Quase sempre são raras as homenagens aos jogadores que escolheram,
talvez, a pior profissão dentro do futebol. Mas neste dia 26 de abril goleiros
espalhados pelo mundo inteiro podem comemorar o seu dia.
Na literatura esportiva mundial, isso mesmo, sem medo de errar, é
de um brasileiro, que nunca sequer jogou no gol, o autor da obra espetacular,
talvez a melhor e mais completa que se já produziu sobre esta posição inglória
do futebol: “Goleiros– Heróis e Anti-Heróis da
Camisa 1” (Editora Alameda, 2006).
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Leão, ex-goleiro do Palmeiras. |
O jornalista Paulo Guilherme revela-se um
craque com as palavras e dono de uma prosa incrível, embasada sob uma
pesquisa fantástica.
Um livro para ser lido de cabo a rabo em poucas horas. Para
não dizer que são elogios de um amigo, confira abaixo suas definições sobre o
que é ser um goleiro e ainda a lembrança de grandes nomes da literatura mundial
que ousaram um dia jogar como goleiro.
Absolutamente, genial.
“Bendito seja o Senhor, minha rocha, que adestra as minhas mãos
para a peleja e os meus dedos para a guerra” (Salmos, 144:1).
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Marcos, ex-goleiro do Palmeiras. |
Ajoelhado sobre a linha do gol, de olhos fechados, com os braços
abertos em sinal da cruz, o goleiro declama o salmo de Davi contra Golias da
Bíblia Sagrada. O primeiro versículo não poderia ser mais apropriado para
fortalecer seu espírito. Às suas costas, o número um ultrapassa o jargão de que
todo bom time começa com um grande goleiro. Ele simboliza a união de esperanças
e angústias de milhões de pessoas que transferem para o gramado a fantasia de
vitória, de glória e grandeza que lhes faltam no dia a dia. O futebol é um
esporte coletivo: são onze jogadores em cada equipe, mas, no fundo, é dele, o
goleiro, a responsabilidade de manter esse sonho vivo.
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Júlio César, goleiro da Inter de Milão. |
Ser goleiro não é apenas ser original, diferente, ir contra a
maioria. Não é apenas vestir um uniforme que se destaca dos outros jogadores do
time, ter o privilégio de jogar de luvas, às vezes, de calças compridas,
joelheiras e, principalmente, ser o único em campo que pode pegar a bola com as
mãos. É, acima de tudo, ser bravo, corajoso e autossuficiente. É estar em
constante desafio. É calar uma multidão que aguarda ansiosa a consolidação do
objetivo máximo do futebol, o gol. É desafiar os mais consagrados rivais
mostrando ser capaz de neutralizar toda a pompa que faz do outro o goleador das
multidões, o matador, o gênio da bola.
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Taffarel, ex-goleiro da seleção brasileira. |
Ser goleiro é estar pronto para viajar do céu ao inferno em
ida-e-volta, várias e várias vezes, todas sem escalas. Passar o jogo fazendo
defesas espetaculares e colocar tudo a perder ao sofrer um gol no minuto final
que signifique a derrota de sua equipe. Ou então sair de campo como herói,
carregado nos ombros ao defender um pênalti.
Ser goleiro é acordar mais cedo e ir embora do treino mais tarde
do que todo mundo. É passar horas fazendo treinos específicos de saídas de gol
pelo alto, por baixo, apurar os reflexos, defender dez, vinte, cem, mil bolas
em um dia. É estar pronto para fraturar
o dedo, levar uma bolada na cara, um chute no rosto, na barriga, onde for, se
isso for preciso para evitar que sua meta seja vencida. E ter forças para
levantar a cabeça depois de tomar aquele frango, que o transforma em culpado
sem direito a fiança, sendo apontado na rua, nos jornais e na televisão como “o
frangueiro”.
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Andrada, ex-goleiro do Vasco. |
Enquanto o atacante é sempre protagonista dos “melhores momentos”
e faz sua carreira mostrando os gols que marcou, as estatísticas que ele
preencheu, o goleiro não tem o que mostrar. Ele só aparece na tevê tomando
gols. Suas defesas não entram em nenhuma estatística; ao contrário, os números
mostram apenas o total de gols sofridos, como se todo o resto do trabalho feito
não contasse. E, na maioria das vezes, não conta mesmo.
O goleiro está na contramão do futebol. Enquanto os outros dez
jogadores da equipe andam para a frente, com objetivo máximo de marcar o gol, o
goleiro vê todo o fluxo da partida seguindo em sua direção, como um gladiador
acuado na arena.
Até que suas mãos ganham uma elasticidade inusitada e ele consegue
esticar a ponta dos dedos para desviar a bola o suficiente para transformar
todo o clímax gerado por aquela jogada em uníssono: uuuhhhh!
É o goleiro, o estraga-prazeres, o anticlímax do futebol”.
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Cassilas, goleiro do Real Madrid. |
Como no Literatura na Arquibancada procuramos sempre resgatar
grandes nomes da literatura mundial e suas relações com o futebol, Paulo
Guilherme tem também em seu “Goleiros”, um trecho dedicado a “Cientistas,
Pensadores e Revolucionários”, todos, sim, goleiros pra lá de famosos...
“Um bom goleiro precisa ter total conhecimento das leis da física.
