solavancos e
bacias desbeiçadas, lascadas, de ágate, espalhadas pelo chão, sinistramente
convidando a embrulho-de-estômago e a vômitos.
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Rui Barbosa |
O
velho súdito de Sua Majestade era uma bola. Passou o tempo todo contando piadas
mais do que irreverentes sobre o casal real e – a certa altura, a uma
observação minha, de cujo teor não me recordo – respondeu:
–
Não adianta: você dorme, você come, você ama...tudo é política!
Por
motivos óbvios, coloco “ama” onde ele, em inglês, colocou a palavra certa e
concreta – o desbocado. Retribuí o prazer da companhia e a lição cedendo-lhe os
meus direitos sobre a garrafa de uísque a baixo preço, na hora do desembarque.
A última visão que tive dele, já na Victória
Station, foi a de duas saliências nas nádegas rebolando no meio da
multidão: duas garrafas de um-quarto, uma em cada bolso traseiro da calça.
Sabemos
todos que o trivial da vida esportiva é condimentado por fofocas, futriques,
politiquices, politicagens e politicalhas – como dizia mestre Ruy Barbossa;
digo – o dr. Ruim Verbosa; melhor – o dr. Rui Barbo Ousa; isto é – o eminente
Rio Barbosa; vale dizer – o legalíssimo Rui Barbosa; enfim – o Águia de Haia e
Mucama.
Já
o sr. Medo da Onça Faisão: digo – o nobre deputado Emenda Onça Falação: enfim –
o dr. Mendonça Falcão prefere librar-se nas altas esferas do que ele julga ser
a política internacional. E acaba de comunicar ao dr. João Havelange,
presidente da CBD, que não cederá jogadores paulistas para o selecionado
nacional que deverá enfrentar o da União Soviética nos dias 4 de julho e 14 de
novembro próximos. Alega o referido mentor da FPF que não pode alterar a tabela
do campeonato paulista e, portanto, não pode encontrar datas que permitam a
cessão dos craques paulistas para aqueles compromissos.
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Mendonça Falcão (centro) |
Isto
significa que a seleção brasileira terá de se apresentar desfalcada naqueles
importantíssimos ensaios internacionais (o time da URSS pode ser um sério desafiante
às nossas tripretensões), simplesmente porque o dr. Falcão não encontra novas
datas para um XV de Novembro vs Esportiva, ou um Juventus vs Ferroviária – sem falar
nos grandes clássicos, que são transferidos, por acordo mútuo, assim que chova
um pouco mais!...
O
caipirismo mental – político e esportivo – conduz ao caiporismo. Se as coisas
começam desse jeito, nada mais dará sorte nem certo, em nosso futebol. Afinal
de contas, ninguém tem culpa se o dr. Mendonça já teve a sua oportunidade de
conduzir a nossa delegação numa excursão que ficou famosa pelos resultados
deprimentes.
Imaginem
agora se calha de o Brasil vir a ser derrotado pela URSS, na Inglaterra, em
1966 – já pensaram no bode que vai dar? Será um tal de IPMs para cima de
jogadores, preparadores, massagistas e roupeiros, um tal de futebol “altamente
comunizante”, um tal de “em defesa dos mais altos princípios morais e cristãos
da família brasileira” – e um tal de reeleições, quivoticontá.
O
tempo de fazer média com a bandeira nacional já passou. Pode ser um patriótimo.
Isto não nos obriga a ser patriotários: mandaremos brasas, brasões e brasis
toda vez que joões- mendonças-falcões se afoitarem a rasteiríssimas
bolitiquices.
Pode
ser que o meu anônimo amigo comunista inglês não tivesse razão de todo: mas
tinha senso de humor. O dr. João Mendonça Falcão não tem nem uma, nem outra
coisa.
Para
saber sobre a vida e obra de Décio Pignatari, acessar:
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