Nem Charles Miller, nem Oscar Cox, nem Thomaz Donohue.
Aqui, no Literatura na Arquibancada, trouxemos a “polêmica”
sobre o verdadeiro pai do futebol brasileiro, mas no Dia do Ferroviário (30/04),
dois novos nomes surgem para acrescentar mais discussão e teorias sobre os
verdadeiros introdutores do futebol no Brasil.
Para Ernani Buchmann, autor do espetacular livro “Quando
o futebol andava de trem – Memória dos times ferroviários brasileiros”
(Imprensa Oficial do Paraná, 2002), pouco importa se esse crédito de
pioneirismo não foi dado aos desconhecidos Mr. Hugh e Mr. John, tanto que ele dedica
sua obra a ambos.
Buchmann fez uma pesquisa fantástica, de norte a sul do país,
revelando centenas de clubes oriundos das primeiras ferrovias construídas no
país e que se tornaram fundamentais para a popularização do esporte entre nós.
Buchamann revela com uma prosa refinada uma história que
mistura paixão e importância social, afinal, os clubes surgidos ou oriundos a
partir das ferrovias, praticamente desapareceram no país, “desde que o governo
militar, iniciado em 1964, encarregou-se de terminar com o transporte
ferroviário no Brasil”. “Quando o futebol andava de trem” é, enfim, uma leitura
obrigatória para os amantes da literatura esportiva brasileira.
E você, leitor, deve estar se perguntando: “mas por que o
30 de abril é o Dia do Ferroviário?”. A resposta surgiu em 1854 quando se
inaugurou a primeira linha ferroviária do Brasil, a Estrada de Ferro
Petrópolis, com 14 quilômetros de trilhos e que ligava o Rio de Janeiro à Raiz
da Serra, com a presença do imperador Dom Pedro II e da imperatriz Tereza
Cristina.
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Lançamento da pedra fundamental da Estrada de Ferro Petrópolis (Mauá). |
O imperador nada fez pelo surgimento do futebol no país,
mas sem querer, acabou permitindo que dois ingleses desconhecidos até hoje da “história
oficial” da paternidade do futebol brasileiro passassem a fazer parte dela.
O trem chega ao
Brasil
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Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. |
“Ao sul do Equador, também a nós coube um pequeno legado
da movimentação que ocorria na metade superior do globo. Pessoas com vontade de
investir não eram patrimônio de europeus ou americanos do Norte. As notícias
poderiam demorar a chegar, os países da América do Sul ainda eram reféns das
atividades extrativistas, a vida tendia a ser mais contemplativa que produtiva,
mas já havia os que enxergavam além dos seus próprios jardins.
No Brasil, o símbolo maior desta visão empreendedora
chama-se Irineu Evangelista de Souza, mais tarde Barão e Visconde de Mauá,
homem mais rico do país na metade do século 19. Vislumbrando nas ferrovias o
futuro da nação, Mauá conseguiu de D. Pedro II, em 1852, o direito de
construção e exploração de uma ferrovia entre a Praia da Estrela, na Baía da
Guanabara, até a raiz da serra de Petrópolis. Com 14,5 quilômetros de extensão,
a primeira seção foi inaugurada pelo imperador dois anos depois. A partir de
então, a implantação das ferrovias no país seguiu, a exemplo do acontecido nos
Estados Unidos, ritmo frenético. Quando da Proclamação da República, em 1889,
já havia em uso um total de 9.538 quilômetros de linhas construídas.
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Construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. |
A grande maioria delas com tecnologia britânica. Mais de
60 anos depois da primeira locomotiva ter sido posta em movimento, a
Grã-Bretanha continuava exportando suas técnicas de construção. E ainda que
houvesse aqui companhias francesas explorando estradas de ferro, como a
Compagnie Auxiliare de Chemins de Fer Brésil, no Rio Grande do Sul, aos
ingleses cabia a hegemonia.
Interessantes, os hábitos bretões. Trabalhavam duro,
projetando, desenhando, dirigindo, implantando. Uma vida nada fácil para
aqueles rosados e sardentos ferroviários nos trechos em construção. Além de
desconhecerem a natureza tropical, corriam risco de doenças como a febre
amarela.
Restava a distração representada pelas modestas formas de
lazer que conheciam. A primeira delas, o sagrado ato de beber. Como ainda hoje,
consumiam uísque e cerveja em quantidades industriais, não estivessem eles
entre os fundadores da revolução assim também chamada. Mas beber poderia
aliviar a mente, elevar o espírito, acalmar – ou enervar – os ânimos, nada
além. Atividades físicas também eram necessárias.
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Primeiro campo de golfe em SP. |
Ora, a tarefa de levar para as margens dos trilhos
esportes tipicamente britânicos como o cricket ou o tênis estava fora de
propósito. Eram esportes comuns por lá, mas exigiam ou sofisticada construção,
no caso do tênis, ou infinita paciência, como no cricket. Pior ainda se o jogo
escolhido fosse outro. O golfe, por exemplo, teve o primeiro clube fundado no
Brasil em 1901, por funcionários da São Paulo Railway, na capital. Mas seria
impossível, pelas suas próprias características, tentar difundi-lo, à época.