Precisa saber dominar o tempo e o espaço para poder estar na hora certa e no
lugar exato para tocar a bola. Deve subjugar a lei da gravidade e compreender a
força centrípeta da trajetória de um cruzamento.
Ele deve ser também perito em geometria analítica, dominando as
equações matemáticas que envolvem ângulos, senos, co-senos e tangentes, a fim
de tapar a área de quase dezoito metros quadrados formada pelo espaço entre as
duas traves laterais, distantes 7,32 metros uma da outra, o travessão e a linha
do gol, separados por 2,44 metros.
Mas se no campo das Exatas faltou aprofundar mais a relação entre
ciência e o ofício do arqueiro, na área de Humanas foi possível compreender o
lado antropológico da profissão. Entre tantos garotos que ousaram encarar a
tarefa de defender uma meta, surgiram alguns homens que se destacaram por sua
liderança, serenidade, segurança, sagacidade e seu carisma, capazes de arrastar
multidões para onde iam, cujas palavras ganhavam milhões de ouvidos atentos,
cujos atos foram usados como exemplos de altruísmo e personalidade.
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Che Guevara |
O papa João Paulo II foi goleiro. O líder revolucionário Ernesto
Che Guevara foi goleiro. O presidente Café Filho, que governou rapidamente o
Brasil após o suicídio de Getúlio Vargas, foi goleiro. O escritor Albert Camus
foi goleiro. Artur Conan Doyle, o criador do detetive Sherlock Homes, foi
goleiro. O cantor romântico Julio Iglesias foi goleiro. O ensaísta russo
Vladimir Nabokov (1994) não foi goleiro. Mas queria muito ter sido, como
revelou:
“Eu era louco para ser goleiro. Na Rússia e nos países latinos,
esta arte altaneira sempre esteve cercada de um halo de fascínio singular. Distante,
solitário, impassível, o grande goleiro é seguido nas ruas pela meninada em
transe. Rivaliza com o toureiro e os aviadores como objeto de emocionada
veneração.
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Vladimir Nabokov |
A camisa, o boné, as joelheiras, as luvas saltando dos bolsos da
calça o distinguem do resto do time.
É a águia solitária, o homem misterioso, o
último defensor.
Os fotógrafos se ajoelham com reverência para imortalizá-lo em
pleno salto espetacular, desviando com a ponta dos dedos um fulminante chute
rasteiro, e o estádio ruge de aprovação, enquanto ele permanece estendido onde
caiu durante uns instantes, com a meta ainda intacta”.
O idealizador de Lolita
não se arriscou nas peladas, ele preferiu fazer das palavras a sua forma de
atuação nessa utopia.
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Albert Camus |
Outro famoso escritor, no entanto, pôde provar do gosto dessa
paixão. Na Argélia ainda colonizada pela França, um jovem alto, magro, de
aspecto frágil, defendia a meta do time da Universidade de Argel no início dos
anos 1930, quando o futebol começava a ser um denominador comum para as
diversas nações do planeta, com a realização das primeiras copas do mundo.
Albert Camus ainda não era o consagrado romancista de A peste e O estrangeiro,
mas fazia do seu ofício de goleiro objeto de reflexões existencialistas.
Ele percebeu a lição de vida que a posição proporciona. Camus
gostava muito de futebol quando era menino, mas como não tinha muito dinheiro,
acabava indo para o gol, onde o sapato gastava menos sola. Toda noite a avó de
Camus conferia as solas do guri e dava uma surra nele caso estivessem gastas. Não
era um grande goleiro, mas já demonstrava ser um excelente observador e
pensador, como mostraria nos seus livros. Do futebol, Camus sempre declarou ter
aprendido importante lições:
“Ser goleiro é um dos trabalhos mais solitários que existem. Todas
as defesas extraordinárias da história colocadas juntas não podem compensar um
erro em um momento vital. Depois de muitos anos em que vivi numerosas
experiências, seguramente tudo o que sei sobre moral e responsabilidade eu devo
ao futebol. Aprendi que a bola nunca vem para a gente por onde se espera que
venha. Isso me ajudou muito na vida, principalmente nas grandes cidades, onde
as pessoas não costumam ser aquilo que a gente pensa que são...”
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Arthur Conan Doyle |
Outro famoso escritor, Arthur Conan Dolyle, foi o primeiro goleiro
da história do Portsmouth FC, o clube inglês do qual ele foi um dos fundadores
em 1884, três anos antes de publicar As
aventuras de Sherlock Holmes, o primeiro livro com o esperto detetive de
humor um tanto peculiar que decifrava os mais enigmáticos casos policiais
usando elaborados métodos científicos.
Provavelmente, os mistérios do futebol
eram elementares demais para Sir Conan Doyle, que preferiu trocar a bola pela
escrita”.
Sobre
Paulo Guilherme:
Nasceu em São Paulo em 10 de abril de 1970. Jornalista formado
pela ECA/USP, cobriu pelo Jornal da Tarde e o O Estado de S. Paulo o tetra do
Brasil em 1994. Cobriu também a Copa do Mundo de 1998, a Copa América (1995 e
1997) e a Eurocopa (1996). Foi colaborador da revista Placar e da Reuters,
editor do portal PSN.com e editor-assistente do Jornal da Tarde. Atualmente,
trabalha no G1 – O portal de notícias da Globo.
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