Nos 93 anos de Clarice Lispector comemorados neste 10 de
dezembro, Literatura na Arquibancada publica agora um belíssimo artigo escrito
por um desses tantos apaixonados por Clarice, o mestre em literatura, professor
Leocádio Araújo, especialista e pesquisador da obra da escritora. Recomendamos a leitura de seu blog (http://paginasefolhas.blogspot.com,
de onde selecionamos um material espetacular, três resenhas maravilhosas, aqui
reproduzidas em um único artigo, com a respectiva autorização do mestre autor
do texto).
Como ele mesmo afirma em seu
blog, "Miguel Leocádio Araújo é professor, às vezes pesquisador, às
vezes tradutor, sempre leitor. Sou Graduado em Letras, Especialista em
Investigação Literária e Mestre em Literatura Brasileira (todos pela UFC)".
Que bom seria se nossos grandes
autores da atualidade escrevessem mais sobre a maior paixão popular do
brasileiro: o futebol.
Quem poderia imaginar que a enigmática e introspectiva Clarice Lispector, uma das maiores autoras brasileiras do século 20 pudesse se interessar pelo tema futebol?
Quem poderia imaginar que a enigmática e introspectiva Clarice Lispector, uma das maiores autoras brasileiras do século 20 pudesse se interessar pelo tema futebol?
O que você lerá a seguir, gostando ou não da obra de
Clarice Lispector, é uma obra prima para quem um dia pretende escrever sobre o
tema futebol. Em homenagem ao Dia de Clarice, aproveite a leitura.
![]() |
Prof. Miguel Leocádio |
CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL:
A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA
(artigo postado em 29/05/2009)
"O futebol tem uma beleza própria de
movimentos que não precisa de comparações". Esta frase poderia
tranqüilamente vir de um abalizado admirador do futebol ou de qualquer torcedor
minimamente atento à dimensão de arte que se chegou a atribuir a um bom jogo
com bons jogadores, não viesse ela de Clarice Lispector. Aliás, a escritora
declarava repetidamente ser uma pessoa comum, como qualquer outra, uma
brasileira simples, mesmo tendo nascido na distante Ucrânia. E, como a
brasileira que afirmava ser e de fato o foi, ela não ficou incólume às seduções
deste esporte capaz de mobilizar uma nação, talvez muito mais do que outras
manifestações de massas, por mais que isso desagrade a muitos. Sobretudo em
tempo de Campeonato Brasileiro ou de Copa do Mundo. Imagine Clarice, diante da
TV, assistindo aos jogos do Brasil na última Copa, na Alemanha, ou das Copas
que ainda estão por vir...
Para alguns, isso é algo difícil de imaginar. É que
a representação da autora em circulação no imaginário de uma parcela
considerável de leitores, admiradores e devoradores da prosa clariceana é
freqüentemente associada a outras questões: a existência e suas contingências,
a condição humana sempre às voltas com seus mistérios, a condição feminina e
seus desvãos, a indefectível angústia, a morte, a solidão, os limites da
linguagem, entre outros temas considerados profundos e complexos.
Tal associação cristalizou uma imagem bastante
específica da escritora, como se ela não tivesse tido a possibilidade de uma
existência comum, cotidiana.
Daí talvez ser difícil vincular Clarice ao futebol,
pelo menos para alguns, o que, muito longe de considerarmos algo ruim, nos
serve de mote para pensar na possibilidade do inesperado ou na distante
experiência do outro.
João Cabral de Melo Neto, por exemplo, escreveu um
poema sobre a amiga ("Contam de Clarice Lispector"):
Um
dia, Clarice Lispector
intercambiava
com amigos
dez
mil anedotas de morte,
e
do que tem de sério e circo.
Nisso,
chegam outros amigos,
vindos
do último futebol,
comentando
o jogo, recontando-o,
refazendo-o,
de gol a gol.
Quando
o futebol esmorece,
abre
a boca um silêncio enorme
e
ouve-se a voz de Clarice:
Vamos
voltar a falar na morte?
O poema cabralino reafirma aquela imagem de Clarice
interessada em discutir e rir da “Indesejada das gentes”, como disse um dia
Manuel Bandeira; e o futebol entraria só de soslaio, como uma narrativa que
finda para dar lugar à busca dos sentidos da morte.
Porém, há elementos pouco explorados da biografia
de Clarice que a aproximam, como a muitos brasileiros, do tema do futebol, como
algo que se encrava no cotidiano.
Mas é vasculhando os escritos dela que se podem
encontrar indícios da possibilidade à qual me referi antes. E explico melhor
aos poucos.
Em entrevistas e crônicas, Clarice Lispector chegou
a se declarar absoluta torcedora do Botafogo. Ao entrevistar Marques Rebelo,
ela, para desviar-se de um assunto sobre o qual aparentemente não gostava de
falar – a sua alardeada densidade como ficcionista –, pergunta qual era o time
de Rebelo, que rapidamente se afirma como torcedor do América (“A única
paixão de minha vida”, segundo a sentença do entrevistado). Clarice revela
que é Botafogo e é logo chamada de “cartola” pelo escritor, no que ela
simplesmente cala, como se consentisse... Era o final da década de 1960; e a
entrevista era para a sessão "Diálogos possíveis com Clarice
Lispector", da revista Manchete. Ao que parece, dialogar sobre
futebol também era possível para ela, que era uma escritora considerada
difícil...
