Édson Arantes do Nascimento, Pelé, completa 75 anos de vida em 2015. A data
correta, 21 (conforme certidão de nascimento original) ou 23 (dia que Pelé
considera o oficial) de outubro, pouco importa.
O
que vale é o que esse menino nascido na pequena Três Corações, em Minas Gerais,
conquistou no mundo da bola. Um homem que conseguiu transformar o futebol em,
antes e depois de seu nascimento. E o futebol mundial nunca mais foi o mesmo.
No
texto abaixo, publicado no livro A Magia da Camisa 10 (Verus Editora, 2006 - Vladir
Lemos e André Ribeiro), compreendemos um pouco do fascínio que Pelé trouxe a
uma simples camisa de futebol. Parabéns Pelé!
Cidade
de Roma, 31 de Outubro de 2005
O rosto é inconfundível, a pele negra,
lisa, mascara a idade, empresta um ar jovial, dando a impressão de que o homem
ali tem sido capaz até mesmo de driblar o tempo. Em uma sala qualquer da
capital italiana, lentes e microfones estão apontados em sua direção.
Repórteres, fotógrafos, seguranças, todos o olham com um misto de curiosidade e
admiração. A voz grave, tão conhecida quanto o velho corte de cabelo, domina o
ambiente e faz pairar no ar uma frase marcante como suas antigas jogadas:
“Talvez não saibam quem é Cristo, porém de Pelé já ouviram falar”.
“Talvez não saibam quem é Cristo, porém de Pelé já ouviram falar”.
Três
Corações, 23 de Outubro de 1940
Pelé, o menino-deus do futebol, nasceu
Édson em 23 de outubro de 1940. Noite de lua cheia na pacata cidade mineira de
Três Corações, cenário breve na vida do garoto cuja família se mudou para o
interior paulista antes que ele completasse cinco anos de idade. Nessa época
era tratado simplesmente como Dico.
A intimidade com a bola à primeira vista
parecia hereditária. Dondinho, seu pai, era um exímio cabeceador, artilheiro
nato. Jogou por pequenos clubes da região sul do estado de Minas Gerais, mas a
grande chance, no Atlético Mineiro – clube grande da capital Belo Horizonte –,
não durou mais do que um jogo. Uma contusão grave no joelho fez o pai do
pequeno Édson abandonar a carreira de jogador profissional. Continuou a jogar
de forma amadora, pelo Vasco, da cidade de São Lourenço. Dico estava sempre por
lá e parece ter gravado no subconsciente o nome de apenas um jogador da equipe
em que o pai jogava: o goleiro Bilé. Em 1945, Dico e sua família mudaram-se
para a cidade de Bauru, e nas peladas disputadas nas ruas de terra da pequena
cidade do interior paulista era comum ouvir Édson gritar: “Defeeeende Bilé...”.
A “fome” por bola dos Arantes do Nascimento
começou cedo. Não contente em defender o infanto-juvenil do Canto do Rio, Bilé
– ou melhor, Pelé – criou em Bauru seu próprio time com apenas dez anos de
idade. Batizou-o de 7 de Setembro, coincidência ou não, a mesma data em que
anos mais tarde marcaria seu primeiro gol pelo Santos, time que o levaria à
fama.
O primeiro “contrato” surgiu ainda nessa
idade, para jogar pelo Ipiranguinha,
time de várzea na cidade de Bauru.
Os feitos do menino-deus não eram
exatamente milagres, embora parecessem. Aos 14 anos foi defender o Baquinho,
time para garotos de até 15 anos formado pelo Bauru Atlético Clube. No segundo
jogo o Baquinho venceu o São Paulo, clube da cidade, pelo placar de 21 a 0.
Dico – ou melhor, Pelé – marcou sete gols.
Com a bola no pé, o jogador franzino estava
longe de ser tímido. Corria, sendo sempre marcado de perto, e de repente
parava, inventava uma saída. Não era igual aos outros. Os olhos de Waldemar de
Brito, técnico do time e ex-jogador da seleção brasileira na Copa de 1934,
enxergaram tudo isso. Amigo de Dondinho e hábil o suficiente para convencer a
mãe, dona Celeste, Brito foi a ponte que uniu Pelé ao Santos Futebol Clube.