Haveria de se encontrar outra solução, portanto. E a
rudeza daqueles homens tinha encontrado no futebol, espécie de evolução do
rugby, a solução para os seus momentos de descontração após o expediente
diário. Jogo para o qual não havia outro requisito que o de um gramado, ainda
que tosco, dois retângulos diametralmente opostos entre si, representando o
objetivo de cada equipe, e uma bola de couro. Faltavam os, digamos, exagerando
um bocado, atletas. Os operários brasileiros não tinham a menor ideia do que
aquelas três traves ao final do gramado representavam. Precisavam ser apresentados
ao jogo, à bola, ao esporte do futuro, aquele que marcaria a história do país.
Onde quer que construísse estações, os ingleses tratavam
de marcar o campo ao lado. Era o que bastava. Com estação e campo de futebol
lado a lado, o apito do chefe de trem poderia servir também ao árbitro, então
chamado de referee.
Tudo isso antes da volta de Charles Miller ao Brasil. Ou
melhor, tudo antes da ida de Charles Miller para seus estudos na Inglaterra.
Consta que em 1878, em frente à residência imperial ocupada pela Princesa
Isabel, houve um jogo entre marinheiros ingleses. E segundo um fragmento
futebolístico encontrado por Kenny Bell, escocês residente no Brasil, no site www.trains.com,
como parte de um artigo sobre a Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, o futebol
já era praticado no Brasil desde 1875 ou 1876:
“Mr. Hugh foi o primeiro a ensinar o jogo aos
trabalhadores da São Paulo Railway, em 1882, ou talvez tenha sido Mr. John, que
ensinou os operários da Leopoldina Railway a jogar futebol em 1885 ou 1886”.
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Crédito: http://guiadoestudante.abril.com.br |
A História não saberá dizer quem foram Mr. Hugh ou Mr.
John. Não teremos deles seus sobrenomes, funções nas ferrovias, tempo que
viveram no Brasil, ano e local em que morreram.
Se Mr. Hugh trouxe uma bola consigo ou se Mr. John veio
munido de chuteiras, pouco importa. É provável que tenham improvisado, com
bolas de pano e pés descalços, para que as primeiras peladas pudessem ocorrer.
Sabe-se, assim, que o futebol tem raízes brasileiras ainda anteriores às que
imaginávamos. E que aqueles ensinamentos rudimentares foram fundamentais para
desenvolver a paixão inesgotável que hoje une o Brasil ao futebol.
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Estação de Cruzeiro (SP), na Estrada de Ferro Minas e Rio, 1885. |
Além do esporte, o resultado da disseminação das estradas
de ferro no Brasil também foi imenso. Do ponto de vista econômico, se
transformaram em multiplicadores do progresso, tratando de desenvolver às
comunidades as quais serviam. As ferrovias fizeram nascer inúmeras cidades,
ajudaram a crescer centenas de outras. Foram o fio-condutor do avanço de um
país que se expandia em direção ao interior.
Ao movimentar, armazenar e distribuir bens, geraram
empregos em dezenas de atividades. Ao transportar passageiros, fizeram nascer
hotéis, pensões, restaurantes, incrementando novos setores da economia.
Representaram a excelência do ensino profissionalizante, com as escolas de
formação ferroviária.
E como bom efeito colateral desta revolução sobre
trilhos, ajudaram a popularizar o futebol. Não que o esporte fosse deixar de
ter a importância que tem hoje caso as estradas de ferro não tivessem tido o
papel que tiveram. Os times ferroviários sempre foram periféricos, poucos os
que detiveram algum tipo de hegemonia.
Por último, foram responsáveis também pela democratização
étnica no futebol. Se nas maiores cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, São
Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e Curitiba, nos seus
primeiros anos, o futebol esteve restrito a clubes fechados dominado pela alta
classe média, junto às estradas de ferro ele sempre foi democrático. Nenhum
time ferroviário foi discriminatório. Negros e mestiços vestiram seus uniformes
desde sempre.
É o que faz deles parte da história do futebol
brasileiro. Estão a ela integrados, desde Mr. John e Mr. Hugh, antes de Charles
Miller dar início ao primeiro jogo de futebol no país. Desde a fundação, em
1900, do clube de futebol mais antigo do Brasil, na cidade do Rio Grande, bem
ao sul do país. Ali, ao lado dos trilhos da Compagnie Auxiliare de Chemins de
Fer du Brésil, começa esta viagem, destinada a terminar, milhares de
quilômetros acima, às margens do Rio Madeira”.
O trem sobe a
Serra do Mar
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Estrada de Ferro Santos Jundiaí, vista do Alto da Serra. |
“O Barão de Mauá, o mais visionário dos empresários
brasileiros do século 19, obteve do Imperador D. Pedro II, em 1854, a concessão
para a construção da estrada de ferro Santos-Jundiaí. Era iniciativa fundamental
para o escoamento da produção agrícola de São Paulo, à época baseada no café.