Em Entrevistas (Rocco, 2007),
publicação que reúne a maior parte das conversas aparecidas em De corpo
inteiro (1975), mais 19 inéditas em livro, Clarice encontra-se com
dois ícones do futebol brasileiro: Zagallo e João Saldanha.
Ao dialogar com o primeiro, a entrevistadora,
revelando uma franca admiração, inicia por afirmar: “Sendo você bicampeão
mundial e bicampeão carioca, Zagallo, eu, se dependesse de mim escolheria você
para técnico da seleção brasileira.” Zagallo mostra-lhe o braço com os
pêlos arrepiados de emoção. O gelo estava logo quebrado, para começo de
conversa. E ela nem imaginava o que Zagallo se tornaria para a Seleção
Brasileira décadas depois.
A entrevista, realizada num banco do jardim da sede
do Botafogo, foi animada a risos e cumplicidade, já que a escritora estava no
quartel-general do seu time do coração (selvagem?), às vezes sendo instada a
sair da condição de entrevistadora à de entrevistada, mesmo que escolhesse o
que responderia ou calaria. Outras vezes, ela interfere nas respostas de
Zagallo (com afirmações, entre parênteses, sobre si mesma), certamente
estimulada pelo papo franco e descontraído.
Algumas das perguntas ao atleta eram completamente
genéricas e difíceis de responder, tais como: “Zagallo, qual é a coisa mais
importante para você?”, “Qual é a coisa mais importante para você como
pessoa?” ou “O que é o amor, Zagallo?” Já outras dirigiam-se mais
especificamente ao esporte: “Zagallo, qual seria a melhor tática, o melhor
sistema para o selecionado brasileiro na próxima copa?” Entre brincadeiras
e assuntos mais sérios, como o futebol, o diálogo entre Clarice e Zagallo dá a
medida de como a escritora vibrava com o esporte.
Com João Saldanha a conversa chegou a detalhes
técnicos, já que o entrevistado da vez era treinador da seleção brasileira que
iria para a Copa de 1970, quando seríamos tricampeões. Clarice cita vários
jogadores, como Garrincha e Pelé. Uma de suas perguntas está bastante próxima
dos paradoxos encontráveis em muitas de suas obras, sendo bastante curiosa: “Por
que a bola não parece redonda para todos? Pois quando chega junto de certos
jogadores ela é extremamente quadrada.” Esta foi uma maneira clariceana de
evocar a pouca habilidade de certos jogadores à época. E a resposta de Saldanha
foi extremamente objetiva, o que satisfaz a entrevistadora: “Futebol é uma
arte e em arte prevalece o talento. Uns têm mais, outros menos. Eis a razão.”
Um outro aspecto era o registro do conhecido lado engraçado de João Saldanha.
Ao ser perguntado pela ficcionista se ele acreditava que se podia ganhar “no
grito”, ele responde com desenvoltura: “Se isto fosse possível, a Itália
seria imbatível. Ninguém grita mais alto que italiano. Afinal de contas, eles
cantam ópera.”
Como se não bastassem as entrevistas e toda a
mitologia que envolve o nome de Clarice Lispector (com ou sem futebol), numa
crônica de 1968, ela afirmou ser leitora do famoso e admirado cronista
esportivo Armando Nogueira pelo fato de ele "escrever bonito", mesmo
que não entendesse todo o jargão descritivo de uma partida. Esta crônica, por
sinal, chama-se “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada” e foi escrita
em resposta a um comentário de Nogueira em que dizia que trocaria uma vitória
de seu time por uma crônica de Clarice sobre o futebol... Pois bem, Clarice, em
tom sério, beirando a dramaticidade, escreve que não perdoaria, nem por
brincadeira, que se trocasse uma vitória do Botafogo por um romance inteiro
dela, sobre futebol... Virtudes de torcedor devotado? Ou melhor, de uma
torcedora devotada?
Apesar de sempre dizer que não entendia de futebol,
ela entregava-se com uma "ignorância apaixonada" ao seu time e ainda
tinha que contemporizar as divergências entre um filho botafoguense e outro
flamenguista, tarefa nada fácil para quem já optara pelo primeiro time. O mais
curioso é que Clarice relatou que, na verdade, gostava de assistir a jogos pela
TV e que só uma vez na vida foi ao estádio para ver, de "corpo presente",
uma partida de seu time. Segundo sua própria afirmação, isso a tornaria uma
"brasileira errada".
E para não dizer que Clarice Lispector não colocou
em ficção algo relacionado ao futebol, basta lembrar que no conto “À procura de
uma dignidade”, de Onde estivestes de noite (1974), a
personagem, Sra. Jorge B. Xavier, inicia sua via crucis perdida
nas galerias do Maracanã, em busca de uma conferência qualquer que não sabia ao
certo se ali se realizaria. Desorientada, a protagonista chega à área
"verdadeira" do estádio: o campo. Mas, na verdade, encontra um "espaço
oco de luz escancarada e mudez aberta, o estádio nu, desventrado, sem bola nem
futebol. Sobretudo sem multidão." A nudez daquele espaço é a própria
imagem do que há de mais triste no futebol, para os torcedores mais
filosóficos: um estádio vazio. E Clarice inesperadamente captou esta imagem,
mesmo só tendo ido uma única vez na vida a uma partida de futebol in
loco. Coisas de artista...
Fonte:
Sugestão de leitura para conhecer Clarice
Lispector:
(resenha da biografia escrita por Benjamin Moser)
Nenhum comentário:
Postar um comentário