Em 1955 a Vila Belmiro, bairro onde estava
localizado o campo do esquadrão santista, já era lugar de respeito , casa de grandes craques. Zito, Del
Vechio, Jair Rosa Pinto, Pepe e Pagão, campeões paulistas no ano anterior,
poderiam intimidar qualquer um, menos aquele jovem no auge dos seus 15 anos.
Destaque entre os juvenis, ajudante entre
os profissionais e ainda sem ter encontrado o equilíbrio necessário entre a
habilidade e o respeito, acabou punido em um simples treino. Ao receber um
passe, levantou a cabeça e partiu em direção ao gol. Não contente com o
primeiro corte no zagueiro, deu outro, e Hélvio desequilibrou-se. Estava de bom
tamanho, dava para seguir em frente, mas um novo drible levou o marcador ao
chão. Poderia até ser perdoado, mas largou a bola e não conteve o riso. A
molecagem rendeu uma punição e um lugar no time.
Mas foi a contusão do ponta-de-lança
Vasconcelos, na final do Campeonato Paulista de 1956, que deu ao menino a vaga
de titular. A camisa que vestiria era, ainda, como outra qualquer. Pelé soube
aproveitar como ninguém a oportunidade que surgia em sua vida. No ano seguinte
tornou-se artilheiro absoluto do Campeonato Paulista ao marcar 17 gols, feito
que se repetiria pelos próximos 11 anos consecutivos.
Mil novecentos e cinqüenta e oito, ano de
Copa do Mundo. Feola, técnico da seleção brasileira, tinha razões de sobra para
convocar um garoto para disputar o Mundial da Suécia. Pelo segundo ano
consecutivo Pelé era o artilheiro do Campeonato Paulista, mas dessa vez com
nada menos do que 58 gols, marca jamais superada após quase meio século de
história. Ninguém mais duvidava de sua habilidade e muito menos de seu
oportunismo, mas só mesmo um milagre seria capaz de transformar um jovem com
apenas 17 anos em titular da seleção.
Não houve milagre, houve destino. E que
destino! Um ano antes, em 1957, no Maracanã, quando vestiu pela primeira vez a
camisa da seleção, o Brasil perdeu por 2 a 1 para a Argentina, mas Pelé deixou
o gramado como autor do único gol brasileiro.
No Mundial de 1958, na Suécia, Pelé era um
ilustre anônimo entre os craques do futebol mundial. Do banco de reservas,
começou vendo a seleção brasileira, nervosa e cuidadosa, vencer a Áustria por 3
a 0. No empate por 0 a 0 contra a Inglaterra, na segunda partida, Pelé
permaneceu na reserva – afinal, ser o camisa 10 da seleção naqueles dias não
passava de mero detalhe. O Brasil chegara a correr o risco de ficar fora do
Mundial porque nossos dirigentes mandaram a relação de jogadores convocados
para o torneio sem dar número aos atletas. Isso mesmo! A tarefa fora executada
por um dirigente uruguaio que estava na sede da Fifa. Sem conhecer os
jogadores, fizera do goleiro Gilmar o camisa 3; do lateral Nilton Santos, o
camisa 12; e do craque Didi, o camisa 6.
Para derrotar a ciência do futebol
soviético, o treinador brasileiro apostou nos dribles desconcertantes do camisa
11, Garrincha, e na divindade do garoto Pelé, que o destino quis vestir com a
camisa 10.Na vitória por 2 a 0 contra a União Soviética, os gols foram de Vavá
e o show de Garrincha. O primeiro gol do jovem camisa 10 em Copas do
Mundo seria marcado no jogo seguinte, contra o País de Gales. Não foi um gol
qualquer. Teve plasticidade, pelo atrevimento de se livrar da marcação dos
zagueiros dentro da área, com um giro rápido, mas, principalmente, teve
importância, porque com ele o Brasil conseguiu passar para a semifinal da Copa.
