No país onde o
futebol é o esporte número um de quase todo brasileiro, a literatura infantil
poderia e deveria ser muito mais explorada do que efetivamente acontece hoje e
sempre. Em um país onde existem diversas campanhas para formação de novos
leitores temos a certeza de que se livros da literatura esportiva,
especialmente aqueles que utilizam o futebol como pano de fundo, fossem mais
utilizados, nas escolas, em casa, nos clubes, e, principalmente, nas livrarias,
teríamos, com certeza, o despertar do interesse pela literatura de uma maneira
geral, esportiva ou não.
No dia 18 de abril, comemora-se o Dia da Literatura Infantil. E em 12 de outubro, o Dia das Crianças.
A data é uma homenagem ao dia do nascimento do escritor Monteiro
Lobato, considerado um dos maiores escritores no gênero.
E para comemorar essa data, Literatura na Arquibancada
convidou dois autores experts no tema. O mineiro Leo Cunha e o paulistano Raul
Drewnick, ambos com uma bibliografia fantástica na literatura infantojuvenil.
Começamos apresentando um livro maravilhoso escrito por Leo Cunha e Ricardo Benevides e ilustrações de André Neves. São duas histórias assim descritas na sinopse da obra:
“Um mundo onde
jogos e passatempos tradicionais se transformam em cenário de aventuras
incríveis. ERA UMA VEZ
UM REINO DE MENTIRA reúne
duas histórias com brincadeiras conhecidas do público infantil em
interpretações para lá de originais.
Em O castelo e
os reis, Ricardo
Benevides —
autor revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil — usa o gramado como seu
império e rimas futebolísticas como decretos reais. Tudo isso para contar as
aventuras de jogadores de futebol em um reino muito distante”.
Trecho da obra:
“O povo também se dividia. Era difícil escolher um rei, a
disputa era dura.
Mas todo mundo torcia, mesmo sem perceber. Na maior parte do
tempo, era uma baderna só.
Tinha gente com bandeira e gente que tacava pó.
Pó-de-arroz! Outras gentes entoavam cânticos de incentivo. Balançavam as mãos
para um lado, para o outro, numa bela coreografia. Tocavam cornetas.
Havia um motivo.
No campo, os participantes sentiam a
energia, que vinha das partes altas do castelo.
Uma sensação muito boa. Dava gosto lutar pela coroa!
Correndo
no meio do campo, sem tomar nenhum partido, um sujeito ditava as regras.
Quando
algo lhe desagradava, soprava o seu instrumento, mandava parar a disputa apenas
por um momento. E provocava o maior alarido.
Fazia gestos, caras e bocas.
Então, a disputa começava de novo.
Uns diziam que era o mago, outros diziam que
era o bobo.”
Em A Dama Dourada e a Rainha Negra, Leo Cunha — vencedor de vários prêmios de literatura infantojuvenil, como Nestlé, Jabuti e João de Barro — entra no universo dos baralhos e tabuleiros.
Com uma linguagem
lúdica, o autor narra as aventuras da Dama Dourada, uma das quatro rainhas de
um país que parece existir só no papel.
Um lugar onde quatro reis, dois rubros
e dois negros, governavam junto a suas quatro esposas.
E eram protegidos por
quatro valentes cavaleiros, os valetes.
Mas a Dama se revoltou contra o marasmo
e partiu de madrugada, viajando entre outros joguetes, em busca de emoção.
Literatura
na Arquibancada:
Como
o futebol pode ajudar a formar leitores na literatura infantil?
![]() |
Leo Cunha |
Leo Cunha:
Pode ajudar ao conquistar leitores, ao seduzir
jovens que talvez não se interessassem por uma obra com outra temática. Neste
sentido, pode ser uma boa porta de entrada para a leitura, na medida em que
interessa e fascina muitas crianças e jovens. Alguns dos melhores livros
que eu li no campo da literatura infanto-juvenil têm o futebol como tema:
- A vingança do timão, de Carlos Moraes,
- O gênio do crime e O caneco de prata, de João
Carlos Marinho
- Pobre corinthiano careca, de Ricardo Azevedo
- Pobre corinthiano careca, de Ricardo Azevedo
L.A:
Cite exemplos de seus textos em que o futebol é
utilizado como ferramenta de aprendizado de algo.
L.C:
Acredito que, a partir do futebol se pode falar de
amizade, paixão, coragem, covardia, ganhos, perdas, danos, desejos, ética,
moral e muitas outras coisas interessantes.
Todos estes subtemas estão
presentes, por exemplo, no meu livro "Na marca do pênalti".
