A despedida do homem que mais e melhor escreveu crônicas
sobre futebol não poderia ter sido diferente. A última crônica escrita por
Nelson Rodrigues, como o próprio filho nos explicará abaixo, está “longe de ter
sido a melhor”, mas reflete toda a paixão que Nelson tinha pelo seu Tricolor
das Laranjeiras, campeão carioca de 2012.
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Fluminense, campeão carioca 2012. |
Estivesse ainda entre nós, a vitória do Fluminense sobre
o Botafogo, no Engenhão, estaria até agora sendo devorada por tricolores e
amantes da boa prosa esportiva com as reflexões de Nelson Rodrigues. Naquele
início de dezembro de 1980, Nelson Rodrigues, ou melhor, o “Velho”, como seu
filho o tratava carinhosamente, enfrentava bravamente o último estágio da
doença que o levaria para sempre. Nelson Filho soube como ninguém retratar um
momento emocionante, sofrido, comovente, como o pai sempre o fez durante a
vida. E não poderia ter sido de outra forma, logo após a conquista de um título
pelo Fluminense.
A última crônica
Por Nelson Rodrigues Filho
“Dezembro de 1980. O Velho caminhava para a morte. Uma
caminhada suave por conta de uma falência orgânica que começou pelos pulmões, desde
os anos 30, e que foi se estendendo a outros órgãos, principalmente o coração.
Já ficara em coma, em São Paulo, por cerca de vinte dias,
em 1974. Os médicos haviam se conformado com a irreversibilidade do processo
quando seu cardiologista e amigo Stans Murad resolveu trazê-lo assim mesmo para
o Rio de Janeiro, Beneficência Portuguesa. Ocorreu o milagre e, sem mais nem
menos, ele abriu os olhos voltando à vida.
Em 1980, a situação havia se agravado de tal forma que se
lia nos olhos dos médicos uma contagem regressiva, que, logo em seguida, se
mostrou inexorável.
O Velho havia sido proibido de assistir e ouvir os jogos
de futebol, claro, principalmente os do Fluminense. Não podia se emocionar.
A lucidez total não era uma constante durante o dia, até
porque tomava muitos remédios que refletiam diretamente em sua cabeça. Ainda
assim, acompanhava tudo o que ocorria no mundo e sabia da partida final do
Fluminense contra o Vasco.
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Fluminense, campeão carioca 1980. |
Decidi não ir ao jogo para ficar com ele que, com
certeza, estaria bastante excitado e, apesar da proibição, iria procurar um
radinho de pilha. Acertei em cheio. Combinamos que, obedecendo ao Dr. Murad, eu
ouviria o jogo e iria lhe contando como estava indo.
Entre minúsculas sonecas, ele dava vazão à sua incrível
ansiedade.
“E aí, Nelsinho, como vamos?”
Como sua noção de tempo estava diminuída, resolvi
administrar meus comentários. Dizia que a partida estava equilibrada e que o
Fluminense vinha bem. Eu andava pela casa emocionado, sabendo que não poderia
mentir no caso de uma derrota tricolor. E o medo de que isso viesse a ocorrer?
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Edinho |
Acabou o primeiro tempo e o 0x0 temperou nossa conversa
de intervalo, eu me pautando pela discrição. Recomeçou o jogo com o equilíbrio
mantido, mas o Edinho fez o gol do título, de falta. Enxugando as lágrimas,
preferi ir dizendo que o Fluminense melhorava para evitar a possibilidade de
uma frustração posterior. Não conseguia ficar perto dele, pois choraria as
famosas lágrimas de esguicho. Voltei a andar pela casa torcendo com todas as minhas
forças, ainda que supercontido, para o jogo terminar. Acabou. O Fluminense era o
campeão. Faltava dizer ao Velho e, fundamentalmente, com dizê-lo. Aos poucos,
fui criando o clima que me parecia correto para a grande notícia. Finalmente,
cheguei ao gol e ainda demorei um pouco para que a partida “terminasse”.
Sua euforia contrastava visceralmente com suas forças.
Ainda que proibido de trabalhar, escrever, puxar pela cabeça, insistiu em ir à
máquina. Uma luz incontrolável o arremetia para a crônica.
Como costumava fazer, interpretava alguns momentos.
