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Abdón Porte |
“O
futebol não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais importante que isso”.
A frase do consagrado ex-jogador e técnico escocês Bill Shankly pode parecer
exagerada para muitos, mas para o caso que o Literatura na Arquibancada relata
a seguir é perfeita.
Você
saberia dizer qual foi o primeiro conto escrito sobre o tema futebol na América
Latina? Pois bem, seu autor é o escritor uruguaio Horácio Quiroga (1878-1937)
considerado um contista magistral.
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Horacio Quiroga |
E
não foi uma história qualquer. Quiroga relata uma tragédia baseada em fatos
reais do mundo do futebol. O título do conto, publicado pela revista Atlántida em maio de 1918 é “Juan Polti,
half-back”, um personagem inspirado na vida do ex-jogador do Nacional de
Montevidéu, Abdón Porte, um herói e mártir para os torcedores do clube
uruguaio.
Porte
jogou durante oito anos pelo Nacional e era um ídolo da torcida que o apelidou
de “O Índio”.
Não era um jogador qualquer da equipe, mas o camisa 5 que
carregava a faixa de capitão em um dos braços, estilo aguerrido e combativo
característico do futebol uruguaio.
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Abdón Porte |
Mas
Porte acabou entrando para a história do futebol mundial não pelo talento que
exibiu durante as 207 partidas que jogou pelo Nacional, além de um título da
Copa América pela “Celeste Olímpica”, como é conhecida a seleção do Uruguai, mas
por se tornar o primeiro e único jogador a cometer suicídio dentro de um campo
de futebol. E não foi em qualquer lugar, mas o do futuro palco da primeira partida
da Copa do Mundo, em 1930, no grande círculo central do Estádio Parque Central.
Era
o dia 4 de março de 1918 quando o Nacional, venceu por 3 a 1 a equipe do
Charley. Abdón Porte um veterano no futebol, apesar dos 38 anos não admitia a
hipótese de que aquela seria a última vez que entraria em campo. Ele sabia que
o clube Nacional estava reformulando a equipe desde o início daquele ano,
buscando “sangue” novo para substituir os mais velhos. Porém, naquele dia, algo
no ar deixava suspeitas. Nunca terminara um jogo com a torcida que o idolatrava
reclamando de sua atuação. Como de costume, dirigentes e jogadores se reuniram
para um pequeno festejo pela vitória.
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Abdón, primeiro agachado à esquerda. |
Porte
parecia triste, mas decide ficar no clube até bem tarde, quando todos os outros
companheiros já estavam em casa certamente dormindo. As vaias da torcida não
saíam de sua cabeça. Nem mesmo a lembrança do casamento marcado para dali dois
meses o consolava. Em algum lugar, sozinho, resolveu escrever. À uma da manhã
ele se despede do porteiro do clube, mas ao invés de seguir o caminho de casa,
decide voltar ao estádio do Parque Central. Lentamente, ele pisa o gramado onde
experimentara tantas glórias no futebol. Para no círculo central, retira do
bolso direito do paletó uma carta na escuridão do lugar e a segura com a mão
esquerda. Com a mão direita, ele retira do bolso esquerdo uma arma e dispara um
tiro no coração.
O
corpo só seria encontrado na manhã seguinte pelo porteiro do clube. Na carta
encontrada em sua mão esquerda, que gerou diversas versões, Abdón Porte teria
deixado três recados. O primeiro, para o presidente do Nacional, na época, o
poeta José Maria Delgado:
“Querido Doutor José Maria Delgado. Peço que
você e os demais companheiros façam por mim como eu fiz para vocês; façam por
minha família e pela minha querida mãe. Adeus, querido amigo da vida”.
No segundo recado,
Abdón Porte revela seu amor eterno ao clube:
“Nacional, mesmo que em pó convertido / e em
pó sempre amante / não esquecerei por um instante / o muito que tenho querido /
Adeus para sempre.”
