Que ele é fanático por futebol todo mundo sabe há muito
tempo. Futebol jogado nas peladas, futebol de botão, futebol nas arquibancadas,
futebol em todo lugar...Mas Chico Buarque, o “dono do Polytheama”, a equipe que
ele criou para jogar com os amigos na própria casa, também adorava (ou ainda
adora) escrever sobre o futebol que tanta nos encanta. Em 1998, na Copa da
França, Chico foi cronista de um jornal. E naquele mês em que o país
praticamente para por aqui, Chico estava a mil por hora pelas ruas de Paris.
O que imaginar de um encontro entre Chico Buarque e
Tostão, dois craques, cada um na sua arte, mas ali, durante a Copa, travando um
diálogo histórico sobre um craque do passado chamado Canhoteiro?
O resultado Chico descreveu na crônica abaixo, extraída
do livro “Donos da Bola” (Língua Geral, organização Eduardo Coelho, 2006). Um
texto imperdível. Como também é imperdível a extensão dessa mesma história na
versão de quem convenceu Chico a escrever crônicas durante a Copa, o escritor
Mário Prata, o “Pratinha”, e suas incríveis histórias. Vale a pena acessar os
dois links abaixo, após a leitura da crônica de Chico...
Com os meus botões
Por Chico Buarque
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Canhoteiro |
Tostão me perguntou meses atrás, aqui mesmo em Paris, se
o futebol do Denílson lembrava o Canhoteiro (ponta-esquerda do São Paulo que só
eu vi jogar, na década de 50). Vinda de quem vinha, aquela pergunta me
paralisou.
Fiquei postado na praça, sem raciocínio, olhando para o Tostão. Se
bem que, quando topamos um craque de bola no meio da rua, vestido à paisana,
andando como a gente anda, falando como a gente fala, nós, amadores, sempre nos
atrapalhamos. Viramos idiotas.
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Chico Formiga, ex-técnico do Santos, que morreu no dia 22/05/2012. |
Certa vez fui apresentado a um antigo centromédio do
Santos, o Formiga. Depois de um breve diálogo, o assunto esgotado, sem saber
por que continuei a encará-lo.
O silêncio se prolongava, incômodo, e ainda
encasquetei de colocar a mão no ombro do Formiga. Com o polegar, comecei a
pressionar de leve a sua clavícula, e me lembro que ele ficou um pouco
vermelho.
Então me dei conta de que, pela primeira vez na vida, conversava
pessoalmente com um botão. Formiga tinha sido um dos meus melhores botões,
apesar de meio oval, um botão de galalite, vermelho.
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Chico Buarque jogando botão com Vinícius de Moraes. |
Na minha mesa, Tostão não chegou a ser botão. Eu já era
bem crescido quando ele apareceu, e fica um pouco ridículo fazer botão de um
jogador mais novo que você. Botões, para a garotada daquele tempo, eram
venerados como ícones, beijados, polidos na flanela, concentrados em caixa de
charuto e inegociáveis. Pois bem, vi o Tostão deslizar nos gramados e, sem
querer desmerece-lo, era mesmo um homem com braços e pernas. Nem por isso há de
nascer um centroavante que se lhe compare, como nunca haverá ponta-esquerda
semelhante ao Canhoteiro, que só eu vi jogar. Desde já discordo de quem,
concordando comigo, sustente que o futebol era muito mais bonito no passado.
Ao contrário de nós mortais, que éramos todos mais
bonitos no passado, os craques do passado são ainda melhores hoje. Penduraram
as chuteiras, mas na permanente edição da nossa memória vão produzindo novos
lances memoráveis. Posso vê-los sempre de uniforme, uniformes diferentes uns
dos outros, num vestiário com o teto cheio de chuteiras penduradas. Reúnem-se
em torno do técnico, ouvem a preleção em silêncio, mas não prestam muita
atenção. Dispensam alongamentos, entram em campo e já começam a jogar. Não dão
entrevistas. Não fazem cera, não atrasam a bola, não cobram lateral, não ficam
na barreira, faz cada qual o que lhe dá na telha. E no entanto exibem um belo
conjunto, mantendo-se invictos há anos e anos, mesmo porque contra eles não há
quem se atreva a jogar. Me vendo de boca aberta, naquela tarde gelada, o Tostão
não fazia ideia dos gols que continua a marcar dentro da minha cabeça.
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Denilson |
“Ele te lembra o Canhoteiro?”, perguntava o Tostão, e de
cinco em cinco minutos a pergunta me rebate no ouvido como um gongo, enquanto
vejo o Brasil jogar no Stade de France, sem Denílson.
Há o grande Rivaldo, seu
estilo de ema, há o nosso Ronaldinho, de quem tudo o que se diz não basta, e há
um oco.
Sim, a ausência do Denilson agora me lembra exatamente o Canhoteiro,
cuja camisa Zagallo usurpou na Copa de
1958, privando o planeta de ver o que só eu via.
Estamos no segundo tempo,
Brasil e Escócia um a um, e já me pergunto se, barrando o Denilson, Zagallo não
pretende barrar o Canhoteiro de novo, quarenta anos depois.
Maldade minha, claro, pois eis que o Denilson entra em
campo, recebe a bola rente à lateral esquerda, passa zunindo por dois escoceses
e toca para o meio, de calcanhar.
A jogada foi bem em frente à minha cadeira,
permitindo-me ver até o branco dos olhos do Denilson, e não direi o que se
passou naquele instante com a fisionomia dele.
Não direi de que quem era a
figura que vi num relance, vestindo a camisa 19, porque nem eu próprio acredito
nessas coisas. Mas alguma coisa os escoceses também viram, e ali se
assombraram, e se atarantaram, e perderam a pouca cor que têm, e bateram
cabeças entre si e fizeram um gol contra.
É um garoto, o Denilson, e imagino o que será seu futebol
daqui a mais ou menos trinta anos, quando estarei abarrotado de memórias. Seu
drible na corrida, calculo que possa chegar a algo como a velocidade do TGV
Paris-Nantes, embora jamais à do Canhoteiro. Babando de antemão, me vejo a
lembrar o Denilson adiantando a bola na medida certa, feito isca, para surrupiá-la
do bico do pé do beque. Verei o Denilson em nova arrancada, como quem corre num
parque, e a bola que corre serelepe ao seu lado, quase latindo. Verei o
Denilson desviando a bola sem tocá-la, talvez com um assobio – ele tem boca de
assobiador. Verei o molejo dele, trançando as pernas diante do próximo
adversário, e, de repente, hei de ver o drible de corpo. O drible de corpo é
quando o corpo tem presença de espírito.
Se eu fosse menino, faria do Denilson um senhor botão. De
tampa de relógio, acho.
Olá,
ResponderExcluirAchei essa postagem enquanto procurava conteúdos relacionados ao Chico. Muito bacana!
Abraços,
Zuza Zapata
www.zuzazapata.com.br