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Mascotes Londres 2012 |
Às vésperas da realização de mais um Jogos Olímpicos,
atletas do mundo inteiro estão nos últimos preparativos para a maior e mais
antiga competição esportiva do planeta. Há mais de 100 anos, os melhores atletas
representantes de centenas de países de todo o planeta estarão em Londres para
a realização de um verdadeiro sonho. Para poucos, a consagração. Para a grande
maioria, a superação.
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Equipe brasileira de Ginástica. |
No caso dos atletas brasileiros a busca por uma medalha
se torna ainda mais dramática devido aos problemas estruturais que o país tem
em praticamente todas as modalidades. Ser vencedor, portanto, pode ter outro
significado para os 250 atletas que devem ir à Londres, número estimado de
brasileiros que devem participar dos Jogos.
Portanto, não voltar com uma medalha no peito, o mais
provável, pode trazer a homens e mulheres, valores e consequências
completamente distintas, dependendo da formação que cada um teve ao longo de
sua trajetória como atleta e pessoa.
No texto abaixo, a psicóloga do esporte, Dra Katia Rubio,
traz uma reflexão interessantíssima sobre “o peso de ser olímpico”.
De suas palavras, uma definição é exemplar: “Para
muitos ser olímpico é um peso demasiado, incapaz de ser suportado em uma
existência comum. Não há explicação possível para uma vida monocromática quando
se chegou tão perto do brilho celeste”.
O peso de ser
olímpico
Por Katia Rubio
Há quase 20 anos estudo a história de vida de atletas
olímpicos brasileiros.
Fui atraída para esse tema por perceber a relação dessa
figura espetacular com o mito do herói, resultando em minha tese de doutorado.
Para tanto mergulhei no estudo da mitologia com Eliade e Campbell, sem falar em
Junito Brandão, nas estruturas do imaginário de Gilbert Duran, de Castoriadis e
de Anzieu, e claro na leitura que a Psicologia Analítica faz com apurada
sensibilidade aproximando psicologia e mitologia.
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Joaquim Cruz |
Aquela pesquisa me fez buscar na sequencia os medalhistas
olímpicos brasileiros, afinal eles se transformaram em fonte de inspiração e
projeção para muitas crianças e jovens que sonhavam em ser atletas.
E assim
pude ouvir histórias maravilhosas, singulares e emocionadas de pessoas como
Joaquim Cruz, que não poupou esforço nem tempo para me conceder 8 horas de
entrevista, que começou em São Paulo e acabou no Rio de Janeiro; a persistência
de Tetsuo Okamoto e Manoel dos Santos que nadavam em uma época que não existia
piscina aquecida e muitos treinos eram realizados com a água a 13º no inverno;
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Jackie Silva |
a coragem de Jackie Silva que lutou pelo que achava justo
e por isso teve que sair do país para depois voltar e ser a primeira medalhista
de ouro da história brasileira; a saga de Rogério Sampaio e Aurélio Miguel na
luta pelo direito de treinar e competir sem ter de se curvar aos desmandos
institucionais, enfim, não há história olímpica que não seja repleta de
atitudes de coragem, que só fazem reforçar a condição heroica do atleta.
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Adhemar Ferreira da Silva |
Estudar a trajetória de quem foi medalhista olímpico me
proporcionou a condição de entender o perfil do atleta brasileiro naquilo que
se refere a superação dos limites individuais e sociais. Isso porque chegar à
conquista de uma medalha não é apenas expressão de talento pessoal excepcional,
porque muitos gozam dessa condição, mas é estar no lugar certo, na hora certa
para usufruir de algum tipo de estrutura que permite que esse talento se
desenvolva. E talvez esse seja o quesito fundamental para a manifestação do
talento que alguns chamarão de motivação, outros de garra e mais alguns de determinação.
Ou seja, equilibrar essa disposição pessoal com as condições do meio para que
ele se desenvolva é um misto de natureza e cultura.
O final da pesquisa com os medalhistas me levou a uma
nova investigação.
Dessa vez meu foco eram as mulheres olímpicas brasileiras
que embora debutaram em Jogos Olímpicos em 1932 só foram conquistar as
primeiras medalhas em 1996.
A questão central da pesquisa era: o que aconteceu
ao longo dessa trajetória?
Depois de passar dois anos entrevistando as atletas
olímpicas entendi que ali havia outra questão paradigmática: eu comecei a ouvir
o discurso de quem perdeu.
Os medalhistas me contavam histórias às vezes tristes, às
vezes dramáticas, mas todas elas tinham um final feliz. As mulheres, por sua
vez, me contavam tudo isso também e várias delas, quando estavam prestes a
abraçar seu sonho, o via escapar por entre os dedos.
E ali comecei a atentar
para a derrota. Ao final dessa pesquisa entendi que era preciso buscar a
história de todos, independentemente do sexo, idade ou classe social, afinal há
muito mais derrotados na história do esporte do que medalhistas.
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Silvina das Graças Pereira: fez parte da equipe de atletismo brasileiro nos Jogos Olímpicos de 1976 e hoje, líder comunitária no Rio de Janeiro. |
E então, nos últimos dois anos, busco pelos atletas
olímpicos brasileiros de todos os tempos. Já foram algumas centenas de
entrevistas e há ainda outras centenas mais para chegar ao fim. Muitas
histórias, muitas angústias, tragédias, tristezas e frustrações foram ouvidas
ao longo desses anos.