Alguns trechos da história com ilustrações de Roger Mello:
“Jogar contra o Tonho era covardia. Quer dizer: só não era covardia porque o Tonho respeitava cada um que ele humilhava em campo. Dava um baita lençol e vinha pedir desculpa. Tacava uma debaixo das pernas e logo voltava pra se explicar. Quando marcava gol de bicicleta, arroxeava todo de sem-graça, vai entender aquela culpa toda... Pro Tonho aspirar a Garrincha, só faltava aquela molecagem de matar a gente de rir. Porque bola ele tinha de sobra.
Já o Peruca era
o contrário. Faltava futebol, mas derramava pimenta. Gostava de filosofar
assim:
— O Tonho
tem um talento nato, feito um olho azul. Já o meu talento é adquirido,
feito um olho roxo...”
“Mudar de time? Nina jamais faria uma coisa dessas. Aquela ali era Ferrinho até o fim. Até debaixo de chuva, até de baixo astral, até lá detrás do gol, até em pé na geral, até em torcida inimiga, até no meio da briga, até com o time reserva, até quando o time enerva, até perdendo de cinco, até perdendo o domingo, até se estava dormindo, até se estava doída, até morta e enterrada, até sua alma penada, até nada, até...”
(...)
“O Ferrinho
tinha arranjado um goleiro esquisito, cheio de catimbas e superstições. Plantou
um trevo atrás da trave, pra ver se travava as bolas, pra ver se trazia sorte.
E, no início, não é que o troço deu certo? Nenhuma bola entrava, todas paravam
na trave. Até que, na final, contra o Bangu, apareceu um ponta muito atrevido e
gritou: "não acredito em truques".
Não acreditava
mesmo. Soltou quatro torpedos e marcou quatro golaços, um pra cada folha do tal
trevo do goleiro”.
L.C:
Já no livro Poemas lambuzados, eu criei alguns
poemas para homenagear grandes jogadores do passado, como Pelé, Garrincha e
Dario.
Neste sentido, o livro pode abrir espaço para uma pesquisa histórica.
Na literatura infantil não é apenas o tema futebol
que pode “ensinar”. No livro "Era uma vez um reino de mentira", meu
conto "A Dama Dourada e a Rainha Negra" se passa em dois reinos
imaginários: o reino do baralho (com seus quatro reis e quatro damas) e o reino
do xadrez (com a disputa entre os dois reinos de cores opostas, o negro e o
branco). Na história, a Dama de Ouros (Dama Dourada) se cansa de seu mundinho e
resolve ir embora, em busca de outros reinos. Segue um trecho abaixo:
“Era uma vez um reino de mentira. Em vez de um rei, eram quatro, cada qual com sua rainha.
Dois reis tinham faces rosadas. Dois
reis tinham vestes escuras. Ao lado das quatro rainhas ficavam, sempre atentos,
quatro jovens valentes.
Ao lado dos quatro reis, quatro nobres cavaleiros,
munidos de um só dever: manter o reino em paz duradoura. Um era ás nas espadas,
os demais, em outras armas.
Dizem que naquele reino nada de novo ocorria, pois
cada mudança exigia aprovação dos quatro monarcas. E assim a vida ia, assim
vinha a vidinha, passando sem passar. Os dias se embaralhavam com as noites, a
terra se embaralhava com o céu. Há quem jure que aquele reino só existia no
papel.”
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Raul Drewnick |
Agora o papo é com o escritor Raul Drewnick que nasceu em São Paulo, em 1938. Jornalista e escritor, ele trabalhou durante muitos anos no jornal O Estado de S. Paulo onde teve uma coluna que o consagrou como um dos maiores cronistas brasileiros. Também trabalhou para a revista Veja.
Há vários
anos, começou a escrever livros voltados para o segmento infantojuvenil. Já são
vários os títulos e, claro, o futebol não poderia ficar de fora de sua prosa.
Literatura
na Arquibancada:
Como
o futebol pode ajudar a formar leitores na literatura infantil?
Raul Drewnick:
O futebol, pelo fascínio que exerce sobre os brasileiros
de todas as idades, é, se não o mais significativo, um dos mais importantes
temas para a criação artística, e isso vem sendo demonstrado com cada vez maior
força no cinema, nas artes plásticas, na música e na literatura.
Na literatura
infantil, vem crescendo o volume de obras que têm no futebol sua inspiração ou
nele vão buscar aspectos lúdicos ou dramáticos, frases ou situações.
É curioso que Graciliano Ramos, talvez um dos dez mais renomados escritores do país, tenha, no início do século passado, vaticinado para o futebol simplesmente o ostracismo, por considerá-lo alheio ao espírito do homem brasileiro. Se soubesse que até as mulheres viriam a se tornar expressões dessa arte, decantada até, muitas vezes, como genuinamente brasileira (estão aí os nomes de Sissi e Marta, mundialmente reverenciados como expressões supremas do futebol-arte), ele se espantaria quem sabe mais do que se visse o primeiro homem chegando à Lua.