No terceiro
recado, Abdón teria feito o pedido de ser enterrado no Cemitério de La Teja, ao
lado de Bolívar e Carlos Céspedes, dois ícones na história do clube Nacional,
de Montevidéu.
Apesar
do ato extremo, Abdón é um herói para a fanática torcia do Nacional. Ele e o
presidente para quem deixou sua carta despedida da vida, José Maria Delgado,
foram homenageados pelo clube que batizou com seus nomes duas de suas tribunas
do estádio Parque Central. E mais. É comum ver nos jogos do clube faixas
reverenciando o ídolo suicida.
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Horacio Quiroga |
Mas toda essa história é a
realidade dos fatos. Duas semanas após a tragédia a ficção entrou em cena pelas
mãos do escritor Horacio Quiroga com a criação do personagem Juan Polti que dá
título ao conto que você vê logo abaixo. Coincidência trágica do destino, Quiroga
teve o mesmo fim do personagem real e o de seu conto. Dezenove anos depois, diagnosticado
com câncer e abandonado por parte da família, também buscou o suicídio.
Para os fanáticos torcedores do
Nacional, Abdón Porte preferiu a morte à decadência.
“Juan Polti, half-back”
“Quando um garoto chega, por a ou por b, e sem preparo prévio, a provar
dessa forte bebida de varões que é a glória, perde inevitavelmente a cabeça.
Trata-se de um paraíso artificial demais para seu jovem coração. Às vezes perde
algo mais, que depois se encontra na lista de disfunções.
Assim foi o caso
de Juan Polti, half-back do Nacional. Em matéria de treino para o jogo, o rapaz
se esforçava de verdade. Tinha, além disso, uma cabeça muito dura, e punha o
corpo rígido como um taco ao saltar, então jogava bilhar com a bola, lançando-a
direto para dentro do gol.
Polti tinha vinte
anos e pisara o gramado aos quinze, num clube desconhecido de quinta categoria.
Mas alguém do Nacional o viu cabecear, comunicando a seguir ao seu pessoal. O
Nacional o contratou, e Polti foi feliz.
Ao garoto sobrava,
naturalmente, vigor, e aquele brusco salto para o caminho da glória fez com que
girasse sobre si mesmo como um turbilhão. Chegar da portaria de um tribunal a
um ministério é coisa que, razoavelmente, pode tontear; mas dormir forward de
um clube desconhecido e acordar half-back do Nacional beira o delírio. Polti
delirava, sapateava e aprendia frases de efeito:
"Eu, senhor
presidente, quero honrar o ‘bração’ que me foi confiado... Ele queria dizer
brasão, mas dava na mesma, visto que o rapaz equivalia em campo a uma ou duas
dúzias de professores em suas respectivas cátedras.
Mal sabia
escrever, e por cinqüenta pesos lhe arrumaram um emprego de arquivista.
Ostentava disfarçadamente, com maior ou menor pompa de palavras rebuscadas, e
adquiriu uma noiva adequada, com mãe, irmãs e uma casa que ele visitava.
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Abdón Porte |
A glória o
circundava como um halo. "No dia em que não estiver mais em forma",
dizia, "me dou um tiro".
Uma cabeça que
pensa pouco e que em compensação se usa como ponta de taco de bilhar para
receber e relançar uma bola de futebol que chega como uma bala pode se
converter num caracol sonante, em que o estrondo dos aplausos repercute mais do
que o devido. Há pequenas rupturas, pequenas congestões, e assim por diante. O
half-back cabeceava uma tarde inteira de internacional. Suas cabeçadas eram tão
eficazes quanto os chutes de todo o time. Tinha três pés: era essa a sua
vantagem.
Muito bem: um dia,
Polti começou a decair. Nada muito visível; mas a bola partia muito para a
direita, ou muito para a esquerda; ou alto demais, ou ia com efeito demais.
Coisas que não enganavam ninguém quanto à decadência do grande half-back. Só
ele se enganava, e não era tarefa agradável fazer com que percebesse.
