É raro hoje, mas comum no passado. Ídolos de grandes
clubes brasileiros trocavam de camisas deixando um rastro de mágoa e decepção
entre torcedores fieis. Exemplos não faltam: Didi (Fluminense pelo Botafogo),
Romário (Vasco pelo Flamengo), Rivellino (Corinthians pelo Fluminense) e tantos
outros.
No jornalismo esportivo o fenômeno é idêntico. Imagine
hoje Galvão Bueno, locutor da TV Globo anunciar que está deixando a emissora
para seguir carreira em uma concorrente. No rádio esportivo também acontece o
mesmo.
Há 3 anos, mais exatamente, numa quarta-feira (25/04), uma das maiores estrelas do
rádio esportivo brasileiro, José Carlos Araújo, o popular “Garotinho”, anunciava
que estava deixando a Rádio Globo após 42 anos na empresa. Isso mesmo, quase meio
século trabalhando e deixando uma marca registrada impressionante no concorrido
mercado do rádio esportivo brasileiro. Mais do que isso, uma audiência
espetacular, nas narrações de jogos e no programa jornalístico da emissora
Globo Esportivo.
Não era a primeira vez que Garotinho deixava a emissora. Na
década de 1970 ele também trocou de casa, mas naqueles tempos estava apenas
começando na profissão. Há 3 anos, a mudança, segundo ele, não era por uma proposta
financeira, mas por “sentir falta de um desafio profissional”. Assinou com a “Esportes FM”, uma programação do Grupo Bandeirantes que chegou ao mercado dizendo cobrir 24 horas de esportes no rádio.
Três anos depois, o desafio agora é outro. Garotinho foi contratado para ser a voz das narrações da Rádio Tupi, do Rio de Janeiro. E o que é fantástico. Vai reeditar a dupla com outra fera, o comentarista Apolinho (detalhes dessa passagem mais abaixo).
Garotinho sabe muito bem o que é “desafio”. Na década de
1970 ele também tomou essa decisão, que para muitos, parecia ser uma loucura.
No livro, Os Donos do Espetáculo, Garotinho relatou em detalhes como tudo
aconteceu em sua carreira vencedora, mas também com alguns percalços
inesquecíveis, o maior deles, talvez, conseguir provar na justiça que o
verdadeiro Garotinho era ele, e não o ex-governador do Rio de Janeiro.
“O caminho encontrado pela Rádio Nacional para agitar o
mercado passou pela contratação de uma equipe composta por grandes estrelas do
jornalismo esportivo. Luiz Mendes, veterano das narrações do rádio e televisão,
deixou a TV Rio para assumir a função de comentarista, cargo que ocuparia
durante os onze anos seguintes de sua vida profissional. A dupla de repórteres
era a mais famosa do rádio esportivo carioca: Washington Rodrigues, o popular
Apolinho, e Denis Menezes. Mas sem dúvida a grande estrela da equipe era José
Carlos Araújo, uma das maiores revelações do rádio brasileiro. De uma hora para
outra, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, o rádio esportivo passou a
pagar salários milionários para seus principais integrantes: “Ganhava 8 mil cruzeiros na Rádio Globo e fui
para a Nacional ganhando 25 mil cruzeiros”, relembra Denis Menezes.
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Anthony Garotinho, o político. |
O chefe da equipe da Nacional, José Carlos Araújo, tinha
o salário mais alto. Em pouco tempo tornou-se uma máquina de vender anúncios.
Além do talento da voz, o narrador registrou uma marca em seu nome, fato que
gerou uma trombada de frente com um dos políticos mais influentes do Rio de
Janeiro.
José Carlos Araújo virou Garotinho porque desde 1964
tinha o hábito de chamar seus amigos de trabalho pela expressão que acabaria
sendo sua marca registrada: “Registrada
literalmente, porque registro tudo. Está lá no Inpi, como marca, na classe de
comunicação. Em 1980, 1981, Anthony [governador do Rio de Janeiro em 1998] foi
meu estagiário na Rádio Nacional. Copiava-me em tudo, até no apelido. Na década
de 1990, ele colocou a marca no registro civil. Agora toda a família é
Garotinho. Não bastasse isso, colocou uma ação na Justiça para me tomar a
marca, mesmo sabendo que era minha, e uma ação na Federal, contra o I.N.P.I,
para me proibir de usá-la. Perdeu as duas. O juiz da 17ª Vara Cível determinou
que ele deveria usar Anthony Garotinho, e só Garotinho, eu, na classe de
comunicação”.
Garotinho, o governador, pode não ter conseguido na
Justiça os direitos do uso da marca, mas tinha um aliado de peso nessa briga:
“Cedi o uso da marca porque o José
Roberto Marinho pediu para que eu permitisse o uso. Está usando até segunda
ordem”, decreta José Carlos Araújo, o autêntico Garotinho.