Ainda no século passado, a Copa do Mundo disputada no Brasil, em 1950, foi um marco definitivo que ligou o povo brasileiro e o futebol de tal forma que jamais se poderá dizer que o país vai bem se, nas chamadas quatro linhas, os onze homens que nos representam não vencem, seja qual for a competição. A fama e o prestígio de nossos jogadores se tornaram tão grandes que há uma crença segundo a qual o brasileiro já nasce com uma bola à sua disposição (e quem negará isso, vendo as camisas de clubes penduradas nos quartos das maternidades?) A literatura infantil e juvenil, sempre em busca de heróis, há de encontrá-los sem muito esforço entre os números 1 e 11.
L.A:
Cite exemplos de seus textos em que o futebol é
utilizado como ferramenta de aprendizado de algo.
R.D:
Uma pergunta que sempre me fazem em palestras ou
bate-papos é por que quase todos os meus livros infantojuvenis têm como tema o
futebol ou de alguma forma fazem referência a ele. Primeiro, pela paixão que
tenho por ele e por outros esportes, como basquete e vôlei (este, por sinal, já
está consolidado também como paixão brasileira e, como tal, tem dado origem a
uma literatura já volumosa. Segundo, porque o futebol, como disse, tem o dom de
ser uma espécie de termômetro de sentimentos e há um número imenso de histórias
em que os humilhados e ressentidos socialmente têm doces vinganças
proporcionadas por seus times, que os fazem sentir-se, ao menos por um domingo,
como reis. E há aqueles que, no topo da escada social, sentem o amargor de uma
derrota como se fosse uma ofensa pessoal.
No livro Vencer ou vencer (coleção Vaga-Lume, da Ática) eu trato dos sonhos de ascensão social de uma garota interiorana, tendo como base uma provável carreira no esporte. Lucinha, a protagonista, depois de uma longa viagem, chega a São Paulo, é aprovada numa peneira e, dado esse primeiro passo, escreve à mãe: “Nós treinamos de manhã e almoçamos no clube mesmo. É uma comida bem gostosa e – o que é melhor – de graça. Estou até com medo de engordar.” Nessa e em outras cartas, fica evidente o papel do clube na formação de atletas, sem descuidar do estudo. Ao lado da história de Lucinha corre a aventura do namorado, Fábio, que no mesmo clube procura um futuro melhor como jogador de basquete. Foi fácil, para mim, esboçar o perfil de Lucinha (tomando como modelo minha nora Cilene (que atuou na seleção brasileira) e meu filho Edu (também atleta da seleção brasileira).
Em A hora da decisão (coleção Vaga-Lume Jr., da Ática), o futebol, jogado rudimentarmente na rua, serve como desforra contra preconceitos.
O menino pobre e de baixa estatura vence um jogo contra meninos empolados
e grandões e diz: “Para mim, foi o jogo do século.
Nós podemos ser baixinhos,
como aqueles bobões dizem, mas tem uma coisa: nós somos baixinhos campeões.”
Em A grande virada (coleção Vaga-Lume Jr., da Ática, o futebol é, para Valéria, uma arma contra o vício da droga.
Livre da
dependência, que ela chama de “o dragão e sua boca maldita”, ela vê um caminho
melhor para o seu futuro.
Em O goleiro fantasma (Editora Lazuli/Companhia Editora Nacional, Alê, um aspirante a craque, se vê envolvido em uma trama que traz à tona a dramática trajetória de Barbosa, goleiro do Brasil na Copa de 50, injustamente culpado da pior derrota esportiva do Brasil em todos os tempos.
Contando-lhe
essa história, o pai diz: “Está certo que o futebol é uma coisa muito
importante para o Brasil, mas o que fizeram com o Barbosa por causa daquele gol
foi um crime.”
Em Contra tudo e contra todos (editora FTD), o foco é o boxe, pelo qual o garoto Evandro pretende conseguir uma vida melhor.
O
caminho é árduo e isso logo Evandro vê, ao vencer uma luta e ser declarado
perdedor, por manobra dos jurados.
Desce do ringue sob aplausos dos torcedores,
que o reconhecem como vencedor, e duas lágrimas lhe descem pelo rosto, enquanto
seu técnico resume o que aconteceu: “Foi a maior mutreta que eu já vi no
pugilismo.”
Em Correndo contra o destino (coleção Vaga-Lume, da Ática), Sueli, pobre, mal alimentada e aparentemente sem futuro, encontra no atletismo sua esperança e murmura no final uma frase que outros vencedores, em sua simplicidade, disseram: “Eu sou f...”
Pelos exemplos, é fácil imaginar quantos enredos, quantas
situações, quantas aventuras, quantas histórias o esporte – e principalmente o
futebol, no Brasil – pode inspirar. Melhor do que imaginar é procurar essas
histórias nas livrarias.
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