Porém, a dificuldade era enorme. Fui ver o que escrevia e ele, simplesmente,
errava as linhas do teclado. Não saia uma palavra inteligível.
A um tempo triste, era um espetáculo maravilhoso assistir
àquele esforço hercúleo.
“Não posso deixar de escrever”, repetia.
Então combinamos que eu ia para a máquina catar meus
milhos e ele ia ditando. Ainda assim, foi extremamente difícil sair uma
crônica. Sua cabeça não lhe correspondia. Precisávamos tentar várias palavras
para dar nexo às frases.
Custou, mas saiu. Sua última crônica, lutando contra
gigantescas forças de seus remédios, veio à tona. Com certeza está longe de ter
sido a melhor. As grandes metáforas, as frases retumbantes não puderam aflorar.
No entanto, seu último momento como cronista esportivo ficou marcado, mais do
que sempre, pela férrea determinação que norteou uma vida em que a morte foi
sua vizinha constante. Aquela força, aquela luz só tinha uma explicação: a
paixão lancinante pelo seu Fluminense”.
Eis a crônica ditada por Nelson Rodrigues ao filho e
publicada no jornal O Globo, no dia 2
de dezembro de 1980:
Fluminense Campeão
Demais
Por Nelson Rodrigues
“Amigos, em futebol, nunca houve uma vitória improvisada.
Tem sido assim através dos tempos.
Foi uma doce e santa vitória. Vocês viram como aconteceu
o nosso triunfo. Foi uma tarde maravilhosa.
Tudo começou há seis mil anos atrás. Vocês compreenderam?
Podia ser o Flamengo, o Botafogo, o Vasco ou outro, mas estava escrito que a
arrancada era tricolor.
Há quarenta anos antes do nada, Nelsinho foi chamado. E
foi tão fulminante sua presença no
túnel tricolor que merecia ser carregado numa bandeja com
uma maça na boca.
Amigos, os idiotas da objetividade custaram a perceber a
evidência ululante, segundo a qual seríamos campeões. Eu lhes falei do Roberto
Arruda. Pois o Arruda, desde o primeiro jogo do campeonato, me procurou
dizendo: – “Seremos campeões”. E neste domingo, o Arruda telefonou para dizer
uma única e escassa frase: – “Ninguém nos tira a vitória”.
E desde o primeiro momento do jogo, ficou claro que a
vitória era tricolor. Foi 1 x 0 mas poderia ser dois ou três. O Edinho fez o
gol e o Fluminense em vez de recuar para garantir o resultado partiu para cima
do Vasco como um leão faminto de mais gols.
E vocês viram: nosso adversário não pode esboçar a menor
reação.
Gostaria de falar dos campeões. O Fluminense tem um
elenco fabuloso do goleiro ao ponta-esquerda, e só os lorpas e pascácios não veem
que o futebol brasileiro está encarnado nos craques tricolores”.
A última crônica escrita por Nelson Rodrigues, com a
ajuda de seu filho, foi publicada também em um livro, “O profeta tricolor”, contendo
apenas crônicas sobre o seu Fluminense. A obra foi organizada por Nelson
Rodrigues Filho e publicada pela Companhia das Letras em 2002.
Abaixo, uma breve crítica sobre o livro escrita por José
Roberto Torero para o jornal Folha de S.
Paulo, no dia 3 de agosto, revela a importância de Nelson Rodrigues para a
literatura brasileira.
“Saiu um livro
de Nelson Rodrigues, desta vez com crônicas sobre o Fluminense. Chama-se
"O Profeta Tricolor".
E eu, caro leitor e caríssima leitora, vos pergunto: "Um livro de Nelson Rodrigues deve ser comentado nas páginas da Ilustrada ou nas de Esporte?". Pois eu vos respondo: "Nas da Ilustrada".
E eu, caro leitor e caríssima leitora, vos pergunto: "Um livro de Nelson Rodrigues deve ser comentado nas páginas da Ilustrada ou nas de Esporte?". Pois eu vos respondo: "Nas da Ilustrada".
É que suas crônicas, mais do que considerações
sobre o futebol, são exercícios de ficção. Para quem discorda, é só dar uma
olhada no "Aurélio". Está lá: "Ficção: coisa imaginária,
fantasia, invenção, criação". E é isso que são as crônicas.