Mais um ano se
passou, e a direção decidiu afinal substituí-lo. Medida dura, quando acontece,
e que um clube rumina durante meses inteiros, porque é algo que atinge o
coração de um rapaz que durante quatro anos foi a glória do gramado.
Como Polti soube
antes que lhe fosse comunicado, ou como previu " o que é mais provável
", são coisas que ignoramos. Mas o certo é que uma noite o half-back saiu
contente da casa de sua noiva, porque havia conseguido convencer a todos de que
deveria se casar no dia 3 do próximo mês, e no dia seguinte. No dia 3 era o
aniversário dela. E ficou marcado.
Assim foram
informados os rapazes naquela mesma noite no clube, por onde Polti passou por
volta de meia-noite. Estava alegre e falante como sempre. Ficou por quinze
minutos e depois de conferir, relógio na mão, a hora do último bonde para a
União, saiu.
É tudo o que se
sabe daquela noite. Mas na madrugada foi encontrado o corpo do half-back
deitado no gramado, com o lado esquerdo do paletó um pouco levantado e a mão
direita oculta sob o paletó.
Na mão esquerda
apertava um papel, no qual se lia:
"Querido
doutor e presidente: confio-lhe minha velha e minha noiva. O senhor sabe, meu
querido doutor, porque faço isto. Viva o Clube Nacional!"
E mais abaixo
estes versos:
Que esteja sempre adiante
O clube dos nossos anseios
Dou meu sangue por todos os companheiros,
Agora e sempre o clube gigante.
Viva o Clube Nacional!
O clube dos nossos anseios
Dou meu sangue por todos os companheiros,
Agora e sempre o clube gigante.
Viva o Clube Nacional!
O enterro do half-back Juan Polti só teve, como cortejo fúnebre, dois precedentes em Montevidéu. Porque o que levavam carregando por toda uma légua era o cadáver de uma criatura fulminada pela glória, para resistir à qual é preciso ter sofrido muito em sua conquista. Nada, menos que a glória, é gratuito. E, se é assim obtida, é fatalmente paga com o ridículo, ou com um revólver no coração.”
Fonte:
“22 Contistas em
campo” (Ediouro, 2006, seleção Flávio Moreira da Costa)
Tradução
de Celina Portocarrero
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Horacio Quiroga |
Sobre Horácio Quiroga, acessar:
E
para finalizar, vale lembrar que a tragédia sempre esteve presente na vida do
escritor, conforme relata em artigo Iuri Müller (http://sul21.com.br/jornal/2011/11/suicidios-de-quiroga/).
(...) Não foram
poucos os acidentes, as enfermidades súbitas e os suicídios que encontraram o
caminho do escritor. Horacio não havia completado o seu terceiro ano de vida
quando perdeu o pai, morto por um disparo acidental da própria arma durante uma
caçada. No primeiro ano do novo século, ocasião em que comemorava o lançamento
do primeiro livro (Los arrecifes de coral), viu dois dos seus irmãos falecerem,
vítimas da febre tifóide. Ainda em 1901, acabou causando a morte de um de seus
melhores amigos – Quiroga arrumava a arma de Federico Ferrando para um duelo no
instante em que, outra vez por acidente, uma bala acertou a boca do rapaz. Aos
infortúnios, somam-se os suicídios do padrasto e da primeira esposa; todos os
fatos, antes de 1918.
EXELENTE SALUDOS DESDE URUGUAY, DEVINA HINCHA DE NACIONAL, ABDON ES UN IDOLO Q A ALCANZADO LA INMORTALIDAD
ResponderExcluirobrigado pelas palavras para meu idolo abdon porte. sou uruguaio mas moro no brasil. Para meu Nacional, foi e será um eterno idolo para todo torcedor da nossa camisa branca. NACIONAL é URUGUAY , obrigado novamente
ResponderExcluirNossa, sou uruguaio, moro no Brasil, sou torcedor de nacional e admiro a Abdon, meu sobrenome também é Coll! Mundo pequeno...
ResponderExcluirObrigado pelo artigo!!