O Pontapé Inicial – Memória do Futebol Brasileiro é um
dos mais sérios estudos desse importante produto lúdico de nossa cultura: o
futebol. Nele, o autor analisa a trajetória do futebol brasileiro da fase
amadora à profissional, tendo como base das análises não apenas o futebol, mas
o contexto político-social desse período, a economia, a cultura e, sobretudo, a
luta dos jogadores para serem reconhecidos como categoria profissional. Um
momento do nosso futebol onde até se poderia falar de luta de classes.
O Pontapé Inicial pode ser classificado agora, depois de
muitos estudos realizados no meio acadêmico como um clássico da literatura
esportiva brasileira. A obra editada pela Ibrasa – Instituição Brasileira de
Difusão Cultural, em 1990, contribuiu de maneira decisiva para que outros
pesquisadores decidissem pelo estudo do tema futebol quebrando assim um
preconceito anterior no meio acadêmico.
O Pontapé Inicial
Apresentação
Por Waldenyr
Caldas
Escrever um trabalho acadêmico sobre o futebol brasileiro
é uma tarefa fácil e difícil ao mesmo tempo. Esta ambiguidade inevitável a
qualquer pesquisador que se propuser a realizar este empreendimento tem suas
explicações. Comecemos pelo aspecto mais fácil da questão. Não é à toa que o
Brasil é internacionalmente conhecido como o “país do futebol” por onde corre
samba nas veias. Realmente, samba, carnaval e futebol são, sem dúvida, os três
produtos mais importantes da nossa cultura popular. Da mesma forma, não é sem
motivo também, que se costuma afirmar o seguinte: ‘somos uma população formada
por 130.000.000 de técnicos em futebol’. Esta é uma frase que já se transformou
em provérbio popular. Ela quer dizer, noutros termos, que todos nós (uns mais
outros menos), de alguma forma, entendemos muito desse esporte. Até mesmo
aqueles que não acompanham o dia a dia do futebol, de vez em quando arriscam
dar seu palpite, suas impressões e analisar o desempenho do seu time ou da
nossa seleção.
A explicação para isso é muito simples. O futebol no
Brasil atingiu um nível de desenvolvimento tão grande que hoje é quase
impossível (principalmente entre a população masculina) encontrar pessoas que
desconheçam os fundamentos norteadores do chamado ‘esporte bretão’. Quase
sempre, nas aglomerações públicas, nos parques, nas igrejas, nos bares, nos
escritórios, nos pontos de ônibus, nas estações do Metrô e, obviamente nos
estádios e ginásios esportivos, entre tantos outros lugares, haverá sempre uma
ou mais pessoas discutindo e mencionando uma nova informação sobre o futebol
brasileiro ou internacional. Isto é bom, a nosso ver. Esta quase erudição beneficia
muito ao pesquisador. Digo isso por experiência própria. Foram inúmeras, muitas
mesmo, as informações precisas (algumas imprecisas e poucas inverídicas) que
recebemos de pessoas alheias ao universo acadêmico sobre o nosso futebol.
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Marcos Carneiro de Mendonça |
Em certos momentos, recebi verdadeiras aulas sobre a
memória desse esporte no Brasil. O sr. Marcos Carneiro de Mendonça, ‘goal
keeper’ da primeira seleção brasileira (1914) e falecido recentemente me deu,
durante cinco dias, entrevistas que foram verdadeiras aulas. Uma espécie assim
de ‘arqueologia’ do futebol brasileiro. Curiosamente, no entanto, nosso antigo ‘goal
keeper’ (apenas para manter a expressão usada em sua época) tornar-se-ia
historiador, mas nunca se interessou em escrever uma só linha sobre futebol. Em
compensação, seu apoio à nossa pesquisa foi pleno e irrestrito. Sua
privilegiada memória e a vasta documentação que possui foram de grande valia
para este trabalho. O mesmo posso dizer do sr. Ademir Marques de Menezes (o ‘Queixada’),
jogador dos anos 40 e 50, centroavante da seleção brasileira que disputou o
campeonato mundial de 1950 no Brasil, quando perdemos para o Uruguai, no
Maracanã, a 16 de julho desse ano. Poderíamos citar muitas outras pessoas que
nos deram informações e dicas verdadeiramente preciosas. Para isso, no entanto,
nos alongaríamos um pouco mais, o que não nos parece conveniente, pelo menos
nesse momento. Acreditamos que, com as colocações feitas até aqui, respondemos
a primeira questão colocada por nós: porque é fácil escrever um trabalho
acadêmico sobre o futebol brasileiro.