E por mais que eu e todos os membros do grupo que se
aventuram a colher essas narrativas tenhamos nos preparado para ouvi-las, em algumas
situações ficamos com uma impressão, um gosto amargo de desgosto ao final da
entrevista e muitas vezes não sabemos dizer por que.
Já tentei de diferentes
maneiras explicar essa sensação, usando para isso, inclusive a teoria da contratransferência,
porque invariavelmente essa impressão surge após uma história incolor, inodora
e insípida. Claro que não me conformava com esse tipo de impressão, afinal,
ninguém chega aos Jogos Olímpicos sem ter para isso algum talento.
Essa semana, porém, acredito que encontrei uma resposta
para esse incômodo que todos do grupo já sentiram em algum momento.
Depois de
entrevistar mais um atleta que foi aos Jogos sem conseguir um resultado
expressivo e observar sua trajetória, sua vida após essa experiência e suas
expectativas no presente em relação ao futuro, ficou claro que tudo aquilo
aconteceu sem que ele tivesse controle, sem que tivesse planejado ou até
desejado realiza-lo.
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Erlon Souza e Ronilson Oliveira, destaques brasileiros na canoagem. |
Ou seja, ele treinava sim, ele competia sim, mas
diferente de outros para quem viver a aventura olímpica era uma questão vital,
esse atleta foi pego de surpresa por uma daquelas artimanhas que te põe no olho
do furacão sem que você soubesse ao menos o que era uma chuva. E então, num
estalar de dedos uma vida simples e sem muitos solavancos se torna uma montanha
russa em que o controle do carrinho está nas mãos de alguém a quem não se sabe
nem o nome.
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Mauro Vinícius da Silva, o "Duda", revelação do atletismo brasileiro. |
E de um ilustre desconhecido o sujeito se torna a
celebridade da cidade, assediado pela imprensa local e nacional, que tem que
responder a questões que dizem respeito a sua vida e seu futuro e para quais
ele nunca ousou construir uma resposta.
Levado por aquele tsunami é preciso
então se preparar para falar, para vestir o uniforme certo, para treinar,
competir e ganhar, porque assim todos passam a desejar e exigir… mas, até tão
pouco tempo atrás a vida era só treinar… como fazer com tudo isso?
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O salto de ouro de "Duda", no mundial indoor de atletismo, na Turquia. Crédito: Matt Dunham/AP |
Chegam então os JO e vive-se uma experiência momentânea
que se eterniza. Durante uma tarde, três jogos, tudo aquilo se apaga como as
velas de um bolo de aniversário após se cantar o parabéns, anunciando o final
de uma festa deseja há muito. E aquela derrota faz a vida voltar ao seu lugar
de origem, cercada pelo peso do esquecimento que quase sempre acompanha quem
perdeu. E, da mesma forma que a consciência não tem o apelo do esquecimento ou
da volta ao estágio anterior ao contato com o conhecido, a sensação heroica
também não se apaga quando a festa olímpica se acaba e o resultado foi pífio.
Porque foi possível, ainda que por um breve instante, experimentar uma condição
quase divina, de imortalidade, de marca para a posteridade, de eternidade. E
assim como se é preciso preparação física e técnica para se chegar a esse nível
de competição é preciso preparo emocional para lidar com qualquer que seja o
resultado advindo dela.
Não é simples visitar o Olimpo e depois voltar à
irrealidade cotidiana, ordinária.
Ao final daquela entrevista pude constatar o que já havia
percebido, mas não entendido em outras entrevistas. Para muitos ser olímpico é
um peso demasiado, incapaz de ser suportado em uma existência comum. Não há
explicação possível para uma vida monocromática quando se chegou tão perto do
brilho celeste. Contudo, lá está ele, buscando de alguma forma dar direção à
sua existência normal, mortal, simples como um prato de arroz com feijão, que
mata a fome sim e que pode ser tão especial como um banquete. E, assim como o
contato com o conhecimento impede o retorno à ignorância, conviver com os
deuses pode causar a falsa impressão da imortalidade.
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Desfile delegação brasileira, nos Jogos Olímpicos de 2008. |
E então, uma vez mais é preciso chamar à razão os
dirigentes sobre a responsabilidade sobre a convocação de atletas que não
tenham sido preparados para esse desafio.
As sequelas de uma experiência
frustrada podem comprometer toda uma existência.
Sobre Katia Rubio:
Professora associada da
Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, orientadora
nos programas de Pós-graduação da EEFE-USP e FE-USP. Escreveu e organizou 15
livros acadêmicos nos últimos 10 anos na área de Psicologia do Esporte e
Estudos Olímpicos abordando os temas psicologia do esporte, estudos olímpicos,
psicologia social do esporte, psicologia do esporte aplicada e esporte e
cultura. É também bacharel em Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social
Casper Líbero (1983) e Psicologia na PUC-SP (1995). Coordena atualmente o Centro de
Estudos Socioculturais do Movimento Humano da EEFE-USP e foi presidente da
Associação Brasileira de Psicologia do Esporte entre os anos de 2005 a 2009.
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