Só mesmo um escritor de enorme talento como Renato Pompeu
conseguiria deixar para literatura esportiva um livro onde a voz do narrador é
o principal objeto do espetáculo chamado futebol. Sim, a bola ganha voz na
trama de Renato Pompeu no espetacular “Memórias de uma bola de futebol”
(Editora Escrituras, 2002). Uma personagem que vai longe na história,
retornando às suas origens no planeta Terra. Um livro obrigatório, sobretudo
prazeroso para os amantes da literatura esportiva.
Prefácio
Por Claudio Julio Tognolli (jornalista e escritor)
“Renato Pompeu, nascido em Campinas em 1941, é o Hunter S. Thompson da brasilidade. A feição mais insinuante de seus 23 livros é enxergar o que ninguém enxerga: o Brasil das entrelinhas como Thompson fez em Fear and loathing in Las Vegas, aqui lançado em filme, Medo e Delírio.
Publicou livros apreciados por ninguém menos que Chico
Buarque, Ferreira Gullar, Sônia Braga, Maria Adelaide Amaral, Luiz Gonzaga
Belluzo, Juca Kfouri e José Guilherme Merquior. Dos dois últimos, vale lembrar,
Kfouri o chama de “o maior teórico de futebol do planeta”; Merquior, o finado e
refinado intelectual brasileiro, viu Pompeu desmascará-lo: apontou-lhe a
colagem de ideias de carnavalização anteriormente teorizadas por Volishinov, ou
Mikhail Bakthin.
Pompeu brindou-nos com As/os Brasilíadas, editada pelo seu Botequim de Ideias. Tratava-se,
dizia o autor, de prosa rimada. A ela conferiu o seguinte subtítulo
messiânico-gongórico: “E a vera epopeia-cordel-forró-samba-enredo, toada-rap,
sobre a eterna guerra entre os espíritos do Bem e do Mal, com as melhores
partes sendo umas citações, com artes, do popularium musical brasileiro
moderno, ora já eterno”.
Eis que Pompeu nos apresenta mais um extrato genial. Este seu livro-bola, como gosta de dizer, traz apontamentos inéditos aos estudiosos do futebol e das ciências sociais. As memórias da bola de futebol, cabe dizer, merecem um resgate. Oscar Wilde dizia em 1901 que Aristóteles cometera um erro em seu clássico adágio “a arte imita a vida”. Para Wilde, o negócio era bem o contrário: a vida imita a arte. “Onde estavam as névoas de Londres antes que Turner as pintasse? Não existiam. Ele teve de pintá-las para que as pessoas passassem a vê-las”. Limitados, assim, pelas paredes de nossas mentes burocráticas, deixamos de ver as feições mais insinuantes da vida. E, portanto, cabe aos artistas revelar as porções mais significativas da maior expressão da vida brazuca: o futebol. Pompeu é dessa rara linhagem e esta obra é a lupa de que o nosso futebol precisava, a magnificar-lhe o espírito da época.
O psicanalista Wilhelm Reich criou a teoria da couraça
pélvica, panzerung. Antes da
Revolução Industrial, os seres humanos não estavam acostumados a trabalhar na
linha de produção por horas e horas a fio, eretos e com ventre duro, sem poder
ir ao banheiro. Esse endurecimento teria criado uma geração de neuróticos. Eis
porque países de PIBs triplicados no pós-guerra como os Estados Unidos nos
legaram o rock and roll, cujo maior
ícone é um branco de ventre mole, Elvis the Pelvis, um motorista de caminhão
que dançava como negro...Os negros, de resto excluídos do processo produtivo a
princípio, não tiveram que endurecer a pélvis...É por isso que os técnicos de
futebol acham que o melhor jogador de futebol é o negro, porque tem cintura
mole...Este é mais um dos geniais apontamentos de Renato Pompeu.
Outra coisa: Pompeu alia o futebol à abolição marxista do trabalho, já que o trabalho humano (práxis) faz uso das mãos e o futebol, dos pés. O futebol só vingou em países de tradição católica e marxista, porque Marx e Cristo postularam uma teoria soteriológica (vem do grego sóteron, que significa salvação), a salvação pelo reino dos céus ou pelo reino do comunismo, ambos reinos da igualdade.
A leitura desta obra pode conduzir a uma análise mais
detida dos seguintes temas: o papel sociológico do negro no futebol – vale
mencionar o livro O negro no futebol
brasileiro, de Mário Filho, irmão de Nelson Rodrigues –, e a explosão do
futebol em sociedades católicas e de tradição de militância operária-marxista.
