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Afrânio Peixoto |
O que há de mais prazeroso neste resgate da literatura
esportiva que o Literatura na Arquibancada procura fazer é quando encontramos
algum texto produzido, em passado distante, por um grande nome da literatura
brasileira.
E é incrível como o tempo não interfere em praticamente
nada nas análises do autor. Afrânio Peixoto, um dos maiores nomes da literatura
brasileira, além de médico legista, político,
professor, crítico, ensaísta, romancista e historiador, escreveu em 1916
uma crônica sobre os significados do futebol para uma sociedade como a
brasileira. O mais curioso é o relato de sua primeira experiência em um jogo de
futebol disputado, provavelmente, no estádio da Rua Paysandu, no bairro do Flamengo,
no Rio de Janeiro. Para Afrânio Peixoto, pouco importa revelar quem eram os
times em campo. Seu olhar estava atento ao estilo e comportamento dos jogadores
brasileiros e como o futebol poderia ensinar muito mais do que o povo
pudesse imaginar.
Apesar da distância do
tempo em que tudo aconteceu, é incrível como ao ler seu texto, vemos
semelhanças no estilo de jogo praticado pelo futebol brasileiro até hoje.
Principalmente, a falta de sentido de equipe, solidariedade, cooperação e
disciplina, termos utilizados, inclusive, na chamada da crônica, publicada no
Almanaque Esportivo do jornalista Thomaz Mazzoni, no ano de 1945.
Mais curioso
ainda é saber que dois anos depois, Afrânio Peixoto morreria, tornando o
resgate desta crônica, fundamental para o acervo histórico da literatura
esportiva brasileira.
“Vencer no
futebol...
Significa disciplina, cooperação,
solidariedade eficaz.
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Reprodução Almanaque Thomaz Mazzoni, 1944/1945, com artigo de Afrânio Peixoto. |
Em 25 de outubro de 1916, portanto, há quase 30 anos, o
antigo Jornal do Commércio publicava
a belíssima colaboração que transcrevemos, assinada por Afrânio Peixoto. Não se
trata do nome de um técnico de futebol e nem de um diretor de clube
futebolístico. Afrânio Peixoto além de médico de valor, é um escritor que honra
as letras brasileiras. Esta sua página, que o Almanaque reproduz, além da
finura literária, tem significado especial. É preciso não esquecer que há muita
gente por aí que fala mal do futebol, sem nunca ter assistido a um jogo...
Por Afrânio
Peixoto
Não há infelizmente neste profundo e culto país um só
homem, de grandes ou pequenas responsabilidades, que não tenha um sorriso
superior, de benévolo ceticismo, talvez até de piedade, para cogitações tão
fúteis...
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Afrânio Peixoto |
“Sports”, distração de rapazes, atrativo de moças, uns a
mostrarem formas de atletas, outras a exibirem os últimos figurinos... Divirtam-se...há
de lhes aproveitar bastante.
Confesso que tenho o meu fraco por essas festas da força:
a gente distrai-se e pensa, o que, às vezes, é instrutivo...
Lembra-me agora, por exemplo, a primeira vez que fui aqui
a um campo de “foot-ball”.
Povo garrido e entusiasta, a rebentar as
arquibancadas, para assistir a um “match” de patrícios, desafiados por um “team”
estrangeiro, que atravessara os mares para se bater conosco.
A honra já era uma
vitória; certo que a Europa, uma vez mais, como a canção popular, ia curvar-se
ante o Brasil!
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Estádio da Rua Paysandu, RJ. |
O jogo começou, com aplausos de animação e delicadeza,
aos vencedores, aos vencidos, disposição muito mais amena que o julgamento
final, em que há muita veemência e algum despeito, a mesclar entusiasmo.
Mas, começou, e os aplausos continuaram, apesar dos nossos
não fazerem um ponto, embora, um por um, os estrangeiros nos “vasassem” o “goal”.
Ganharam? Que importa, ganhavam sem glória. Faziam “passes”
sucessivos, cada um ocupado com a modesta posição que lhe cabia no concerto,
estranho à assistência, sem contar por si, mas apenas consigo para os outros,
para o “team”, por isso constantemente vencedor. A vitória era deles, não há
dúvida, 4 a 0, mas era uma vitória a dividir por onze, como bilhetes de uma
loteria: undécimos sorteados...
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Estádio da Rua Paysandu |
Os nossos, não tinham bravura, contavam por si, e só
consigo. Já na atitude, voltados para a assistência, quando podiam, lobrigavam
sem dúvida nas mil cabeças curiosas, que os fitavam admiradas, uma cujos olhos
brilhassem mais inquietos, denunciando um coração, mais apressado, como a
insistir num voto de triunfo. Desempenhavam-se em posturas de atleta, sempre
corretos e preocupados, até o momento da intervenção. Quando a bola vinha, um “shoot”
elegante, que soltasse as asas à revoada dos aplausos, ou a perícia do jogo
pessoal difícil, não obtido sempre, mas honroso para cada um, desses “driblings”
em que a gente faz bonito, embora perca o “team”!