Para chegar ao comando da Nacional, Garotinho já havia
acumulado em duas profissões nove anos de experiência no rádio esportivo. É
fácil entender por que, além de locutor, José Carlos Araújo transformou-se em
um dos maiores “corretores” de anúncios do rádio brasileiro.
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Waldir Amaral (1º a dir.), ao lado de Garotinho. |
Em 1974, na eleição dos mídias de agências de
publicidade, faturou com tranqüilidade o título de melhor contato do Rio de
Janeiro. O responsável pelo sucesso tinha um nome: “Em 1968 fui convidado para ser o segundo narrador da equipe de Jorge
Curi, que trabalhava na Nacional. Disse ao Waldir Amaral, meu chefe na Rádio
Globo, que a grana era irrecusável, um bom ‘tutu’, inclusive porque iria me
casar em breve. Waldir disse literalmente assim: ‘Não vai não. Vou te dar uma
condição que você vai ter um acúmulo de salários e que com certeza vai superar
o que o Curi te ofereceu’. O Curi estava me chamando para ser o seu segundo.
Waldir então explicou: ‘Vou ser diretor comercial da rádio e vou te colocar
como meu contato na rádio’. Disse a ele: ‘Mas não entendo nada de venda’.
Waldir respondeu que também não entendia nada de comercial e que estava
assumindo a direção, e disse: ‘A gente vai aprender’”.
E como Garotinho aprendeu rápido! Em pouquíssimo tempo, o
modesto salário na Rádio Globo triplicou. Ainda assim, nessa fase, não poderia
sequer sonhar com o sucesso que iria ter no futuro, até porque sua preocupação
básica era garantir o sustento da família pobre. Até então, para sobreviver,
dava aulas de Geografia na rede estadual de ensino, além de ser repórter de O
Dia e da Rádio Globo. Era também setorista do Botafogo.
O início da carreira jornalística aconteceu muito cedo, e
fora da área esportiva. Em 1963 a Rádio Globo comprou a Rádio Eldorado, que
pertencia ao jornal O Estado de S. Paulo, e Garotinho foi contratado
como locutor comercial da rádio: “Meu
sonho desde os seis anos sempre foi ser locutor esportivo, tanto que
‘transmitia’ partidas de futebol de botão entre os amigos. Com a compra da
Eldorado pela Globo, procurei o Celso Garcia, da direção da Rádio Globo, e que
eu já conhecia. Com quinze anos eu já havia sido repórter de jornalismo na
rádio Continental, mas futebol ninguém deixava eu fazer. Ganhava 3 mil
cruzeiros, que era praticamente todo o sustento de minha casa.
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Divulgação nos jornais das transmissões de Waldir Amaral. |
Na Globo, Waldir
Amaral me deu a chance sonhada, só que comecei como plantonista, rádio-escuta,
ouvindo e apurando os jogos mais inexpressivos da rodada do campeonato carioca.
Nisso pintou uma vaga de repórter, e a primeira transmissão foi a de um jogo de
basquete da Seleção Brasileira.
Por causa de minha baixa estatura, entrevistar
os gigantes do basquete era uma dificuldade. Acabei ganhando o apelido de
‘palito engomado’, pesava 52 quilos e media 1,67 metro.
No futebol a estréia
estava marcada para o dia 1° de abril de 1964, na partida entre Fluminense e
Bangu.
Ou seja; não estreei, estourou o golpe”.
José Carlos Araújo passou os quatro anos seguintes
trabalhando como repórter e locutor, mas fazendo apenas jogos preliminares, de
juvenis, até aparecer o convite de Curi, da Nacional. A decisão de continuar na
Rádio Globo não poderia ser mais acertada. Garotinho passou a ser o principal
contato comercial da rádio, pois atendia o maior cliente da emissora, a Brahma.
Ganhou dinheiro como nunca, além de tornar sua voz admirada e uma das mais
conhecidas do rádio esportivo.
O sucesso de Garotinho era tão grande, que em 1977
decidiu aceitar a proposta da Rádio Nacional para comandar o esporte da
emissora, que dava apenas traço no Ibope. Essa decisão acabou causando uma
confusão enorme, além de transformar-se em uma de suas maiores decepções na
longa carreira profissional: “Lembro
até hoje que sai do prédio da Rádio Globo e chorava feito criança na calçada.
Fui impedido de
trabalhar na Globo e em outras emissoras concorrentes. Era locutor de carteira
assinada e tive de pedir meus direitos na Justiça. Eles recorreram, alegando
que eu estava enquadrado na ‘lei do artista’, manipularam o Tribunal Superior
do Trabalho. Depois de muitos anos do processo tramitando em Brasília eu teria
de pagar uma indenização monstro, cujo dinheiro não tinha. Minha sorte era que
o advogado do Dr. Roberto Marinho era meu amigo de infância e pediu a revisão
dos cálculos. Só sei que 1 milhão virou algo muito pequeno, que pude pagar”.
