Diz o dito popular que um raio não costuma cair duas
vezes no mesmo lugar. Dentro dos gramados a quebra deste mito aconteceu
recentemente, no Santos, com Pelé e Neymar. Na literatura brasileira, e mais
especificamente, na literatura esportiva, esse mito também foi quebrado. Como
em uma mesma família poderiam nascer dois craques da envergadura de Mario Filho
e Nelson Rodrigues? Mas aconteceu e é fato. O primeiro raio caiu no dia 3 de
junho de 1908, quando nasceu Mario Rodrigues. O segundo, no dia 23 de agosto de
1912, com a chegada de Nelson Rodrigues.
Nelson, pela genialidade também na dramaturgia
brasileira, tornou-se mais famoso.
Mario, apesar de ter o nome eternizado no
maior estádio do mundo, o Maracanã, não teve, pelo menos na literatura, o
devido reconhecimento. Nelson já teve biografia escrita por Ruy Castro, O Anjo
Pornográfico (Companhia das Letras) e coletâneas de crônicas também organizadas
pelo mesmo autor e editora.
Mario, apenas um livro com coletânea de suas
crônicas, O Sapo de Arubinha, também
organizada por Ruy Castro.
Contudo, na literatura esportiva, a obra de Mario Filho,
além de maior, tornou-se referência nacional. Mario Filho é autor de seis
livros com o tema futebol (Copa Rio Branco, 1932; Histórias do Flamengo, 1934;
O Negro no Futebol Brasileiro, 1947; Romance do Foot-ball, 1949; Copa do Mundo de
62, 1962 e Viagem em torno de Pelé, 1964).
Mario Filho também era romancista: escreveu
livros como Bonecas, 1927; Senhorita, 1928, O Rosto, 1965, Sexo na faixa de
Gaza, 1965; Tráfico na gávea, 1966 e Infância de Portinari, 1966.
Na literatura
esportiva, para muitos, Mario Filho escreveu a maior obra no gênero, O Negro
no Futebol Brasileiro, publicada em 1947.
Mario Filho teve ainda um documentário lançado em 2010 e produzido
por Oscar Maron Filho, “Mario Filho, o criador das multidões”. Em 2014, a
editora Livrosdefutebol.com, de César Oliveira, publicará, finalmente, a mais
do que merecida biografia de Mario Filho.
Afinal, quem era melhor no gênero crônica esportiva:
Nelson ou Mario? A resposta é do próprio Nelson Rodrigues, na crônica publicada
abaixo:
Mario Filho, o
criador de multidões
Por Nelson Rodrigues
Há seis anos morria Mário Filho. Há seis anos, batia o
telefone. Eram quatro horas da manhã. Portanto, há seis anos, e às quatro horas
da manhã, morria Mário Filho. Eu queria dizer duas palavras sobre meu irmão
(ainda bem que, em nosso idioma, duas palavras são duzentas, trezentas ou mil.
Mil palavras). Imaginem que, dois ou três dias depois de sua morte, Manchete pediu-me
para escrever sobre ele. Ora, por um mês, dois, três meses, tive uma obsessão
fanática: falar dele e só dele. E ninguém precisaria
pedir. Minha vontade era sair, de porta em porta, dizendo a amigos, conhecidos
e até desconhecidos: “Mario Filho foi o único grande homem que eu conheci”. Minha
sensação é que, diante dele, todos nós somos pequeninos como aqueles anões de
Velásquez. Tivemos cinquenta anos de intimidade e, portanto, meio século de convivência
exemplar e implacável.
Vou começar dizendo que Mario Filho foi de uma bondade
desesperadora. Bom a cada minuto. Bom de uma bondade, que, por vezes, nos
agredia e humilhava. Se ele aparecesse com um passarinho em cada ombro, não me
admiraria nada, nada. Vejamos os seus retratos. Era uma cara feita de alegria.
Grato à vida, nunca se arrependeu de ser humano, de ser nosso semelhante. A
euforia de ter nascido o acompanhou por toda a vida. Era um ser atravessado de
luz como um santo de vitral.
