![]() |
Affonso Schmidt |
Ele foi um grande nome da literatura brasileira e como
alguns de seus pares admirava o esporte. Afonso Schmidt, jornalista, contista,
romancista, dramaturgo e ativista anarquista teve mais de 40 livros publicados
até a sua morte, no ano de 1964. Nascido na cidade de Cubatão, no litoral
paulista, no ano de 1890, foi fundador do jornal Vésper. Na capital paulista,
trabalhou nas redações de importantes periódicos da época como A Plebe e A
Lanterna, ao lado de figuras lendárias do movimento anarquista brasileiro como
Edgard Leuenroth e Oreste Ristori. Trabalhou ainda nas redações dos jornais O Estado
de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Ligado às causas operárias, fundou no Rio de
Janeiro outro jornal, Voz do Povo, órgão da Federação Operária.
Por essa luta, acabou preso diversas vezes.
Realizou
diversas campanhas contra o fascismo por intermédio de seus livros, peças
teatrais e, principalmente, artigos que escreveu aos montes para diversos
jornais brasileiros.
Mas você, leitor, pode estar se perguntando o que Afonso Schmidt
tem a ver com o esporte?
E a resposta é simples.
O Literatura na Arquibancada
também se surpreendeu com dois verdadeiros “achados” sobre a ligação de Schmidt
com o esporte.
O primeiro deles, a descoberta de um texto que o autor
fez especialmente para uma das revistas mais importantes na década de 40, o
Almanaque Esportivo Olympicus, editado pelo consagrado jornalista Thomaz
Mazzoni.
Nele, o autor descreve a ligação do esporte com a poesia, com o
encanto do poeta que era.
![]() |
Edição nº 25 de O Cruzeiro, de 23/06/1971. |
Mas o que realmente deixará você, leitor, surpreso é saber
sobre a ligação de uma obra histórica escrita por Afonso Schmidt, a melhor segundo
ele mesmo, com nada menos do que o Rei do Futebol, Pelé.
Começamos reproduzindo o belo texto de Schmidt no Almanaque
Esportivo Olympicus, publicado na edição ano 1947-1948.
Esporte e Poesia
Por Afonso Schmidt
“O esporte não vale apenas pelo movimento mas,
principalmente, pelo ritmo. Ele faz no plano material o que a arte faz no plano
espiritual: põe o homem em harmonia com a beleza que o cerca. A repetição de um
gesto ao infinito, mesmo com o auxílio de elásticos, alteres e outros
aparelhos, não nos dá, só por si, o enrijamento dos músculos e a pureza
clássica das linhas. Se assim fosse, o cavouqueiro, o lenhador, o andarilho e o
almocreve seriam sempre fortes, belos e amáveis.
O esporte se distingue pelo intuito, isto é, pelo
pensamento e pela emoção. Na antiguidade, tornara-se difícil apartá-lo da
religião e da arte. As danças rituais e os torneios, o transporte do fogo
sagrado, a representação dos mistérios, ou os combates no Circo participaram de
ambas.
Se o homem foi feito à semelhança do seu Criador,
restituir-lhes as formas primitivas, consagradas pelos artistas plásticos, e
embelezá-las com as graças da força e da saúde é um desejo de aproximação com a
Divindade, tão respeitável como a prece e a vida austera dos anacoretas. No
esporte, há o afastamento dos prazeres que alegram o homem comum. Essa renúncia
em nome da beleza é a mais alta flor da nossa espiritualidade.
Para certos povos da Ásia, o esporte exclui movimento.
Seus atletas, que são os yoguis, sentam-se sobre as pernas cruzadas, apoiam as
mãos no joelho e exercitam a vontade, como nós fazemos com o corpo físico.
Batem recordes de imobilidade, como os nossos rapazes batem recordes de
velocidade.
Passam uma estação inteira com um braço erguido para o céu, até o
braço secar.
E nessa postura ficam tão semelhantes a troncos de árvores que as
aves, tão ariscas, vem pousar sobre seus ombros.
Mas o importante para o esporte é aquilo que o cerca. No
fundo de uma mina, no salão enfumaçado de um bar ou na escuridade úmida de um
porão torna-se difícil conceber esporte. É preciso ar, claridade, liberdade,
cenários adequados. O rio, a estrada, o campo, a praia, o estádio, a piscina, o
velódromo, o autódromo, o céu e, principalmente, muito sol e muito azul.
Tudo isso está impregnado de um elemento sutil sem o qual
os movimentos não obtêm o necessário ritmo e o espírito do atleta não alcança a
desejada harmonia. Esse elemento misterioso tem recebido vários nomes, tem sido
designado por várias expressões, mas em falta do melhor, nós o chamaremos de
poesia.
É a poesia que conclama os moços para os campos, arenas e
piscinas. É ela que lhes incendeia a alma e lhes multiplica as forças. É ela
que lhes mitiga a sede, que estimula as energias, que abranda o cansaço e que
pede sempre esforço maior, até a vitória final.
