Ele não era médico, mas doutor em Odontologia. Um
dentista que se tornou famoso no meio do futebol brasileiro quando ninguém dava
a menor importância para esse tema. Mário Hermes Trigo de Loureiro ou
simplesmente, Dr. Mário Trigo, foi uma das figuras mais divertidas e
importantes na história do futebol brasileiro. Bicampeão mundial com as
seleções brasileiras nas Copas de 58 e 62, doutor Trigo fez fama, dentro e fora
dos gramados, por ter se tornado um exímio contador de causos e histórias dos
bastidores do mundo da bola. Uma injustiça. Doutor Mário Trigo teve importância
fundamental na história da odontologia voltada para o segmento esportivo. Era odontólogo
especialista em cirurgia e traumatologia bucomaxilofaciais. Na preparação para
a conquista do nosso primeiro campeonato mundial, em 1958, na Suécia, Dr. Mário
Trigo examinou 33 jogadores, dos quais se viu obrigado a extrair 118 dentes.
É esse o personagem que você confere abaixo, em trechos
recuperados de um livro que o próprio Mário Trigo escreveu: “O Eterno Futebol”
(Thesaurus Editora, 2006). Não é à toa que ganhou o apelido de “Homem
sorriso”. Você vai entender a razão a seguir. Também confira o artigo do
advogado Anderson Olivieri, que o viu de perto, em Brasília, em seus últimos
anos de vida.
Doutor Mário Trigo teve vida longa. Morreu no dia 2 de
junho de 2008 aos 96 anos.
O Eterno Futebol
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Dr. Mário Trigo (a direita e sempre sorrindo), ao lado de Djalma Santos, o jornalista Luiz Mendes e Didi. |
Introdução
Por Mário Hermes
Trigo de Loureiro
“A pedido dos meus familiares e dos inúmeros amigos, aos
quais tenho feito, através dos tempos, em alegres reuniões, relatos dos
momentos históricos vividos quando engajado nas campanhas da Seleção Brasileira
de Futebol, e ocorridos na minha própria vida, decidi reunir neste livro tanto
aqueles fatos ligados ao futebol brasileiro quanto os relativos à origem deste
apaixonante esporte, cujas histórias, remotas às vezes, se confundem como parte
da minha própria história pessoal.
Claro que nem sempre os leitores encontrarão obediência à
cronologia dos fatos, mesmo porque, ainda que eles tenham ocorrido de forma
cronológica, as lembranças não.
Durante toda a minha vida, escrevi muitos artigos, desde
meu tempo de universitário até os dias de hoje, a respeito de tudo que
envolvesse o futebol, como também sobre outros assuntos.
Vários jornalistas esportivos escreveram sobre mim, quase
sempre, senão sempre, acerca da minha participação na Seleção Brasileira de
Futebol, quando acompanhava os maiores jogadores de todos os tempos.
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Dr. Mário Trigo, abraçando o rei da Suécia, logo após a conquista da Copa de 1958. |
Participei de muitas mesas redondas em vários canais de
televisão; já fui entrevistado pelo fabuloso Jô Soares, em julho de 1993, no
SBT; dei entrevistas ainda para a TV Cultura de São Paulo, para a TV Globo, em
várias oportunidades, tanto em São Paulo como em Brasília, cujas gravações hoje
compõem o acervo esportivo dessas emissoras.
Já quase ao final do livro transcrevo a palestra sobre
foco dentário com repercussão à distância, que proferi em várias oportunidades,
desde a Copa de 58, a convite de clubes de serviço (Lions, Rotary Clube e
outros), escolas, universidades etc, para que os leitores possam avaliar o
grande alcance da Odontologia nos esportes e concluir o quão necessária é a
saúde bucal para a sua própria boa forma física.
Transcrevo, também, por último, o capítulo do Diário
Secreto, do Dr. Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação brasileira das
Copas de 1958 e 1962, cujos times mostraram ao mundo a qualidade excepcional do
futebol brasileiro, no qual fala de minha pessoa. Nesse capítulo, ele relata,
com autenticidade, de forma respeitosa e carinhosa, um pouco da minha participação
na delegação brasileira.
Mas, no livro citado, ele se refere também carinhosamente
a todos os outros membros da referida delegação. Esse livro não foi vendido,
pois, segundo o próprio Dr. Paulo, tratava-se de um volume de lembranças que
não seria vendido ou anunciado, porque afinal era um diário e só poderia ser
confiado a quem tivesse afinidade com os protagonistas dos acontecimentos.