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Os irmãos Nelson e Mario Filho |
Meu Deus, eu gostaria de dar uma ideia da extensão,
dinamismo e profundidade de sua obra. Mas antes preciso dizer que Mario Filho
era um desses homens fluviais que nascem de raro em raro. Disse fluvial e
explico: imaginem um rio que banhasse e fertilizasse várias gerações. Assim foi
Mario Filho. Há mais de quarenta anos, não há, na crônica de todo o Brasil, vocação,
não há talento que não tenha recebido a sua luz decisiva. Morreu e continuamos
a viver das rendas do seu gênio.
Hoje, eu e meus colegas andamos por aí, realizados, bem
vestidos, temos automóveis, aos sábados frequentamos boates; passamos de fronte
erguida e o nosso palpite tem a imodéstia do Juízo Final. Mas gostaria de
perguntar: o que era e como era a crônica esportiva antes de Mario Filho?
Simplesmente não era, simplesmente não existia. Sim, a crônica esportiva estava
na sua pré-história, roendo pedra nas cavernas.
Não vejam impiedade nas minhas palavras, mas a simples e
exata veracidade histórica. Bem me lembro do tempo em que comecei a escrever
esporte. Meus companheiros de seção eram pobres-diabos, mais humilhados e mais
ofendidos do que o Marmeladov de Crime
e castigo. Um deles, quando ria ou sorria, mostrava uma antologia
de focos dentários. Era costume, então, entre os clubes, oferecer um lanche à
crônica. E o que nos fascinava não era o gol, ou pênalti, ou a vitória. Nada
mais pungente e plangente do que a voracidade com que agredíamos os guaranás e
os sanduíches.
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Marcos de Mendonça, goleiro do Fluminense. |
Até que, um dia, Mario Filho apareceu. Pode-se datar o
nascimento da nossa crônica esportiva. Foi quando ele publicou uma imensa
entrevista com Marcos de Mendonça. O famoso goleiro, retirado há anos,
anunciava a sua volta. O patético, porém, não era o fato em si, mas a sua
escandalosa valorização jornalística. A matéria inundava um espaço jamais
concedido ao futebol: meia página. Os nossos clássicos e as nossas peladas não
mereciam mais que meia dúzia de linhas. E o pior era a linguagem da velha
crônica. Mario Filho trouxe a palavra viva, úmida, suada. Naquele tempo, os
estilistas da seção de esporte assim redigiam a notícia do grande jogo: “Será
levado a efeito amanhã, às tantas horas, no aprazível field da
rua Paissandu, o esperado prélio” etc. etc. E o cronista que alcançava
esse nível julgava-se um Flaubert.
A entrevista de Mario Filho foi um duro impacto, sobretudo na
linguagem. Ela saiu por volta de 1927. Em meia página, ele profanou o bom gosto
vigente até em jornal de modinhas. Dir-se-ia um novo idioma atirado na cara do
leitor. O público teria todo o direito de perguntar: “Mas que língua é essa?”.
Mesmo os melhores jornalistas da época escreviam de fraque. No teatro, Leopoldo
Fróis falava com sotaque lisboeta. A simplicidade era uma vergonha.
E não foi só. Havia também, no seu texto, uma visão
inesperada do futebol e do craque, um tratamento lírico, dramático e
humorístico que ninguém usara antes. Posso dizer que, desde então, ninguém
influiu mais na imprensa brasileira. O próprio artigo de fundo deixou de ter a
pose do mordomo de filme policial inglês. Como dizia o Raul Brandão, o pintor
das igrejas e grã-finas: “A imprensa deixava de ser besta”. Mario Filho
inventou uma nova distância entre o futebol e o público. Graças a ele, o leitor
tornou-se tão próximo, tão íntimo do fato. E, nas reportagens seguintes, iria
enriquecer o vocabulário da crônica de uma gíria irresistível. E, então, o
futebol invadiu o recinto sagrado da primeira página. Bom tempo em que só o
assassinato do Rei de Portugal merecia manchete. E, súbito, o grande jogo
começou a aparecer, no alto da página, em oito colunas frenéticas.
Tudo mudou, tudo: títulos, subtítulos, legendas, clichês.