Passemos, agora, a outra questão: porque é difícil
realizar este mesmo trabalho. As dificuldades do pesquisador já começam pelo
próprio caráter polissêmico que o futebol adquiriu no Brasil. Ele não é só
lazer, paixão, brincadeira, coisa séria, instrumento político, catarse
coletiva, profissão, dor, alívio, derrota e vitória. É também um dos mais
importantes produtos culturais do Brasil e, seguramente, um dos menos
pesquisados por nossos cientistas sociais. Assim, dada esta polissemia do
futebol brasileiro e por ser um tema pouco explorado torna-se fácil e difícil,
ao mesmo tempo, delimitar a área de ação da pesquisa e a metodologia a ser
usada. Qualquer que seja a escolha, haverá sempre algo a se fazer, um pouco
mais a se acrescentar, um dado a mais que ficou para trás, um veio que poderia
ser melhor explorado e assim por diante. E não adianta sistematizar
meticulosamente a pesquisa (é obrigatório que se faça, claro) objetivando
suprir todas as questões, porque com isso conseguiremos apenas minimizá-las. A
magnitude do futebol brasileiro não permite perfeccionismos ao pesquisador. É
um tema quase virgem. Por esse motivo é que optamos por realizar uma longa
pesquisa sobre a memória do futebol brasileiro, da qual este ‘Pontapé Inicial’
é parte fundamental no conjunto do trabalho que receberá, depois de concluído,
o nome ‘História Sociológica do Futebol Brasileiro’.
Nossa opção pelo tema futebol teve algumas explicações
que, a partir de agora, gostaríamos de enumerá-las. A primeira, de certa forma,
já está implícita acima e diz respeito a um reduzido número de trabalhos
científicos sobre o tema. O conjunto da literatura futebolística do Brasil
mostra muito bem esta lacuna. Acreditando que poderíamos colaborar no sentido
de diminuir este vácuo é que nos decidimos pelo futebol. É curioso se observar,
por exemplo, as publicações sobre livros de História do Brasil e até mesmo
sobre a História da Cultura Brasileira. Eles não trazem menções nem discussões
sobre o futebol brasileiro. Ao mesmo tempo, é comum se encontrar capítulos
sobre a música popular brasileiro, teatro popular, carnaval, entre outros
produtos culturais. Com exceção do trabalho do jornalista Mário Filho que
escreveu O Negro no Futebol Brasileiro,
em 1964, quase nada se conhece antes de 1970. Mesmo assim, depois desse ano,
existem alguns ensaios tratando do assunto apenas como referência a alguma
coisa ou então só de passagem, de forma genérica, embora o futebol já seja um
produto cultural importante no nosso país, desde 1923.
A segunda explicação para optar pelo futebol tem a ver
com simpatia e empatia. Como já disse em meu livro, A Literatura da Cultura de Massa, os chamados produtos ‘menores’ da
cultura de massa sempre me atraíram. Além disso, até hoje, todas as vezes em
que pesquisei obtive bons resultados. Foi assim com a música sertaneja
(mestrado) e com a paraliteratura brasileira (doutoramento) concentrada nas
obras de Adelaide Carraro e Cassandra Rios. O futebol, se não chega a ser
considerado um produto ‘menor’, seguramente não possui o ‘status’ de tema ‘nobre’.
A terceira explicação é, na verdade, um desdobramento da
segunda. Da mesma forma que há um número considerável de pesquisadores
estudando os chamados produtos eruditos, da alta cultura (apenas para usar a
expressão de Theodor W. Adorno) e realizando trabalhos extremamente importantes,
há também estudiosos se dedicando aos produtos da cultura popular de massa
(para usar a expressão de Renato Ortiz). Eu me localizo nesse segundo grupo.
Entendo que meu trabalho, minha contribuição é mais útil aos produtos da nossa
cultura popular.
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Waldenyr Caldas |
A quarta e última explicação tem a ver com meus amigos
Gabriel Cohn, Gilberto Vasconcelos e Sérgio Miceli. Quando os procurei para
discutir a ideia de realizar um trabalho de pós-doutoramento sobre futebol, me
apoiaram plenamente. Me entusiasmaram. Daí para frente, foi só fazer a pesquisa
bibliográfica, as leituras, pegar a caneta, o papel e redigir o projeto de
pesquisa. Depois, pô-lo em andamento. Isto aconteceu em agosto de 1983. De lá
para cá, fiz inúmeras leituras da literatura futebolística internacional e
brasileira, visitei por diversas vezes o Museu dos Esportes de São Paulo, Museu
dos Esportes do Rio de Janeiro, MIS – Museu da Imagem e do Som de São Paulo,
MIS – Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, Casa das Retortas em São
Paulo, entre outros. Fui aos estádios assistir partidas de futebol, entrevistei
jornalistas esportivos como João Saldanha, Pedro Luís Paoliello, jogadores como
Ademir Marques de Menezes, Marcos Carneiro de Mendonça, Sócrates, Casagrande,
entre outros. Coletei material dos jornais do Rio e de São Paulo; de revistas e
almanaques. De posse desse material comecei a sistematizá-lo para
posteriormente analisá-lo, objetivando a redação do trabalho iniciada em agosto
de 1987 e concluída em junho de 1988. Durante esse período, o material novo que
aparecia era incorporado ao trabalho quando necessário. Eu aprendi com meus
mestres Gabriel Cohn e Ruy Coelho que, para entendermos profundamente um
assunto, o melhor caminho é iniciarmos a trajetória do seu estudo pela gênese
do tema a que nos propusemos pesquisar. Foi isto, precisamente, o que eu fiz
com o futebol brasileiro, cuja parte fundamental estou apresentando como tese
de livre-docência.
