Ele surgiu antes mesmo de o
futebol se tornar “oficial” no Brasil pelas regras de Charles Miller ou dos
vários “pais” que o futebol brasileiro tem espalhados pelo país. A própria
expressão “futebol de várzea” justifica o local onde tudo começou: na região
conhecida como Várzea do Parque Dom Pedro, em pleno coração de São Paulo. No
imenso Brasil, ele se espalhou como uma epidemia incontrolável.
Mas eram outros tempos, de
cidades pequenas cercadas por imensas áreas desabitadas. Local perfeito para se
praticar um jogo pra lá de interessante. Somente o crescimento urbano o desafiou,
mas resistiu e resiste bravamente.
Se um dia os clubes de
várzea eram celeiros de craques e de onde as grandes equipes não tiravam os
olhos, há alguns anos deixaram de cumprir essa missão para continuar realizando
sua eterna função: manter viva a paixão pelo futebol jogado entre amigos.
O futebol varzeano, como é
tratado pelos especialistas, tornou-se uma das mais importantes ferramentas de
lazer e integração social. Um espaço que sobrevive pela dedicação de poucos,
mas que sem ele a vida não teria sentido. Driblando as dificuldades do dia a
dia, a várzea segue resistindo, também pelo esforço de gente da mídia que
acredita neste espaço democrático do futebol.
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Diego Viñas (centro), durante gravação de documentário sobre a Várzea. |
É o caso do jovem
jornalista Diego Viñas, que, diferentemente de tantos outros profissionais da
área abriu mão do sonho de trabalhar com as grandes estrelas do futebol
brasileiro para se dedicar não apenas à cobertura do futebol varzeano, mas
também a de ser um de seus raros pesquisadores.
Parece loucura, mas ele chegou
longe em pouco tempo. Tornou o futebol de várzea em uma verdadeira enciclopédia
!!!
Assim surgiu a “Várzeapédia”
– A enciclopédia do futebol amador. O projeto funciona em um site www.varzeapedia.com.br , mas já chegou
inclusive à uma das principais rádios de São Paulo, a Jovem Pan, onde histórias
da várzea vão ao ar todos os sábados no programa No Mundo da Bola. Diego também
levou a Várzea para as telas de cinema, tornando-se vencedor do 1º Festival de Cinema de Várzea com o curta “Contos da
Várzea”.
"Contos da
Várzea" – Clipe Oficial
Para os jovens das grandes
cidades, acostumados a jogar futebol em quadras com gramados artificiais a
preços muitas vezes absurdos, e que um dia ouviram falar do tal “futebol de
várzea”, aí vai uma boa definição do próprio Diego Viñas sobre o que é esse tal
jogo:
“Imagine um clássico de futebol! Corinthians e Palmeiras,
Flamengo e Fluminense, Atlético e Cruzeiro… enfim! Agora, no lugar do tapete
verde, um campo irregular de terra batida de cor bem laranja e mal demarcado.
Ao invés de craques milionários, os ídolos respeitados da vizinhança. As
arquibancadas e camarotes dão lugar a qualquer lugar: pedra, árvore, muro, a
janela do barraco e, talvez, alguma escada de concreto improvisada. A torcida
organizada aqui são moradores apaixonados pelo time que leva o nome do seu
bairro.
Conseguiu imaginar? Então, parabéns, porque você acaba de
descobrir o que é, afinal, futebol de várzea”.
Para se ter a noção exata
deste universo chamado várzea, veja abaixo uma das histórias resgatadas por
Diego Vinãs.
Uma família varzeana
e 100% Social
Por Diego Viñas
Em pleno sábado de manhã,
sol de rachar e a oferta de recepção dos moradores do Parque Panamericano, no
Jaraguá, Zona Norte de São Paulo, foi uma travessa com bolo de laranja e uma
garrafa de Coca-Cola de 2 litros (isso até descobrir que a pedida também permitiu
cerveja).
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Família varzeana reunida. Da esquerda para direita: Mariângela, esposa do diretor Alessandro, filho da 'lava-fardamento' Maria Auxiliadora, que é mãe do técnico Romualdo. |
No meio de uma rua entre casas e bares fica a sede do
Social Clube, time de várzea fundado em 15 de novembro de 1978, que é bar na
parte de baixo e casa na parte de cima. Lá mora a aposentada pernambucana Maria
Auxiliadora da Silva, 52, que fez questão de perguntar se o bolo que ela
trouxera estava bom. Estava! Por R$ 50 por mês, ela é responsável por lavar
uniformes, marcar jogos, cobrar time que está atrasado para partidas. “Eu tenho
o telefone de todos os times. Quando tem festival, sou a cabeça e organizo
tudo. E qualquer coisa errada, quem leva bronca sou eu. O dinheiro que ganho
gasto com coisas para mim, e comprar bola com meu dinheirinho, nem pensar!”,
avisa.
Futebol na vida de Dona Auxiliadora só apareceu quando
conheceu Manuel Vieira da Silva, 69, também aposentado, fundador e hoje
presidente do Social. E deu tão certo que os dois brigavam juntos pelo time.