Abria-se a página de esporte e lá vinha o soco visual: o crioulão do Flamengo
enchendo a página. E não era a pose hirta. Mario Filho acabou com o craque
perfilado. O jogador aparecia em pleno movimento, crispado no seu esforço. E as
figuras plásticas, elásticas, davam às páginas tensão e dramatismo. E, com
isso, o diretor, o secretário e o gerente descobriram o futebol e o respectivo
profissional. O cronista esportivo começou a mudar até fisicamente. Por outro
lado, seus ternos, gravatas e sapatos acompanharam a fulminante ascensão social
e econômica. Sim, fomos profissionalizados por Mário Filho.
O rio continuou fazendo o seu curso generoso, umedecendo
e fecundando a aridez do caminho. Mas não vou contar tudo o que ele fez, porque
esse homem não parou nunca. Com seu formidável élan promocional,
trouxe novas massas para o futebol. A geração do Maracanã não imagina como a
multidão é, na cidade, um fenômeno recente. Vejam as fotografias do Rio antigo.
O brasileiro andava só. Quando três sujeitos se juntavam, as instituições
tremiam. Em nossos velhos campos de futebol, o público era ralo, era escasso.
Eis o que eu queria dizer: Mario Filho
foi, no futebol brasileiro, um criador de multidões.
Foi ele, e só ele o autor do Fla-Flu. Ora, o Fla-Flu, sem
esta abreviação mágica, existia desde 1911, ou 12. Até que Mario Filho resolveu
promover o velho clássico, tão velho que era anterior à Primeira Batalha do
Marne, anterior ao fuzilamento de Mata-Hari. Preliminarmente, mudou o nome do
clássico para Fla-Flu. Em seguida, montou todo um folclore fascinante sobre o
jogo superconhecido e desgastado. Eram os mesmos clubes, as mesmas camisas, os
mesmos jogadores. E, de repente, o Fla-Flu extroverteu todo o patético, todo o
sortilégio que trazia no ventre. Senhoras, que não sabiam nem quem era a bola,
compareciam ao jogo, magnetizadas pelo mito. A multidão do Fla-Flu é um milagre
de Mario Filho.
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Pelé e Mario Filho |
Foi dirigir o Jornal
dos Sports e continuou como chefe da página de esportes de O Globo. Neste último, escreveu sua famosa
coluna “Da Primeira Fila”. A massa de figuras, de fatos, de ambientes, que ele
dinamizou nas suas evocações, chega a ser inverossímil. Muitos escritos “Da
Primeira Fila” tem o nível do melhor Hemingway.
No Jornal
dos Sports e no O
Globo fez toda a batalha do Maracanã. Queriam sepultar o
estádio em Jacarepaguá. Ele percebeu o óbvio ululante, isto é, que Jacarepaguá
era quase outro país, quase outro idioma. O Maracanã, hoje “Mario Filho”, foi
uma de suas vitórias mais empolgantes. Criou a Copa Rio, um acontecimento de
futebol mundial; o Rio-São Paulo, hoje “Roberto Gomes Pedrosa”. Um dia, trouxe
os remadores de Cambridge e pôs, na Lagoa, meio milhão de pessoas. Criou “Os
Jogos da Primavera”, “Os Jogos Infantis”, o “Torneio de Pelada”, com 16 mil
jogadores. Era assim esse homem: com 57 anos, tinha a plenitude do infante dionisíaco.
Muitas vezes eu o vi levantar-se de sua cadeira, no estádio. E sua presença
inundava o Maracanã.
Amigos, o verdadeiro rosto é o último e repito: o rosto
do morto não mente, não trai, não finge. Fui velar Mário Filho. Muitas vezes
debrucei-me sobre ele. Jamais alguém teve, em vida, um rosto tão doce, tão
compassivo, e tão irmão. E as duas mãos entrelaçadas e com que estremecido
amor.
O maior estádio do mundo tem o seu nome. Pena é que não o
tenham enterrado lá. Com o Maracanã por túmulo. Mario Filho mereceria que o
velassem multidões imortais.
Fonte: Fla-Flu...e as multidões despertaram!, Editora
Europa, 1987
Só mesmo um gênio poderia dar a dimensão de outro, e o faria, mesmo não sendo irmão, porque o que lhes unia era uma coisa só, a paixão.
ResponderExcluirEm tempo de centenario do FLAxFLU, coincidentemente do nascimento de Nelson, tambem.
Ler esta cronica entende-se o alvoroço de uma multidão em torno de um "match".
José Roberto