Existem torcedores e
torcedores...E Ivan Lessa que nos deixou nesta sexta-feira, dia 8 de junho de
2012, exatamente um mês após completar 77 anos, era o que se pode dizer, um
torcedor apaixonado pelo Botafogo. Ivan, filho do escritor Orígenes Lessa,
nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Depois, escolheu
Londres para morar com a mulher e a filha, de onde passou a manter uma coluna
na BBC Brasil com crônicas bem-humoradas, sua marca registrada. Trabalhou em
diversas revistas e jornais brasileiros, mas foi a partir de 1969 que seu texto
e estilo se tornaram famosos no jornal O
Pasquim. Ivan Lessa também é autor de alguns livros: Garotos da
Fuzarca (contos, 1986), Ivan Vê o Mundo (crônicas,
1999) e O Luar e a Rainha (crônicas, 2005).
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Ivan Lessa e Jaguar. |
Torcedor apaixonado do
Botafogo, Ivan Lessa escreveu um dia: “Botafogo. Gozado. Flamengo,
Vasco, Fluminense. Coitados, tem apenas torcedores, nós temos uma paixão.” Comentando o livro do amigo Sérgio Augusto, “Botafogo: entre o céu e o
inferno” (Ediouro, 2004), Lessa afirmou: "Sou grato ao Sérgio Augusto por ter escrito um
dos três livros que eu mais gostaria de ler na vida."
E neste livro, Sérgio Augusto
revela o tamanho do coração torcedor do amigo Ivan Lessa:
“...Recém-chegado dos Estados Unidos, onde passara parte
da infância, por pouco Ivan Lessa não adotou o América, clube de simpatia de
seu pai, o escritor Orígenes Lessa. Ainda sem time, quando foi morar na avenida
Atlântica, Ivan, como outros pirralhos de Copacabana, acabou sucumbindo à
inescapável mística de Heleno de Freitas. ‘Sou Botafogo porque tive um béguin
pelo Heleno lá pelos 10 anos de idade’, confessou-me o meia-esquerda do meu
time-cabeça.
Em 1946 Ivan raramente perdia um racha na Bolívar e na
Barão de Ipanema, duas ruas de Copacabana onde o ‘boa pinta e falador’ Heleno
podia ser visto quase todo dia, a pé ou ao volante de um cinematográfico carro
esporte em dois tons de azul. Ora no restaurante Dolly (hoje Nino’s), na
esquina da Bolívar com Domingos Ferreira, às vezes espiando o futebol de praia,
quando não participando de uma linha de passe na areia, onde quer que estivesse
o mais glamouroso craque brasileiro de todos os tempos reinava absoluto na
princesinha do mar”.
Ivan Lessa deixou em uma
de suas crônicas escritas para a BBC Brasil o que para ele era “um verdadeiro
torcedor”...
O
verdadeiro torcedor
Por Ivan Lessa
“O verdadeiro torcedor não se dá a conhecer. Embora
um conoisseur, prefere trabalhar - seu ofício é duro - em silêncio. Tem razão.
Sua prática é feroz, exige disciplina e nem todos o compreenderiam.
O verdadeiro torcedor não pinta a cara ou qualquer
outra parte de seu corpo, não veste a camisa de seleção alguma, não agita
bandeiras, não ergue a voz em coro com outros. O verdadeiro torcedor é um
animal pensante doméstico. Não vai aos jogos. Principalmente os da Copa do
Mundo. Escolhe, no entanto, torneios importantes que propiciem amplo espaço na
imprensa, televisão ou mesmo rádio.
O verdadeiro torcedor gasta seu dinheiro em
jornais, publicações especializadas, cadernos em espiral e canetas
esferográficas. E uma tesoura razoável. No seu quarto, um território proibido a
estranhos, tem colado nas paredes tabelas coloridas e algumas fotos e recortes
pregados com uma massinha azul que não deixa marca ou mancha. Na mesa de trabalho,
ao lado do computador, o caderno de notas, a tesoura ("Recortar é
viver", este seu lema) e uma Bic, de preferência azul.