Diante da França, o brilho de Pelé superou
até mesmo o de outra figura monumental do futebol brasileiro e mundial: o mestre
Didi. O placar de 5 a 2 se repetiu na partida final diante dos anfitriões. Na
vitória de virada contra a Suécia, o talento e a coragem de um homem, quase
menino, deixaram boquiabertos torcedores e especialistas do mundo inteiro. Com
a frieza que só os craques têm, Pelé aplicou um calculado chapéu dentro da área
adversária. Os olhos do público só conseguiam enxergar uma camisa em campo... e
dela jamais se esqueceriam.
O primeiro gol contra o País de Gales, os
três contra a França e os outros dois marcados na decisão diante dos donos da
casa fizeram de Pelé o artilheiro da seleção brasileira, e uma vez mais com
números improváveis para um jogador de apenas 17 anos. Foram quatro jogos, seis
gols. No Mundial da Suécia o incógnito deus do futebol, veladamente, abençoou
aquele menino e sua camisa 10.
Quatro anos mais tarde, em 1962, na Copa do
Mundo do Chile, Pelé fez um dos gols da vitória por 2 a 0 contra o México, na
estreia brasileira. No jogo seguinte, contra a Tchecoslováquia, para a decepção
do torcedor brasileiro, machucou-se sozinho e deixou de brilhar na conquista do
bicampeonato mundial. Pelé arrastou-se em campo durante vários minutos da
partida. Naquela época as substituições ainda eram proibidas. O reconhecimento
de seu talento surgiu no gesto singelo do goleiro tcheco, Schroif, que, ao
perceber que o craque brasileiro não conseguia mais sequer andar, carregou-o
nos braços até o lado de fora das quatro linhas.
Era fato: a primazia de Pelé transformava-o
em alvo. Um alvo que os zagueiros portugueses não erraram em 1966, durante a
Copa do Mundo, na Inglaterra. A essa altura seus adversários sabiam que era
preferível abatê-lo a enfrentá-lo. Caçado pelos zagueiros dentro de campo, o
Brasil, sem o seu camisa 10, voltou para casa com a pior campanha em Mundiais
do pós-guerra.
Rapidamente, o mundo percebia o abismo
existente entre Pelé e os outros jogadores. Até esse momento não era a camisa
10 que fazia a diferença aos olhos do torcedor apaixonado pelo futebol. Os anos
que separaram a estreia em 1958 e a indignação de 1966 tinham revelado, acima
de tudo, um campeão.
Até 1966 Pelé já havia conquistado, com a
camisa 10 do Santos, seis Campeonatos Paulistas (1958, 1960, 1961, 1962, 1964 e
1965), cinco Campeonatos Brasileiros (de 1961 a 1965), duas Copas Libertadores
das Américas (1962 e 1963), dois Campeonatos Mundiais Interclubes (1962 e 1963),
além de quatro torneios Rio–São Paulo (1959, 1963, 1964 e 1966).
Ao lado de Dorval, Mengálvio, Coutinho,
Pepe e outros, Pelé transformou o time da Vila Belmiro em uma lenda que correu o
mundo como sinônimo de futebol supremo. Vestindo a consagrada e cobiçada camisa
10, chegou a disputar 121 jogos em um mesmo ano, numa época em que viajar 32
mil quilômetros e disputar uma dúzia de amistosos em menos de 30 dias não era
motivo de espanto. Surpreendente era rejeitar uma a uma as tentadoras propostas
que surgiam de todos os lados. Todas elas para ver a magia de uma camisa, o
talento de um craque.
Em 1961 Pelé pisou
no gramado do Maracanã para enfrentar o Fluminense em jogo válido pelo torneio
Rio–São Paulo. O Santos vencia por 2 a 1 quando Pelé dominou a bola pouco
depois do meio de campo. Seria preciosismo listar os seis jogadores que o
camisa 10 driblou até chutar na saída do goleiro Castilho. Dias depois, o
templo do futebol ganharia uma placa, onde foi escrito:
“Neste campo, no dia 5 de março de 1961,
Pelé marcou o tento mais bonito da história do Maracanã”
A placa permanece lá, a expressão gol de placa pode ser ouvida ainda hoje,
a qualquer hora, nos quatro cantos do país do futebol.
Com seus dribles curtos e velocidade
improvável, usou o oponente para praticar uma arte que beirava a magia. Chegou
a usar as pernas do marcador para fazer uma tabelinha maquiavélica e genial.