Além disso, coleciono, ainda, alguns artigos de jornais e
revistas (Placar, O Globo, Correio Braziliense, Jornal de Brasília, etc), que
falam do meu trabalho e de minha vida profissional e pessoal.
Com este livro, pretendo levar aos jovens informações
sobre algumas histórias remotas do nosso futebol, sobre fatos das Copas que
presenciei, ao longo de quase três décadas. E, assim, despertar seu interesse
pela vida saudável e esportiva, cujo exemplo é minha própria longevidade.
Assim, no decorrer deste livro, o leitor poderá se
distrair com fatos e exemplos muito interessantes”.
Prefácio
Por Juca Kfouri
“Eu era criança e ouvia falar do doutor Mário Trigo,
dentista da Seleção Brasileira que viria a ser bicampeã mundial, em 1958, na
Suécia, e em 1962, no Chile. “Dentista na seleção para quê?”, eu perguntava. A
resposta não variava: “É que o doutor Trigo é um piadista de primeira e diverte
os jogadores”.
Até o dia em que, já grandinho, descobri que, se de fato
ele distraia os jogadores, muito mais que isso ele trabalhava mesmo era dos
dentes dos atletas. Atletas que possuíam verdadeiras bombas-relógio em suas
bocas, todas prestes a explodir, focos infecciosos que, por exemplo, retardavam
a recuperação de quaisquer contusões, fossem musculares, fossem por choque.
Felizmente, o doutor Trigo sabia lidar com o pavor que a
figura do dentista despertava nos jogadores e até algumas de suas melhores
histórias se referem exatamente aos tratamentos que fazia. Como, por exemplo,
descobriu que Mané Garrincha tinha um problema no canino, o que serviu para a
conclusão sábia do genial ponta-direita: “É claro, né doutor? É por isso que
ando com uma dor de cão...”.
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Dr. Mário Trigo e Feola, ex-técnico da Seleção Brasileira. |
Daí ter Mário Trigo um espaço de destaque não só na
conquista do bicampeonato como, também, na história da organização do futebol
brasileiro. Ele foi médico, foi pai, foi animador de auditório, foi o palhaço
na melhor acepção do termo, alguém que não entrou em campo na Copa do Mundo,
mas ajudou a ganhá-la.
Eis que agora o doutor Trigo ataca de memorialista e dá
ao nosso futebol esse presente, para sempre, eterno como o próprio esporte.
Entre tantos episódios, chamo a atenção para um especialmente, quando se
desconfiou que a comida da Seleção seria envenenada no Chile, durante a Copa.
“O Eterno Futebol” é isso. Uma história singela de alguém
que chega aos 90 anos passando com leveza pela vida, verdadeiro artista que
tratou dos dentes de um grupo de heróis brasileiros para que eles pudessem
sorrir mais bonito e fazer gargalhar de felicidade uma nação inteira”.
Um dos capítulos do livro “O Eterno Futebol”:
Monsieur Jean Paul
Por Mário Trigo
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Dr. Mário Trigo (de agasalho), em missa junto com jogadores da Seleção Brasileira. |
“Numa outra ocasião, a Seleção, quando se encontrava em
campanha de amistosos pela Europa, precisou fazer uma conexão no Aeroporto de
Orly, em Paris. O Sr. Carlos Nascimento, supervisor da Seleção, preocupado com
os jogadores, temendo que ficassem com muita fome pelo tempo de espera que se
estenderia, determinou que todos almoçassem no restaurante do próprio aeroporto.
Para agilizar os pedidos, Gosling e eu fomos incumbidos
de ajudar aqueles que não conheciam a língua francesa, aliás, todos. Quando
chegou a vez de Garrincha, perguntei-lhe o que desejaria comer e comecei a
traduzir o cardápio para que ele escolhesse. No entanto, muito rempli de soi mème, desprezou minha
ajuda afirmando:
– Doutor, deixa que eu mesmo peço.
Ao que perguntei:
– Como é que você mesmo vai pedir, se você não sabe
francês?
E ele replicou:
– Deixa, doutor. É simples. Aponto com o dedo o prato que
eu quero.
Todos foram servidos, menos o Mané, que me chamou para
reclamar:
– Doutor, até agora o garçom não trouxe meu prato.
Pediu-me que verificasse a razão de não ter sido servido
ainda, pois os outros já estavam quase terminando. Perguntei, então, ao garçom
por que não haviam servido Garrincha, e ele, mostrando o menu, disse:
– Porque ele indicou que quer comer o dono do
restaurante, Monsieur Jean Paul”.