Nos EUA da AFL-CIO (Federação Americana do Trabalho – Congresso das
Organizações Industriais) vingou o basquete, que pelo uso das mãos reafirma o
trabalho ou a práxis.
Em seu Tratado do
ser vivo, o francês Jacques Ruffié já aliara o florescimento do marxismo à
presença do catolicismo: duas formas de salvação. (Todos os caminhos da
salvação levam a Roma ou a Romário...) Pompeu agora nos traz uma terceira: o
futebol. E numa obra cheia de detalhes inéditos, em estilo fluido, o que,
aliás, permite a jornalistas e vieux
combattants da imprensa ganhar a parada contra os tecnocratas que escrevem
para jornais. Pompeu é a salvação do futebol brasileiro”.
Literatura na Arquibancada resgata abaixo o trecho inicial do “Memórias de uma bola de futebol”.
Trecho primeiro
capítulo
Minhas primeiras lembranças, de quando eu era ainda bebê,
são de estar deslizando sobre algo muito duro, porém não áspero, e de sentir
muito frio o tempo todo. Eu me lembro que, logo antes disso, eu estava como que
adormecida. E de repente, muito e muito tempo atrás, de repente despertei em
meio a uma situação que até então eu não conhecia. Senti que tudo em volta de
mim era gelo, mas não branco ou esbranquiçado; era mais para o cinza,
proveniente não do gelo, mas do que parecia relva, ou ervas a brotar de repente
do congelado solo siberiano.
Comigo estava um casal, um casal humano. O frio que ela e
ele sentiam no descampado não era tão vergastante; era, diria alguém, um frio
suave, quase ameno. A mulher e homem, tão-somente os dois na vastidão, vestidos
apenas de couro de rena, me chutavam um para o outro. Pois eu era então, sou
agora e sempre serei uma bola, uma bola redonda. Tudo isso que relatei
demonstra que já havia futebol no círculo ártico, há 20.000 anos; pois eu sou
uma bola de futebol, sempre fui uma bola de futebol e já então eu era chutada
para todo lado, não para as pessoas serem felizes, mas para serem realmente
humanas. Agora, essa é a minha primeira lembrança. Do futebol que houve antes
disso, e se eu já participava dele ou não, nada posso dizer. O que lembro é
que, de repente, eu estava sendo chutada no gelo.
Eu, bola de futebol, tenho, desde eras imemoriais, ligações com os pés dos seres humanos. Dizem que os seres humanos se distinguem dos outros animais por terem mãos. E que o constante manuseio, pelos seres humanos, de coisas primeiro, depois objetos e enfim artefatos, fez desenvolver-lhes o cérebro. Ou, mais exatamente, o neocórtex, o cérebro especificamente humano que se sobrepõe ao compartilhado com os mamíferos, ambos superpostos ao cérebro compartilhado com os demais vertebrados. Porém a verdade é que mais de 90 por cento da atividade cerebral se refere à manutenção da postura ereta. Sem postura ereta, ao menos no comportamento moral, não existe humanidade. E a postura ereta se apoia, é claro, sobre os pés.
Deste modo, eu, como bola de futebol, ao me restringir
aos pés e ao me proibir para as mãos, eu é que estou homenageando
especificamente a humanidade desse antigo primata. Eu me dou sempre conta de
que, embora minha primeira lembrança seja de estar correndo sobre o gelo, o
fato é que, na maior parte da minha vida, estive sempre brilhando ao sol em
temperatura entre cálida e quente demais. Ou brilhando sob as luzes fortes
criadas pelos seres humanos para me verem correr noite adentro. Muitas vezes
também me acontece de ser o tempo todo vergastada pela chuva; menos vezes, pela
neve. Agora, em todas essas situações, desde a era que eu chamo de idade do
gelo primordial, eu, como bola, já há dezenas de milênios, eu como bola devo
confessar que tenho uma ligação particular com as mulheres. Não sei se isso vem
de minhas formas arredondas, ou de eu ter sido durante muito tempo considerada
apanágio dos homens, como também, durante muito tempo, foram consideradas as
mulheres. Houve, é claro, aquela primeira mulher, duzentos séculos atrás, que
me chutava e chutava lá no gelo do Ártico da Sibéria. Mas ela é a primeira de
bilhões e bilhões de mulheres que lidaram comigo esse tempo todo. As mulheres
sempre foram a minha salvação, embora a maior parte dos pés que me tem tocado
esses milênios todos tenham sido pés masculinos.