Sem poesia, o esporte perde o encanto que arrebata as
multidões. Um jogo de futebol ou uma competição de nadadores seriam assistidos
por meia dúzia de pessoas – as mesmas que estacam no caminho para ver soldar um
trilho, ou para ver diversos homens, enxada na mão, a cavarem o leito de uma
estrada”.
Entre os vários livros publicados por Afonso Schmidt
existe um que o próprio autor considerava o melhor.
“A Marcha - O romance
da abolição”, recebeu em 1942 o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras. Na obra, Schmidt
descreve as dificuldades vividas pelos escravos e, principalmente, a
contribuição deles para a riqueza paulista.
Revelou ainda a organização e o
trabalho dos abolicionistas e como a campanha destes chegava até as fazendas de
café “de onde os escravos fugiam, aos bandos, tomando o caminho de Santos, rumo
ao quilombo do Jabaquara”.
O aspas é de
um artigo encontrado pelo Literatura na Arquibancada no espetacular site http://www.novomilenio.inf.br/
.
É neste site também que encontramos a incrível história do primeiro
filme de longa-metragem feito pelo ator Edson Arantes do Nascimento.
Pelé já
participou de quase 20 filmes e documentários, entre eles, Isto é Pelé, 1974;
Fuga para a Vitória, 1981; Os trapalhões e o rei do futebol (1989) e Pelé
Eterno (2004).
sobre o primeiro filme de Pelé, em 1962.
Mas até hoje, jornalistas e o próprio Pelé não mencionam
a produção do filme “A Marcha”, dirigido e produzido por Osvaldo Sampaio em
1971. O filme foi inspirado no romance de Afonso Schmidt e contava com o rei do
futebol contracenando com atores famosos como Paulo Goulart, Nicete Bruno,
Rodolfo Mayer e Verah Sampaio. Pelé atuou encarnando o personagem Chico Bondade
“o escravo abolicionista que luta
para salvar os seus irmãos de cor do grilhão da escravatura”.
Abaixo, a sinopse do filme encontrada no site: http://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult063y.htm
“A Marcha passa-se num período
que se estende de novembro de 1887 a março de 1888. Sua ação - verídica
historicamente, romanceada em seu desenrolar dramático - concentra-se na cidade
de São Paulo (capital) e na então Província de São Paulo (interior), e em
locais e lugares como: Estação da Luz, Largo de São Gonçalo, Teatro São José
etc., que sobrevivem ainda na memória de gerações passadas, de homens e netos
paulistas. É uma reconstrução de hábitos e costumes de uma época em que todas
as classes, sem distinção de cor, credo religioso ou posses, lutaram pela
libertação da escravatura no Brasil.
A Marcha é uma
adaptação-livre do livro homônimo de Afonso Schmidt. É uma síntese de como o
povo brasileiro - e em especial o paulista - resolve seus problemas sociais,
sem lutas fratricidas ou derramamento de sangue, com que, com amor e
simplicidade, à maneira brasileira, sadia e boa, foram perpetuados todos os
nossos eventos.
No pórtico-de-introdução ao
filme, define-se, em seu desenrolar-romanceado, essa evidência histórica:
O nome Boaventura (Paulo
Goulart) e de Chico-Bondade (Edson Arantes do Nascimento - Pelé), segundo as
crônicas da época, eram perigosos abolicionistas. A eles cabia o desempenho de missões que
exigissem longa e cuidadosa dissimulação. No caso de Boaventura, seu nome já
era quase lendário. Senhor de vários nomes e inúmeros disfarces, conhecedor de
vários ofícios, aceitava freqüentemente a tarefa de embarcar para o interior e
infiltrar-se nesta ou naquela fazenda. Conseguia trabalho com facilidade e,
apenas entrado na fazenda, começava a obra de propaganda entre os pretos.
Depois era o trabalho silencioso de dias, de meses. Certa manhã,
inesperadamente, o fazendeiro acordava com a senzala amotinada, e a partida, em
massa, dos escravos para terras onde mais fácil se tornava a conquista da
liberdade.
Por essas alturas, já o
Boaventura havia feito uma madrugada a fim de fugir
às iras do patrão. Voltava a São Paulo, passava, disfarçado numa nova
identidade, alguns dias no Consistório da Igreja dos Remédios, em conspiração e
planos secretos, na casa de Antônio Bento, ou escondido nos diversos ninhos de
caifazes e depois, de um dia para o outro, partia para zona distante, a fim de
repetir a façanha em nova fazenda.
Em torno de Boaventura e de
Chico-Bondade ou Antônio-Paciência corria uma lenda com ressaibos de mistério.
Duvidava-se até de sua existência. Afirmavam alguns escravagistas que eles não
existiam, eram um mito apenas, criado pelos abolicionistas. Outros, poucas
pessoas, e entre elas Antônio Bento, estavam ao par de sua verdadeira
identidade" (A Marcha, de Afonso
Schmidt)”.