A homenagem do advogado e cruzeirense apaixonado por
futebol, Anderson Olivieri:
Mário Trigo,
eterno como o futebol
Por Anderson
Olivieri
“O futebol sempre me fascinou. E, por ter um pai que
também nunca escondeu a paixão pela arte dos onze contra onze, desde cedo ouvi
bastante sobre Pelé, Didi, Tostão, Nilton Santos, Dirceu Lopes e outras feras
que jamais vi jogar. Os olhos do meu velho brilhavam ao falar desses nomes. Na
minha ingenuidade pueril, de sete ou oito anos de idade, mitifiquei esses
gênios. Elevei-os ao rol de seres imortais, no sentido literal da palavra. Para
mim, tratavam-se de super-heróis que jamais nos deixariam. Sonhava conhecê-los
pessoalmente. Eu sabia que, caso acontecesse, ficaria atônito, sem reação.
Coisa de criança. E de adultos que têm a oportunidade do tête-à-tête com o ídolo.
Mas, por morar em Brasília, percebia que meu sonho dificilmente se
realizaria.
Certo dia, após um futebol da gurizada da minha quadra,
aqui mesmo na Capital Federal, aproximou-se de nós um senhor de passos curtos e
coluna encurvada. Carismático, conquistou a meninada, com seu sorriso fácil e
humor aguçado. Revelou que, de longe, nos observava jogar. Citou a qualidade
técnica de alguns, com boa dose de generosidade. Ensinou-nos com carinho que a
prática do futebol deveria sempre vir acompanhada dos estudos. Mas nada nos prendeu
mais a atenção àquele senhor do que esta apresentação: “tratei dos
dentes de Pelé, Garrincha e toda turma de 58 e 62. Sou um bicampeão do mundo”.
Confesso, meu coração acelerou. Pela primeira vez, eu
estava frente a frente com um personagem de 1958 e 1962. Não me lembro com
precisão, mas é provável que o suor que ainda escorria em razão do futebol há
pouco jogado tenha se tornado gélido. Nada mais falei, apenas escutei. Doutor
Mário Trigo teve de enfrentar um bombardeio de perguntas infantis. “O Pelé visita
a sua casa?”; “Você fala com o Pelé todos os dias?”; “Você tem
camisas do Pelé e do Garrincha?”. Pacientemente, respondeu cada
questionamento. Contou-nos várias histórias da época, quase sempre com o Pelé
envolvido. Naquela manhã, senti-me mais perto dos super-heróis.
Depois desse dia, Doutor Mário Trigo, dentista da Seleção
nas Copas de 1958, 1962 e 1966, diariamente nos prestigiava com sua presença à
beira do campo. Sempre sorridente, exalava ternura com seu semblante calmo e
pacificador. Era fã de um bom papo. Não havia preconceitos na escolha do
interlocutor. Crianças, zeladores, transeuntes anônimos, idosos, jornaleiros -
todos desfrutavam da agradável companhia desse bicampeão do mundo.
Alguns anos depois, deixei de ser vizinho de bloco do
Doutor Mário Trigo. Mudei-me para outro bairro de Brasília, perdendo por seis
anos o contato com esse ser humano magnífico. Em 2006, ao folhear o jornal, li
uma nota informando o lançamento do livro “Eterno Futebol”, de autoria dele.
Não hesitei em marcar presença. Era a chance de abraçá-lo em gratidão, por
todas as vezes que, com suas histórias, ele me aproximou dos super-heróis da
minha infância. O evento ocorreu no dia 27 de junho, no auditório do STJ. Foi
uma festa digna da grandeza do “Homem Sorriso”, apelido que ganhou quando
jovem.
Figuras ilustres do meio futebolístico, político e
jurídico prestigiaram o lançamento da obra. Atencioso e paciente, a estrela da
noite recebeu todos carinhosamente. Autografou os livros com grafia já quase
indecifrável. Emocionei-me quando seus olhos me fitaram. Aos 94 anos, com uma
lucidez plena, indagou-me: “Cadê os jovens colegas que formavam roda após o futebol para
conversarmos?”. Sem resposta, apenas
sorri e o cumprimentei. Era o meu último abraço no Homem Sorriso.
No dia 2 de junho de 2008, aos 96 anos, Doutor Mário
Trigo foi se encontrar com Garrincha, Didi, Zizinho e outras feras, num lugar
onde os super-heróis são, de fato, imortais”.
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