O fato é que reconheço, por exemplo, que, se não fossem as mulheres das zonas de mineração na região de Pittsburgh, Pensilvânia, EUA, que faziam meses a fio campanhas para arrecadar comida e dinheiro destinados aos jogadores que iam me chutar, mulheres que infernizavam a imprensa local para que os jornais continuassem a patrocinar os times, nunca teria havido, como de fato há, uma tradição secular de futebol na Pensilvânia ocidental, tanto quanto há na Escócia, ou na Argentina e eu não seria o que sou, pelo menos não seria o que eu sou em Pittsburgh. E se não fossem essas mulheres de Pittsburgh talvez a Seleção Nacional dos EUA jamais teria derrotado o Brasil nos Jogos Pan-Americanos de Chicago, em 1959; talvez nesse jogo eu jamais teria entrado cinco vezes nas redes brasileiras – e três nas americanas. Devo isso, para o bem e para o mal, às mães, irmãs, namoradas, mulheres dos mineiros da Pensilvânia, aos mineiros de Pittsburgh.
De todo modo, não me proíbo totalmente às mãos. E não é
só o goleiro que pode me manipular: qualquer jogador, no arremesso lateral, me
pode até mesmo agarrar por tempo indefinido. Como bola de futebol, no entanto,
a minha preferência é pelos pés. É também a preferência dos crentes: existe, há
séculos e séculos, o lava-pés. Não existe, e nunca existiu, nenhum lava-mãos, a
não ser o do procônsul romano na Palestina, Pôncio Pilatos.
Agora o fato é que, como bola, e não sei por qual razão, sempre me senti mulher, ou melhor, uma divindade fêmea. Talvez seja esse, na verdade, não me lembro muito bem, o motivo profundo de eu ter notado, com particular atenção e muito especificamente, que havia também mulheres, e não apenas soldados, entre o público nas arquibancadas em 16 de agosto de 1942, em Kiev, quando o por nada mais nada menos do que 8 a 0; isto é, eu entrei oito vezes nas redes alemãs e nenhuma nas redes ucranianas. E, logo que o jogo acabou, as mulheres ali nas arquibancadas em Kiev ficaram olhando fixamente, em silêncio, o campo verde, enquanto os jogadores ucranianos eram levados por soldados alemães com capacetes de aço a um caminhão fechado, que logo partiu.
Em meia hora, o caminhão parou perto de uma ravina, conhecida pelo desde então ominoso nome de Baby Yar. Todos os jogadores ucranianos foram fuzilados numa única rodada por um pelotão alemão, e seus corpos foram rapidamente jogados por sobre montes e montes de cadáveres de judeus que ali jaziam havia tempo. Quanto a mim, eu, bola de futebol, não tendo sido considerada culpada daquele atentado à arianidade, fiquei abandonada anos a fio lá dentro das redes alemãs, os cabos me enredando toda em volta, do mesmo modo que eu ficara quando entrei ali pela oitava vez naquela tarde. A grama foi crescendo e logo foi virando capim, que se emaranhava com aqueles cabos da rede e esse capim e esses cabos pareciam meus cabelos, como se eu fosse uma medusa redonda e gorducha. Mas, assim que a guerra terminou, umas crianças, é claro que ucranianas, mas não sei se havia crianças judias entre elas, me despertaram de volta para a vida, me desenredando dos cabos enfunados e daquele capim velho e então me chutando para tudo que era lado. Entre essas crianças, além de meninos, havia também meninas, como pude sentir pelos chutes mais suaves.
Sobre Renato
Pompeu:
Nasceu em Campinas, SP, em 1941, mas sempre morou em São Paulo. Em 1960 entrou no curso de Ciências Sociais da USP e no mesmo ano começou a trabalhar como jornalista, tendo atuado na Folha de S. Paulo, na revista Veja e no Jornal da Tarde, além de outras publicações. Ganhou três Prêmios Abril e um Prêmio Esso de Jornalismo, por trabalhos sobre males do coração, males do tabaco e futebol. Como escritor, tem 22 livros publicados, entre ficção e não-ficção. Atualmente colabora na Caros Amigos, Carta Capital, Diário do Comércio e Diário de S. Paulo, além do blog. Dos 22 livros publicados, destacam-se os romances "Quatro Olhos" (1976), "Samba-Enredo" (1992), ambos pela Editora Alfa-Ômega, e "O Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil" (2008), pela Editora Casa Amarela. De não-ficção, "Memórias da Loucura" (1983), pela Alfa-Ômega, "Globalização e Justiça Social" (1996), pela Editora Scortecci, e "Canhoteiro, o Homem que Driblou a Glória" (2002), Ediouro.
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