Vejamos agora a questão metodológica do trabalho.
Algumas informações empíricas constantes deste estudo são
memoráveis na história do futebol brasileiro. Citá-las tornou-se, a meu ver,
duplamente imprescindível. Primeiramente, para que pudéssemos melhor entender a
trajetória desse esporte no Brasil e, em segundo lugar, porque o percurso
sinuoso do nosso futebol ficaria mais fácil de entendê-lo situando em certos
momentos, no tempo e no espaço, acontecimentos que definitivamente permanecerão
na história desse esporte no Brasil. Não bastassem esses dois aspectos, até por
uma questão metodológica, como sabemos, a informação e o dado empírico, quando
menos corroboram a análise científica dando ao pesquisador a consciência e a
segurança de que deve prosseguir, ou não, em suas análises. Essa é, a meu ver,
uma forma consciente e criteriosa de resolver e de buscar a verdade científica.
E ainda uma forma de solucionar o problema construído quando se estabelecem os
critérios metodológicos da pesquisa científica. Mesmo o trabalho científico
essencialmente teórico não pode, a meu ver, prescindir de todo, da informação
dos dados empíricos.
Nesse aspecto, considero de fundamental importância o
trabalho do pensador austríaco Karl Popper, intitulado A Lógica da Pesquisa Científica, publicado pela Editora Cultrix, em
1988. Nessa obra, o autor procura mostrar o que o mais importante no universo
da ciência não é reduzir o trabalho apenas à produção de teorias científicas,
nem sempre pertinentes a seu tempo, à sua época e, algumas vezes, útil apenas à
comunidade científica. A ‘atitude crítica’, diz Popper, é tão científica como a
própria teoria científica. A hipótese de trabalho tornar-se-á verdade
científica se assim a pesquisa empírica comprovar. Ela será testada por essas
experiências empíricas e, como tal, poderá ou não, ser refutada. Nesse último
caso, a hipótese seria falsa. Mas, nem isso invalidaria o trabalho, diz Popper.
O pesquisador deveria prosseguir em sua pesquisa e ter sensibilidade e sensatez
para refutar cientificamente (de posse dos dados empíricos) a própria hipótese
que construiu. Eventualmente, diz ele, já contando com a sensibilidade do
pesquisador, poder-se-ia mudar até a estratégia metodológica do trabalho. É
nesse momento, na fronteira do científico e do não científico, que o pensador
austríaco exclui o marxismo e a psicanálise do campo da ciência. Isto porque,
para ele ‘não há uma experiência que possa refutá-las’.
Quero agora finalizar, acrescentando que O Pontapé Inicial objetiva dar uma visão
minuciosa do que foi o futebol brasileiro desde as suas origens em 1894; quando
Charles Miller chega ao Brasil com uma bola de futebol, até o ano de 1933,
quando se oficializa o profissionalismo. Pela minha própria formação acadêmica,
procurei analisar esse período sob a óptica da Sociologia, considerando os aspectos
políticos, sociais, econômicos e culturais que tanto movimentaram a sociedade
brasileira da chamada Velha República. Uma época que, segundo os historiadores
estende-se de 1889, com o presidente Manuel Deodoro da Fonseca, até 1937 com o
governo Vargas. Seria prejudicial a este estudo realizá-lo sem conhecer a
História do Brasil nesse período. Fomos ler e pesquisá-la. Autores como Edgard
Carone, Leôncio Basbaum, Caio Prado Júnior, Carlos Guilherme Mota e Boris Fausto
foram de grande valia para nós. Já no tocante ao futebol propriamente, o
trabalho de pesquisa foi muito sobre o material empírico da época,
principalmente os matutinos cariocas microfilmados na Biblioteca Nacional,
jornais de São Paulo e, excepcionalmente, alguns poucos livros que tratam do
tema.
Sobre Waldenyr Caldas:
Professor de Sociologia da Cultura Brasileira na ECA –
Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor de vários livros, entre eles Acorde na Aurora, A Literatura da Cultura de
Massa, Cultura de Massa e Política de Comunicações, Uma Utopia do Gosto.
Publicou, ainda, diversos ensaios em revistas especializadas. Realizou
pos-doutoramento em Sociologia da Cultura na Università Degli Studi Romanzi “La
Sapienza”, em Roma.
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