Certo dia ajeitou a bola para cobrar um pênalti. Os olhos da torcida miraram
atentos cada movimento. Um olhar solto em direção ao gol e Pelé dispara, mas
foi como se, por uma fração de segundo, o tempo tivesse parado; foi como se,
naquele momento, tivesse surgido um contratempo para retardar o grito da
torcida: para ele, uma simples “paradinha” com a intenção clara de tirar do
goleiro a já minguada chance de defesa.
Pelé é um mito que, em campo, não cresceu
somente refletido em instantes de rara habilidade. A figura do maior camisa 10
de todos os tempos ampliava-se em momentos emblemáticos, como no dia 19 de
novembro de 1969. Naquela noite 65 mil torcedores nas arquibancadas do Maracanã
e outras dezenas de milhares ligados no rádio e televisão aguardavam com
ansiedade mais um gol do rei do futebol. Não era um gol qualquer. Exatamente
aos 33 minutos do segundo tempo, o zagueiro René, do Vasco, cometeu pênalti, e
a possibilidade de o camisa 10 santista entrar definitivamente para a história
do futebol mundial materializou-se. Faltavam alguns segundos para Pelé marcar o
milésimo gol de sua carreira. Ao ajeitar a bola na marca da cal, estava rodeado
por uma pequena multidão. Com a maestria de sempre, usou o pé direito para
colocar a bola no canto esquerdo do goleiro Andrada. A frase que diria minutos
depois – “Pensem no Natal, pensem nas
criancinhas” – mostrava um homem preocupado em usar, de alguma forma, toda
a magnitude que o havia transformado em uma pessoa de dimensão única.
Vestindo uma
camisa do time adversário com o número 1000 estampado nas costas, Pelé pôs fim
a um dos momentos mais marcantes de sua carreira, mesmo sendo questionado pela
imprensa:
“Dediquei o gol às criancinhas abandonadas. Me chamaram de hipócrita
e alienado. O tempo mostrou quem estava certo"
Em 1995 a
prefeitura da cidade de Santos decidiu criar o Dia Pelé, homenagem à marca histórica alcançada naquele 19 de
novembro de 1969.
Imprevisível, como os movimentos e
caminhos que demonstrava descobrir em campo, era também invisível – mas
incontestável – o poder que Pelé revelava. Naquele mesmo ano de 1969, o Santos
embarcou para mais uma série de amistosos, dessa vez na África. A excursão
previa amistosos no Congo Kinshasa (ex-Zaire, atual República Democrática do
Congo) e no Congo Brazzaville (atual Congo). O único problema era que os
Congos, Kinshasa e Brazzaville, estavam em guerra. Mas para ver Pelé e sua
camisa branca com o 10 às costas valia a trégua forçada. O conflito, que se
arrastava havia meses, parou com a assinatura de um acordo entre os dois
governos. Soldados de Brazzaville foram autorizados a escoltar o barco que
levaria a equipe santista pelo rio Congo até a guarda das forças lideradas por
Kinshasa. O Santos fez cinco jogos em
apenas nove dias. Pelé marcou sete gols, dois deles na segunda partida, contra
uma seleção do Congo-Brazzaville. A equipe santista perdia por 2 a 0 e,
literalmente, apanhava em campo por causa da péssima arbitragem. Revoltado com
a situação, Pelé decidiu protestar. Pensou em abandonar o gramado, mas sabia
que essa decisão colocaria em risco sua vida e a de seus companheiros. O
protesto mais simples foi pedir para que todos os jogadores se sentassem no
meio do gramado. No mesmo instante, o árbitro da partida recebeu um bilhete
vindo não se sabe de onde. Após ler atentamente, constrangido, conseguiu
convencer o time santista a continuar o jogo. O Santos reage, Pelé marca os
dois gols da virada por 3 a 2. Nos vestiários, Pelé e toda a delegação santista
descobriram o que estava escrito no bilhete:
“O Santos, time de Pelé, está aqui para dar um
espetáculo. Eu estou aqui para assistir a esse espetáculo. Se você não apitar
segundo as regras do jogo, vai sair preso do estádio. Assinado:
Comandante Marien Ngobi, Chefe de Estado do Congo Brazzaville”
Derrotar o Santos de Pelé parecia missão
impossível, ainda mais para uma equipe africana que ainda não tinha seu futebol
desenvolvido como agora. Na seqüência da excursão, o impossível aconteceu.