Garotinho tinha também razões mais fortes para não estar
feliz em um momento de ascensão profissional: “A maior tristeza que tive em minha vida foi a morte de meu pai, um mês
antes de eu estrear na Rádio Nacional. Ele estava com câncer, 60 anos de idade.
Minha mãe não queria de jeito nenhum que eu deixasse a Globo, onde estava completando
quatorze anos de trabalho”.
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Garotinho e Luiz Mendes, amigos desde os tempos da Nacional. |
A troca da poderosa Globo pela decadente Nacional parecia
mesmo ser uma escolha maluca. Mas Garotinho não suportava mais o estilo
“quadrado” dos programas da Rádio Globo. Na Nacional, passou a fazer os
programas praticamente ao vivo, com repórteres trazendo a notícia quente, sem
boletins pré-gravados, gelados; sem falar nas transmissões, nas quais tinha
liberdade total para fazer jogos, de qualquer modalidade, no horário que bem
entendesse, desde que entrasse dinheiro para a emissora.
Garotinho sabia que sozinho, em uma emissora
desacreditada, não conseguiria alcançar resultado algum. A saída foi montar uma
equipe forte, gente da própria equipe da Globo: “Decidi montar uma empresa chamada Radialistas Associados, que era
formada por mim, Luiz Mendes, Denis Menezes e
Washington Rodrigues. Não éramos funcionários da Nacional, mas prestadores de
serviço. Nos primeiros anos, pelo menos até 1981, eu dividia o faturamento da
publicidade, 25% para cada um. Garanto que era muito mais do que ganhavam como
assalariados na Rádio Globo”.
Tudo no rádio esportivo começava a funcionar como uma
grande estratégia de marketing. O nome de um locutor famoso era a senha para
atrair grandes anunciantes, e o círculo se fechava.
Nesse mesmo período, José Silvério, da Jovem Pan, tinha
apenas 32 anos e recebia 60 mil cruzeiros por mês; Haroldo Fernandes, 47 anos,
da Tupi, 40 mil mensais; José Italiano, da Rádio Gazeta, 30 mil, mas com as
comissões que recebia em publicidade chegava a 100 mil cruzeiros.
No Rio de Janeiro, Waldir Amaral, chefão da Rádio Globo,
que afirmou a Garotinho que aprenderia tudo sobre comercial, aprendeu rápido e
chegou a receber 1% do faturamento geral do sistema Globo de Rádio. Roberto
Petri, chefe de departamento de esportes da TV Gazeta, afirma que atrás das
câmeras jornalistas tinham a permissão da emissora para vender cotas de
patrocínio dos eventos esportivos: “Peruzzi
ficava com 80%, e o restante da equipe com 20%”.
Era tanto dinheiro no mercado, que muitos profissionais
famosos também ganhavam com o que ficou conhecido como “a indústria da diária”,
prática que permitiu que gente importante realizasse alguns de seus sonhos de
consumo: “Comprei meu primeiro
apartamento com talões de traveler’s checks
que recebia da Rádio Globo”, relembra Garotinho”.
José Carlos Araújo, também reconhece que por muito pouco
não colocou tudo a perder na carreira jornalística quando ficou seduzido em
participar da campanha política de um certo político brasileiro:
(...)
“O problema era quando se tomava o barco errado. Em 1984,
enquanto Osmar Santos ficaria do lado “dos mocinhos”, outra estrela da imprensa
esportiva por pouco não colocou tudo a perder em sua carreira: “Eu estava na rádio Nacional quando minha
empresa foi contratada para fazer a campanha de Paulo Maluf à presidência da
República. A campanha ficou conhecida como ‘Brasil esperança’. Financeiramente
eu ganhei muito dinheiro, mas profissionalmente acho que fui induzido a aceitar
pelos que me dirigiam em Brasília, na Radiobras. Embora eu fosse apenas
prestador de serviços na Rádio Nacional, senti-me pressionado a aceitar o
convite. Foi o maior erro da minha vida”.
José Carlos Araújo tem toda a razão. Apesar da
dinheirama, o popular Garotinho ganhou o rótulo de malufista porque durante
suas narrações, no momento do gol, entrava uma vinheta sonora que dizia:
“Malufa... Coração”. Garotinho assume o erro e relembra que o assédio político
não parou por aí, só que ele conseguiu se safar: “A segunda roubada da qual consegui escapar foi de não me filiar à Arena
[Aliança Renovadora Nacional, partido do governo]”.
Para saber mais sobre José Carlos Araújo, o Garotinho,
Literatura na Arquibancada recomenda a biografia lançada em 2009, pela editora
Maquinaria, “Paixão pelo rádio”, escrita por Rodrigo Taves.
Tem gente que nasce com estrela para determinada atividade. Eles largam um bom trabalho no auge do sucesso, apenas para enfrentar um desafio em outro lugar e superar algumas dificuldades. O desafio pesa mais que qualquer outra coisa.
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