O problema estava em superar o grande desnível existente
entre a baixada santista e o planalto paulistano. Exigia-se tecnologia europeia,
inglesa de preferência. Em 1860 iniciaram-se as obras, concluídas sete anos
depois. Entre as duas datas, implantou-se no alto da serra um acampamento,
depois transformado em vila, Alto da Serra, hoje Paranapiacaba – em língua
tupi, lugar de onde se vê o mar.
Pelo clima, aos ingleses a localização da vila pareceu
ideal. Além do fog, o frio dava a
Paranapiacaba um tom muito mais londrino que tropical. A pequena vila
ferroviária nunca foi autônoma. Pertenceu a São Bernardo a partir de 1889,
depois passou a Santo André, quando da criação do município, em 1911. Aí o
futebol já estava instalado na serra.
Mr. Hugh havia passado por Paranapiacaba em 1882, para
ensinar os ferroviários brasileiros a colocar dormentes para depois jogar bola,
embora o primeiro clube paulista de futebol tenha surgido somente 18 anos
depois, em Campinas – em 11 de agosto de 1900 nascia a Ponte Preta, 28 dias
depois de ter sido fundado o Rio Grande.
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Sociedade Recreativa Lyra da Serra |
Mas coube à vila de Paranapiacaba a glória de ser
responsável pelo aparecimento do primeiro time brasileiro geneticamente
ferroviário. Já havia no local, desde fevereiro de 1903, a Sociedade Recreativa
Lyra da Serra, fundada por engenheiros da São Paulo Railway. Dedicava-se a
promover bailes, exibir filmes, manter banda e corpo cênico.
Outros engenheiros preferiam a brutalidade do contato
físico exigido pelo futebol à glorificação da musica e poesia líricas. A estes
restou a iniciativa de também criar seu clube. Formada uma comissão, composta
por Simon Coloski, Emílio Vanant e Frederico Mens, decidiu-se pela fundação do
Serrano A.C., em 3 de dezembro do mesmo ano.
Não existiam na época outros clubes em São Bernardo, o
que fez o Serrano viver anos sem participar de campeonatos. Nada existe nos
registros oficiais sobre partidas realizadas pelo clube até 1912. Depois o
Serrano passou a disputar a Liga Santista, descendo a serra para enfrentar
Portuguesa, Espanha (futuro Jabaquara), Americana, Docas, União Santista e o
time da sucursal santista da São Paulo Railway.
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Prédio do Lyra da Serra. |
Dizem os antigos cronistas ter sido um zagueiro chamado
A. M. Wellington o mais conhecido dos jogadores do Serrano. Mr. Wellington era
administrador. Fez carreira na companhia, chegando a superintendente. Nessa
função, resolveu em 1936 construir em Paranapiacaba um prédio de dois andares
que abrigasse a Lyra da Serra e o Serrano. Com a condição de que houvesse uma
fusão entre os dois clubes.
Surgiu assim, em 15 de outubro de 1936, a Sociedade
Recreativa e Desportiva União Lyra Serrano. Um nome pomposo, revelando certo
desprezo pelo gênero gramatical, mas necessário para que se mantivessem as
atividades dos clubes.
O maior momento do Serrano deu-se com o convite para participar,
em São Paulo, em 1919, do primeiro jogo no campo da Água Branca, propriedade do
São Paulo Railway Athletic Club, então recém-fundado. O adversário foi um
combinado de funcionários da própria estrada de ferro, organizado por Salomão
Correia e Arnaldo Macedo de Carvalho.
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Equipe do SPR |
Em 1946, a ferrovia foi encampada pela União. Ainda
recebeu melhorias, como a implantação do sistema de cremalheiras na chegada da
vila, mas foi perdendo viço à medida que o tempo foi passando. Hoje suas
construções de estilo inglês estão próximas do abandono. Há um grande movimento
preservacionista para a restauração da Vila de Paranapiacaba. O clube mantém-se
como pode. O prédio, ao menos continua em pé”.
Felizmente os apelos de Buchmann e o movimento
preservacionista funcionaram. A vila de Paranapiacaba foi revitalizada e até
hoje centenas de turistas podem conhecê-la, admirá-la e, para os amantes do
futebol, reviver as origens do futebol brasileiro.
Sobre Ernani
Buchmann:
É publicitário em Curitiba, formado pela UFPR. Foi repórter
esportivo da rádio Clube Paranaense. Desde os anos 70 escreve para diversos
jornais e revistas paranaenses. Entre 1996 e 1997 foi presidente do Paraná
Clube (sucessor de diversos outros,
cuja origem foi o Ferroviário de Curitiba), conquistando dois
campeonatos estaduais disputados. É autor ainda de “Cidades & Chuteiras”, “Heróis
da Liberdade”, “O ponta perna de pau”, “Onde me doem os ossos” e “A camisa de
ouro”. Outras informações sobre Ernani Buchmann, acessar: http://www.cienciaefe.org.br/online/imago/ernani/ernani.htm