Derrota por 3 a 2 para a seleção do Congo Kinshasa. O delírio tomou conta das
ruas de Kinshasa. Aos gritos eles repetiam: “Vencemos Pelé! Vencemos Pelé!”. Pelé parou a
guerra, e, por causa dessa vitória, o ditador Joseph Mobuto oficializou em seu
país a data, 23 de janeiro, como o Dia Nacional do Esporte.
O homem que deu início à mística da camisa
10 foi antes de tudo um criador. Depois de consagrado, sentou-se no banco de
reservas apenas uma vez em toda a sua carreira. Foi em 1970, no empate por 0 a
0 entre Brasil e Bulgária, no estádio do Morumbi, em São Paulo, em um jogo
preparatório para a Copa de 1970. Só entrou em campo no segundo tempo,
substituindo Tostão, e, para não desfazer a mística, vestia a 13. A 10, com
certeza, ficara nos vestiários.
Nesse mesmo ano, a disputa da Copa do
Mundo, no México, era aguardada com muita expectativa. As principais forças
mundiais traziam em suas escalações craques que, com certeza, fariam sombra a
Pelé, sem contar que todas as seleções campeãs do mundo em Copas anteriores
estavam lá. Só que o Brasil da Copa de 1970 não tinha apenas um Pelé em campo.
Na equipe brasileira, outros quatro jogadores – Jairzinho, Gérson, Tostão e
Rivelino – jogavam com a 10 em seus clubes no Brasil. Mas, em campo, apenas
Pelé teria o direito de usar a 10. Logo na partida de estreia, o Brasil goleou
a Tchecoslováquia por 4 a 1 e deixou a certeza de que o tricampeonato do mundo
estava próximo. Os dois jogos seguintes seriam as duas únicas partidas em que o
Brasil venceria seus adversários por um gol de diferença: primeiro, o duelo antológico
com a Inglaterra, vencido por 1 a 0; e, na seqüência, vitória contra a Romênia
por 3 a 2, com dois gols de Pelé.
Na quarta partida, Pelé enfrentou o amigo e
ex-companheiro de seleção, Didi. O brasileiro, bicampeão do mundo em 1958 e
1962, era, na Copa do México, o treinador do time peruano. Didi não foi
poupado, e o Brasil goleou por 4 a 2.
O duelo na semifinal entre Brasil e Uruguai
reunia duas seleções bicampeãs mundiais. Ao tomar a frente do placar, a seleção
uruguaia fez pairar sobre o estádio Azteca a sombra da derrota sofrida em pleno
estádio do Maracanã, na final da Copa de 1950. O Brasil venceria por 3 a 1 e
teria como destino a Cidade do México, palco da grande final. A criatividade de
Pelé não levou o Brasil ao gol, mas desenhou a cena mais marcante do duelo: um
drible que ele executou ao tomar a direção oposta à da bola, ludibriando o
goleiro Mazurkiewicz e arrebatando a torcida.
No dia 21 de junho, 107 mil torcedores
estavam no estádio Azteca, e a Taça Jules Rimet teria finalmente um dono. O
duelo entre Brasil e Itália revelaria ao mundo o primeiro país tricampeão
mundial de futebol. Pelé foi o autor do primeiro gol e, depois de viver a
apreensão de ver estampado no placar o empate, parece ter encontrado no papel
de coadjuvante a maneira mais eficaz de se transformar no primeiro jogador três
vezes campeão do mundo. Quando o alemão Rudi Glockner soprou o apito, as cenas
de histeria e devoção protagonizadas no gramado por uma torcida enlouquecida
transformaram-se na mais perfeita tradução da apoteose vivida pelo camisa 10
mais famoso de todos os tempos.