Mas o mais interessante em tudo isso é saber que o filme,
feito com Pelé e inspirado na obra de Afonso Schmidt, tenha causado
repercussão negativa entre os familiares do escritor. E, quem sabe, talvez
exatamente por essa polêmica, Pelé não faz questão de incluí-lo na lista de seus
desempenhos como ator.
![]() |
Carta cedida ao site Novo Milênio, em 19/3/2008 pelo filho do escritor, Aldo Schmidt. |
O fato é que o site Novo Milênio (http://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult063y2.htm) obteve a carta enviada pela irmã do
autor, Maria Clara Schmidt, ao jornal Folha de S. Paulo:
São Paulo, 1º de junho de 1971.
Prezado Senhor
Redador-chefe da Folha de São
Paulo
Saudações
Venho, por meio desta, lançar um protesto contra uma
reportagem publicada na "Folha" de hoje, sobre a filmagem de um
romance de meu irmão o falecido escritor Affonso Schmidt. Essa reportagem,
entre outras cousas, diz que a "Marcha" é uma obra incompleta de
Affonso Schmidt, o que não é verdade. A "Marcha", Sr. redator, é um
romance histórico completo, sua obra preferida e que foi premiada pela Academia
Brasileira de Letras, em 1942, com o prêmio Machado de Assis.
A reportagem diz que o sr. Oswaldo Sampaio, diretor do
filme, não seguirá o romance. Precisará seguir, sim, pois de modo nenhum
queremos e consentiremos que a obra de meu irmão seja deturpada e que sua ideia
e pensamento sejam desrespeitados por ninguém.
Sei perfeitamente que precisa
haver uma diferença entre o livro e o filme mas, tudo isso, dependendo da
autorização dos herdeiros do escritor.
Até este momento, por incrível que
pareça, os filhos de Affonso Schmidt não foram procurados pelo dito Sr.
Oswaldo, por ninguém por ele e nenhuma autorização lhes foi pedida para ser
feito esse filme.
Ainda agora, quando o escritor Ferreira de Castro esteve
no Brasil, contou à "Manchete" que um seu livro ia ser filmado, já
havia dado autorização para isso, mas, quando viu a porcaria que estavam
fazendo, cancelou imediatamente a licença.
O Sr. Oswaldo Sampaio não quis saber de nada: contratou
atores, escolheu local, deu entrevistas, só não se lembrou de perguntar a
opinião dos filhos e família do escritor sobre isso. Foi uma triste surpresa
para nós ao lermos a "Folha" (justamente a "Folha"!) Sr.
redator e depararmos com essa reportagem fajuta (desculpe). Peço-lhe desculpas
por estar me dirigindo ao Sr. mas, pode crer, ficamos aborrecidíssimos com tudo
isso (pela milha letra o Sr. poderá avaliar), mas temos razão: quando é
levantada a cortina de silêncio colocada em torno do nome de Affonso Schmidt e
de sua obra, já sabemos que vamos sofrer. Isso tudo é muito triste. Lançarem
mão de uma obra premiada e histórica, dizerem que ela é uma obra incompleta,
apoderarem-se dela e agirem como se estivessem em plena terra de ninguém.
Estou protestando por ter ficado muito triste e revoltada
com a reportagem da "Folha", mas quero deixar bem claro que não nos
compete para filmagens e nem o contrato sobre direitos autorais: isto é
exclusivamente com os filhos do escritor falecido.
Ao terminar, quero dizer de nossa satisfação ao vermos
Pelé, o bem amado Pelé, trabalhando nesse filme.
Era a obra querida do autor e,
se fosse vivo, isso lhe causaria muita alegria, grande amigo e admirador da
raça negra, que era.
Esperando a fineza de uma retificação, muito grata,
M. Clara Schmidt
R. Caramuru, 346, Vila Mariana
- São Paulo
Literatura na
Arquibancada não conseguiu apurar se o filme teve exibição proibida ou
contestada pela família em juízo.
Mas como a própria irmã do autor do romance
inspirador do filme diz, Afonso Schmidt ficaria feliz de saber que o rei do
futebol foi protagonista de sua obra preferida.
E ainda mais, do esforço do rei
do futebol para encarnar o personagem criado por Schmidt encontrado no vídeo
abaixo.
Para saber
mais sobre Afonso Schmidt, Literatura na Arquibancada recomenda a leitura de
outro resgate espetacular do site Novo Milênio, a autobiografia do autor: http://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult063z.htm
E para quem é da Baixada Santista, no litoral paulista,
vale a visita no Acervo da Biblioteca Municipal de Cubatão onde está depositada
a Coleção Afonso Schmidt.
A relação do Rei Pelé com os movimentos de resistência à Ditadura Militar é algo que precisa ser estudado, na verdade, o Santos Futebol Clube em si se caracteriza pela ligação com pessoas próximas a luta pela defesa das minorias (torcedores). Recentemente documentos foram descobertos, no qual o Rei era investigado pelos milicos, justamente com vistas a esse seu viés esquerdista.
ResponderExcluir