Mas às vezes, não. “A gente sempre brigou muito por causa do time. Ele falava
um, eu falava dois”, completou.
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Troféus e medalhas decoram a sala de estar |
No bairro, Manuel é conhecido como Tota (com o som do “o”
forte, “ó”). “Eu vi o primeiro time de várzea aqui nascer, o Grêmio. O nosso
time em 1972 se chamava Estrela do Parque e seis anos depois que foi
oficialmente fundado e mudou de nome”, lembra Tota.
Com muito amor, o casal vive feliz em nome do time e da
família que, neste caso, tornou-se uma coisa só. Foram nove filhos. Um deles é
Alessandro Alves, 34 anos, analista financeiro que jogou em várias categorias
do Social até se tornar uma espécie de diretor de futebol. “Sou o ‘faz tudo’ do
time. Pessoal aqui me conhece por Alê ou Sandro só. Eu nasci nesse meio e toda
minha família foi do Social”, lembrou Sandro, que confessa ter chorado muitas
vezes porque ‘Seo’ Tota não o deixava entrar em campo para jogar. “Mas o
momento mais triste foi quando meu pai precisou parar e o time ficou sem
atividades em 2008. Acho que foi só uns três meses, mas foi horrível”.
Depois da mãe que lava uniforme, o pai fundador e
presidente e um filho mais velho que é diretor, Romualdo Pereira da Silva, de
22 anos, ficou com o difícil cargo de treinador.
Atendente de telemarketing durante a semana, o fã de
Vanderlei Luxemburgo conta que nunca jogou pra valer pelo Social, e tão pouco
era um apaixonado pelo time do bairro como todos da família, até que… “Eu levei
um rojão na cabeça numa partida pela Copa Pirituba. Foi um jogo difícil e
aquela dor me fez ter vontade de defender o time, que era minha família. De
repente, comecei a perceber que treinar era meu forte. Num jogo contra o forte
Iamandú aqui na nossa casa, o campo da Sapan, saímos atrás do placar.
Empatamos, mas nosso melhor jogador, o meia Dé, estava mal. Olhei para o banco
e falei: ‘vou pra cima’. Tirei o nosso craque e coloquei o Juninho, nosso
centroavante gordinho. E não é que ele marcou o gol da virada?”, diz orgulhoso
o professor Romualdo.
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Guarda-roupas e taças dentro do quarto |
Tudo
em casa
Ao entrar na casa da família (lembrando, fica sob o bar
sede do time do Social Clube) uma surpresa não tão imprevisível assim. A sala
pequena, com uma estante grande, também é morada de diversos troféus que equipe
acumulou ao longo da sua história. Ao lado do aparelho de som, duas de bronze,
material raro hoje em dia, adornadas por diversas medalhas. No mesmo móvel,
várias outras taças também dão a decoração do ambiente.
São dois quartos pequenos e bem aconchegantes. E parecem
um museu do futebol. Mais taças sob o guarda-roupas, confortadas ao canto das
camas, decorando a mesa do computador. “Só não tem troféu no banheiro. O resto,
essa casa tá cheia”, simplificou a dona do lar, Dona Auxiliadora.
Futebol,
altar e vice-versa
De tantas histórias dentro dessa família varzeana, o
casamento de Alessandro é uma que merece ser contada em detalhes. A começar
pela escolha de uma esposa corintiana, o que para um palmeirense poderia ser o
fim do mundo. A dona da façanha é Mariângela de Oliveira, 33 anos, que se
tornou a mulher oficial de Sandro em junho de 2000, justo num dia de jogo do
Social e final de Campeonato Paulista.
“Eu saí cedo de casa e só me preocupei em ficar linda no
salão. Depois não vi mais nada e fui para o casamento”, simples assim.
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Família e amigos na sede do Social Clube, no Jaraguá, Zona Norte de SP. |
Enquanto isso, Sandro acordou cedo, lavou o carro para o
casamento e recebeu uma ligação. Jogo do Social às 10 da manhã. “Dava tempo e
fui jogar. Terminou 14h e eu falei pro pessoal que tinha que casar, mas eles
falaram pra ficar pra tomar cerveja. Acabei ficando e saí correndo às 16h. O
casamento começava às 17h30. Sorte que minha noiva atrasou, porque deu tempo de
se arrumar e tomar mais uma com os padrinhos”, confessou.
O breve futuro marido confessou que quando a porta da
igreja abriu, enxergava três noivas. “E o curioso foi que quando ela entrou,
começou o foguetório de artifício na rua. Pensei que eu estava muito bêbado,
mas não. O padre era sãopaulino e escutava o jogo da final do Paulistão e me
disse que tinha saído gol do São Paulo. Maior coincidência”, e riu demais.
Sobre Diego Viñas
É jornalista e pesquisador
de futebol de várzea, editor do site VárzeaPédia e membro do Memofut,
Grupo de Memória e Literatura do futebol.
Literatura na Arquibancada
sugere ainda a leitura da entrevista feita com Diego Viñas pelo site Ludopédio:
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