Pelé levou a sério o verso do português e
poeta Fernando Pessoa e provou que o jogador de futebol, assim como o poeta, é
um fingidor. Os que o acompanharam tentando se convencer e convencer ao mundo
de que um dia ele e o futebol deixariam de ser uma coisa só, viram-no em vários
atos. Um deles, escrito na pista de atletismo do Estádio do Morumbi depois de
enfrentar a Bulgária em julho de 1971: o braço direito erguido segurava na mão
uma coroa. Na noite de 2 de outubro de
1974, outro ato do mesmo roteiro: a Vila Belmiro, lotada, pulsava entre a
euforia e o lamento. Era o fim de um casamento de 18 anos, seis meses e 26
dias. Aos 22 minutos do primeiro tempo da partida contra a Ponte Preta, Pelé
ajoelha-se e abre os braços em forma de cruz. Faz um giro para ficar frente a
frente com os torcedores dos quatro lados do campo. De pé, com a camisa 10
enrolada na mão direita, dá uma volta olímpica acenando para a torcida. Horas
depois a súmula do jogo revelaria a importância de Pelé ao mundo: “A
partida começou às 21h11, e às 21h33 o atleta Édson Arantes do Nascimento fez
sua despedida do futebol”.
Em 1975, com
34 anos e uma proposta milionária, Pelé assinou contrato com o Cosmos de Nova
York. O desafio era ajudar os Estados Unidos, nação mais rica do mundo, a
popularizar o futebol. Dois anos após sua chegada, a média de público nos
estádios norte-americanos saltou de oito para 21 mil pessoas.
Disse adeus uma vez mais, em 1977, e ainda voltou a campo ao menos oito vezes. Naquela noite de 1º de outubro, o artista plástico pop norte-americano Andy Warhol, que ficou conhecido pela frase “todos têm o direito a 15 minutos de fama”, profetizou: “Pelé vai ser famoso por 15 séculos”.
Não precisou de tanto tempo assim. No dia
26 de abril de 1978, em Kaduna, distante 900 quilômetros de Lagos, capital da
Nigéria, Pelé era o convidado de honra para dar, apenas, o pontapé inicial da
partida amistosa entre o Fluminense e o Racca Rovers, da Nigéria. Segundos
antes de cumprir o acordo, ouviu o chefe da polícia local dizer em voz baixa,
ao pé do ouvido, que não teria como conter a ira do público caso não jogasse.
Sem estar preparado para aquela exigência, o incômodo maior não foi vestir a
camisa do Fluminense durante os 45 minutos iniciais do jogo: difícil mesmo foi
calçar a chuteira 37, dois números abaixo da que costumava utilizar.
Sob a mística da camisa 10, o menino
nascido em Três Corações dividiu-se em
dois. Édson Arantes do Nascimento foi o primeiro ministro de Estado negro do
Brasil, empresário, homem criticado e questionado. Já Pelé, que enfrentou times
de 66 países, cortejado por reis e rainhas, reconhecido nos quatro cantos do
mundo, segue intocável, um mito.
Em setembro de 2004 a camisa azul de mangas
curtas usada por ele no Mundial da Suécia esteve estendida em uma sala
elegante, dividindo espaço com quadros de pintores renomados e valiosíssimas
peças de porcelana e cristal. De repente, o martelo do leiloeiro chocou-se contra a mesa. A Christie’s, uma das
mais famosas casas de leilão do mundo, acabava de vender a camisa 10 com a qual
um dia o Rei do futebol começou a dominar o mundo, em 1958. O preço, 105 mil e 600
dólares, pode parecer muito, mas era apenas um terço dos 283 mil dólares que um
anônimo comprador pagara dois anos antes pela camisa 10 vestida por Pelé na
Copa do Mundo do México.
A essa altura você pode estar
intrigado, vendo em sua memória Pelé socando o ar com o místico número 10
pregado nas costas, e lembrando que foi assim porque, certo dia, durante a Copa
de 1958, nossos dirigentes simplesmente se esqueceram de enviar à Fifa a
numeração dos nossos atletas. Mas... e no Santos, quem lhe entregou o uniforme
do mesmo número?
Pois é, lembra-se daquele ponta-de-lança de
nome Vasconcelos, que se contundiu na partida decisiva do Campeonato Paulista
de 1956 deixando o caminho livre para o menino? Então, ele era camisa 10!!!
Por isso, já não há dúvida de que o
incógnito deus do futebol tem lá seus caprichos e fez questão de ver seu mais
nobre discípulo vestido assim.
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