O verdadeiro torcedor passa entre 2 a 3 horas por
dia folheando os jornais em busca de colunas relativas aos diversos jogos.
Degusta análises, com ênfase naquelas que ousem previsões. Não são difíceis de
encontrar: o peixe morre pela boca, o jornalista esportivo pelo texto. O
verdadeiro torcedor passa pelo menos uma hora vendo e ouvindo, com atenção, as
observações feitas pelos bem pagos comentaristas profissionais durante os
intervalos e as versões compactas dos jogos da Copa. O verdadeiro torcedor ri
fácil e, sério, toma notas.
O verdadeiro torcedor é um perfeccionista. O
verdadeiro torcedor sabe, como os mais desbragadamente apaixonados, o nome e a
ficha completa de jogadores mais populares como Cristiano Ronaldo, Messi,
Robinho, Maicon, Eto'o, Casillas, Rooney e Dempsey, como também daqueles menos
cotados, como Zigic, Özil, M'bohir, Yussuf e Park-Ji-Sung.
Até mesmo os técnicos não fogem a seus olhos
dourados de atenção: Otto Rehhagel, Huh Jung-moo, Gerardo Mantino e Rajevac são
magos feiticeiros de sua intimidade. O verdadeiro torcedor desconhece limites
para o esporte das multidões em sua modalidade máxima, pois sabe de cor e salteado
até mesmo o nome de todos os estádios sul-africanos, dos quais prefere citar,
em voz baixa e a sós, como se recitando uma incantação, os de Koftus Versfeld,
Peter Mokaba, Mbombela e o de Moses Mabhida.
O verdadeiro torcedor tem, por vezes, seus exageros,
pois é humano, nada mais que humano. Saber uma linha do hino nacional da
Argélia, sob qualquer ponto de vista, não deixa de ser levar a idiossincrasia a
seus mais desvairados limites (É assim: Qassaman Binnazzilat Ilmahigat e quer
dizer "Juramos pelo raio que destrói").
O verdadeiro torcedor freme e goza de prazer é
quando encontra, como foi o caso, um comentário-prognóstico de David Hytner, do
Guardian, na mesma manhã em que, algumas horas depois, a Alemanha foi perder de
1 a 0 para a Sérvia:
"Joachim Löw revitalizou sua equipe (a alemã,
frise-se) com uma abordagem técnica audaz, saudável e multicultural". E,
mais abaixo, "A formação por ele escolhida a dedo abunda com a exuberância
e o frescor da juventude". Assim prosseguiu o notável David Hytner, sem
sequer esquecer do trema sobre o "o"de Löw, jabuzelando e vuvulanando
por umas três colunas.
A Sérvia? Sob a batuta de Raddy Antic? A Sérvia
definitivamente não estava à altura de conter as feras de Löw que, até então,
já haviam desembestado ganhando de 4 (de quatro!) da - seria manhosa, David
Hytner? - Austrália, orquestrada sob a batuta do - seria capcioso, David
Hytner? - Pim Verbeek.
O verdadeiro torcedor, assim como quem não quer
nada, quer tudo. O verdadeiro torcedor é pela zebra e o circo pegando fogo fora
de campo. O verdadeiro torcedor pouco liga para milionários dando pontapés e
estragando gramados.
O negócio do verdadeiro torcedor é ver os outros
milionários, os da mídia, quebrando a cara. Momentaneamente, ao menos. O
verdadeiro torcedor sabe que os outros torcedores, coitados, logo vão embora e
de tudo se esquecer depois de cantarem seus estribilhos, soprarem nisso ou
naquilo outro e voltar a esperar outros quatro anos.
O verdadeiro torcedor não carece de matéria.
N'est-ce pas, cari amici italiani?
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