Quatro a zero...não valeram palmas, “poses”, olhos
votivos, corações apressados, milagres do individualismo. .. perdemos. Os
passes, o jogo conjugado, de todos para o grupo, a associação das parcelas,
deram resultados. Procurássemos desculpas, melhor adestramento, treino
continuado, talvez até uma falaz delicadeza aos hóspedes...não importa,
tínhamos perdido.
Com o “zum-zum” da multidão que se dispersava pelos
portões abertos, vinha caindo a cinzenta melancolia da tarde. Por Paisandu afora,
andei triste, à procura de razões.
Devia ser assim...Já o era, com os nossos antepassados;
não os nossos avós, mas os donos desta terra que no-la deram com os seus
defeitos, dela recebidos. Um calor exaustivo, que impede a aproximação, uma
pequena caça que dispensa a colaboração, a tocaia atrás do pau, a solidão à beira
do rio, educaram, através de séculos, os primeiros brasileiros, no
individualismo daninho, em que cada um fila somente de si, e não pode, porque
não tem em quem confiar.
Os latinos que para aqui vieram, seriam, como todos os
latinos, desapegados uns dos outros, incapazes de cederem, na independência de
cada um as quotas, que somadas dão a vantagem do povo, a vitória nacional.
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Recepção dos torcedores no RJ, a seleção Brasileira que disputou a Copa Roca 1914. |
Os outros não...germanos – por instinto, anglo-saxônicos –
por educação, são disciplinados...Um homem não vale senão como fração da sociedade; um
jogador não existe, mas apenas parcelas do “team”. E essa longa colaboração, na
raça e no indivíduo, fazem constantemente o êxito final, de todas as suas
empresas.
No “sport”, como na vida...
Vencem nela os que sabem vencer no outro. De um professor
francês que lhes ia ensinar cultura latina, os rapazes de Harvard, a grande
universidade americana, queriam saber, para avaliar de tal cultura, se os
rapazes de Paris eram fortes no “football”.
Um “trustes” bilionário declarava
que só se convenceria da capacidade dos latinos para os negócios, no dia em que
um “team” da Europa meridional vencesse os campeões de Yale.
Por quê? Porque
vencer no “football”, vencer nos “sports”, significa disciplina, cooperação,
solidariedade eficaz.
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Fluminense de 1919. Ao fundo torcedores nos morros. |
Tão eficaz assim? Lembrai-vos de um pequeno incidente na
história do mundo.
Os cristãos primitivos, das mais baixas classes e mais
humildes condições, perseguidos, martirizados, vilipendiados...venceram,
finalmente, o mundo antigo, bravo e forte contra eles, pelo milagre da
associação...
Não há quem rompa um feixe de varas, ainda quando, uma a
uma, até crianças delas possam dar cabo.
O socialismo, a maior revolução econômica da história,
está aprendendo e, talvez, domine a sociedade contemporânea, desprevenida e
desagregada contra ele.
Só isto.
Ao “sport”, pois, que ensina disciplina moral e
dá saúde à vida!
Quando cheguei à Beira Mar, estava decidido a voltar nos
outros domingos; e não me tenho arrependido. Já não saio tão triste, como na
primeira vez. E às vezes, exulto; entrevejo um Brasil de amanhã, mandando um “team”
vitorioso a Yale ou a Harvard...”.
Para saber mais sobre Afrânio Peixoto, acessar o site da
Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual foi membro: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=127
Suas principais obras literárias são:
Rosa mística, drama (1900); Lufada sinistra, novela
(1900); A esfinge, romance (1911); Maria Bonita, romance (1914); Minha terra e
minha gente, história (1915); Poeira da estrada, crítica (1918); Trovas
brasileiras (1919); Parábolas (1920); José Bonifácio, o velho e o moço,
biografia (1920); Fruta do mato, romance (1920); Castro Alves, o poeta e o
poema (1922); Bugrinha, romance (1922); Ensinar e ensinar (1923); Dicionário
dos Lusíadas, filologia (1924); Camões e o Brasil, crítica (1926); Dinamene
(1925);
Arte poética, ensaio (1925); As razões do coração,
romance (1925); Uma mulher como as outras, romance (1928);Sinhazinha
(1929);Miçangas (1931);Viagem Sentimental (1931); História da literatura
brasileira (1931); castro Alves - ensaio biobibliográfico (1931);
Panorama da
literatura brasileira (1940); Pepitas, ensaio (1942);Amor sagrado e amor
profano (1942);Despedida (1942); Obras completas (1942); Indes (1944);É
(1944);Breviário da Bahia (1945);Livro de horas (1947);Obras literárias, ed.
Jackson, 25 vols. (1944); Romances completos (1962);Trovas brasileiras (s.d.);
Autos (s.d.).
Além dessas, publicou obras de
outros autores e numerosos livros de medicina, história, discursos, prefácios.
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