Nelson Rodrigues usava os jogos de futebol como mote para suas criações literárias. Assim pariu personagens míticos como o Gravatinha, o Sobrenatural de Almeida e o Profeta. E, quando a realidade não o contentava, ele a reinventava. Foi desta forma que transformou Denilson em craque de seleção (não o atacante do Betis, mas um modesto zagueiro da década de 60), jogos feios em batalhas espartanas, times medianos em exércitos imbatíveis, o Fluminense no maior clube do Brasil, ou melhor, do mundo, ou melhor ainda, do universo.
Nelson Rodrigues usava os jogos de futebol como mote para suas criações literárias. Assim pariu personagens míticos como o Gravatinha, o Sobrenatural de Almeida e o Profeta. E, quando a realidade não o contentava, ele a reinventava. Foi desta forma que transformou Denilson em craque de seleção (não o atacante do Betis, mas um modesto zagueiro da década de 60), jogos feios em batalhas espartanas, times medianos em exércitos imbatíveis, o Fluminense no maior clube do Brasil, ou melhor, do mundo, ou melhor ainda, do universo.
São textos de um escritor e não de um analista.
Ele não fala jamais de táticas ou esquemas. Seu tema são as paixões, as
vitórias e derrotas pessoais, as tragédias, as sinas. Nelson Rodrigues mostrava
algo além de como foi a partida. Mostrava sua estrutura épica, suas qualidades
dramáticas. Para ele tudo era obra de um destino escrito "6.000 anos
atrás" e sempre havia "lágrimas de esguicho", fossem de alegria
ou tristeza. Como ele mesmo dizia: "Ai daquele que não consegue ser jamais
ridículo". Não é à toa que é o nosso melhor cronista esportivo de todos os
tempos.
Este livro, organizado por Nelson Rodrigues Filho, tem algumas diferenças em relação às coletâneas anteriores publicadas pela Companhia das Letras e organizadas por Ruy Castro. Sua seleção traz apenas, ou quase apenas, crônicas relativas ao Fluminense. Ou seja, aqui não estão as melhores crônicas de Nelson, mas as mais apaixonadas. Nestes textos ele usa ainda mais hipérboles, adjetivos e metáforas do que seu leitor está acostumado. Falando apenas de seu time ele é ainda mais exagerado, ainda mais barroco.
Este livro, organizado por Nelson Rodrigues Filho, tem algumas diferenças em relação às coletâneas anteriores publicadas pela Companhia das Letras e organizadas por Ruy Castro. Sua seleção traz apenas, ou quase apenas, crônicas relativas ao Fluminense. Ou seja, aqui não estão as melhores crônicas de Nelson, mas as mais apaixonadas. Nestes textos ele usa ainda mais hipérboles, adjetivos e metáforas do que seu leitor está acostumado. Falando apenas de seu time ele é ainda mais exagerado, ainda mais barroco.
Porém, há alguns senões. A seleção de textos
poderia ser mais severa e a divisão em temas ("torcida e dirigentes",
"jogadores e técnicos", "títulos e personagens") acaba
gerando uma leitura um tanto cansativa, pois crônicas sobre um mesmo assunto
acabam ficando muito próximas. Além disso alguns pés de página com informações
sobre as partidas e os campeonatos citados poderiam ser interessantes para que
soubéssemos se Nelson Rodrigues errou ou não em suas previsões.
Ou talvez não. Vai ver é como ele mesmo diz: "Será que os imbecis não percebem o óbvio, isto é, que um estilista só tem deveres literários?".
Ou talvez não. Vai ver é como ele mesmo diz: "Será que os imbecis não percebem o óbvio, isto é, que um estilista só tem deveres literários?".
Nelson Rodrigues. Eis aí uma leitura obrigatória e espetacular. Na crônica esportiva ele foi maravilhosamente bem, mas suas crônicas em "Memórias" parecem ser melhores, ou, por outra, no mesmo alto nível. A crônica sobre o nascimento de sua filha, por exemplo, é... bem, faltam-me palavras ou elogios. Simplesmente épico!
ResponderExcluirAinda temos muito o que aprender sobre o Nelson Rodrigues.
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