A resposta à pergunta do
Literatura na Arquibancada pode ser encontrada de maneira mais do que clara no
livro espetacular escrito pelo jornalista norte-americano Franklin Foer, “Como
o futebol explica o mundo” (Jorge Zahar Editores, 2005). A tese defendida por
Foer é a de que o mundo da bola pode explicar as mazelas e as maravilhas da
globalização.
Como está na sinopse da obra: “O
futebol é mais do que um esporte, ou mesmo um modo de vida; abrange questões
complexas que ultrapassam a arte do jogo. Envolve interesses reais – capazes de
arruinar regimes políticos e deflagrar movimentos de libertação. Os clubes de
futebol espelham classes sociais e ideologias políticas, e freqüentemente
inspiram uma devoção mais intensa que as religiões”.
![]() |
Franklin Foer |
E para relatar um tema tão
complicado como este, Foer foi longe, bem longe... “Viajou o mundo – da Itália
ao Irã, do Brasil à Bósnia, analisando o intercâmbio entre o futebol e a nova
economia global. Foer derruba mitos ao verificar que em vez de destruir
culturais locais, como preconizava a esquerda, a globalização deu nova vida ao
tribalismo, e que, longe de promover o triunfo do capitalismo apregoado pela
direita, fortaleceu a corrupção”.
Mas para melhor compreender as
reflexões de Franklin Foer, Literatura na Arquibancada traz abaixo uma resenha
pra lá de especial, feita por quem entende do assunto, o professor das
Faculdades de Economia e Comunicação da FAAP, Antonio Sérgio Bichir. A resenha
foi publicada originalmente na Revista de Economia & Relações
Internacionais da FAAP, em 2006.
Como o futebol explica o mundo:
um olhar inesperado sobre a globalização
Por Antônio Sérgio Bichir
Nós, brasileiros, somos – em
geral – pessoas afáveis. Numa perspectiva bastante generosa e francamente
imprecisa, arrisco alguma antropologia de algibeira. Gostamos de reconhecer o
mérito dos outros (mesmo que às custas de alguma inveja ou ressentimento);
sentimo-nos, até, um pouco inferiorizados em relação a outros povos, como, por
exemplo, os norte-americanos ou os europeus, em sentido amplo; somos
prestativos e aconselhadores... Mas não nos sentimos melhores que os outros.
No futebol – tradicional
cavalo de batalha da nacionalidade tantas vezes conspurcada, vilipendiada e
redimida – ora estamos no topo, ora estamos no chão. Conquistamos o quinto
campeonato mundial de futebol, mas, antes do início da última Copa, amargamos
derrotas vergonhosas diante das seleções de Honduras e do Equador. Aqui, porém,
todos entendem de futebol, sejam jornalistas pernas-de-pau, sejam filósofos
“cabeças-de-bagre”.
Esse parece ser o caso de um
jovem jornalista perna-de-pau: o autor de Como o futebol explica o mundo.
Embora se trate de um grosso assumido (“No futebol, sou um perna-de-pau”),
Franklin Foer tem muito a dizer sobre o mais popular esporte do planeta (como
gostam de relembrar, sempre que possível, fanáticos “jornalistas-torcedores”).
A rigor, não é preciso ser
craque para palpitar, ou melhor (?), para chegar a técnico de nossa seleção...
Felipão conduziu o time ao pentacampeonato e, até prova em contrário, foi ruim
de bola – Parreira, o atual ocupante do cargo mais cobiçado do país (depois da
presidência da República, talvez), nem sequer jogou profissionalmente.
![]() |
Clube Atlético Paulistano, equipe que preferiu deixar o futebol a ter que se profissionalizar no final da década de 1920. |
Aristóteles notou que o
dinheiro não poderia se transformar num fim em si e para si mesmo, corrompendo
sua natureza instrumental (meio para alcançar algum fim). Muitos dizem que, no
Brasil, o verdadeiro futebol acabou em 1933, com a implantação do
profissionalismo. “O dinheiro tomou conta de tudo”, dizem os mais velhos e
saudosistas. Ainda se diz que há 30 anos se jogava futebol como nunca, ou seriam
20, 40? De fato, cada época guarda suas saudades e suas verdades. Seus mitos.
Aprender a pensar em
perspectiva constitui, de algum modo, um imperativo/uma necessidade – mais que
uma conveniência ou um modismo. É possível filosofar sobre assunto tão banal
como o futebol? Parece que sim. Ser capaz de combinar uma instigante análise do
esporte bretão com o modo de ser do capitalismo globalizado não sugere uma
tarefa fácil. Mas o jornalista Franklin Foer enfrentou o desafio com finura e
coragem: olhar para o futebol como expressão da cultura (modo de sentir, pensar
e agir) de alguns povos.
![]() |
Anatol Rosenfeld |
De fato, não é nova a
aproximação do futebol e da sociologia, por assim dizer. Vale mencionar que uma
das mais agudas análises do futebol brasileiro data de 1956: um ensaio de
Anatol Rosenfeld (crítico cultural multifacetado que migrou da Alemanha nazista
para o Brasil nos anos 30) sob o título Das
Fussballspiel in Brasilien (O
Futebol no Brasil), publicado na famosa Revista Argumento, da Editora Paz e
Terra, em 1974. Sua elegância e perspicácia ajudaram a ampliar a percepção do
esporte, evitando sua simplificação e banalização. É a primeira obra de um
não-brasileiro a tratar das veredas comuns do futebol e das festas populares
mais antigas (seu caráter dionisíaco é ressaltado pelo autor); a importância do
futebol como fator de inserção e ascensão sociais ou a hegemonia dos
afro-brasileiros na prática do esporte (ambas já destacadas por Gilberto Freyre
no clássico Casa-Grande & Senzala). O futebol começava a ser pensado como
fenômeno social, como parte integrante da cultura de um povo que nele, talvez,
sentisse a possibilidade de realizar um etnocentrismo “dependente”.
O livro de Franklin Foer
pertence à linhagem de uma literatura que eleva e aprimora o espírito. Sua
linguagem simples e precisa, sem deixar de ser elaborada, reflete sua condição
profissional: o jornalismo deve ser objetivo e investigativo.
Como jornalista político (o
autor trabalha para a New Republic,
em Washington), ele se acostumou a exercer o ofício de “muito com pouco”. E,
tudo indica, foi bem-sucedido nessa mais recente empresa.
Seu livro é composto por dez
capítulos, todos indicados com o provocativo bordão “Como o futebol explica...”
e, segundo ele próprio, dividido em três partes:
![]() |
Silvio Berlusconi |
A primeira tenta explicar o
fracasso da globalização em reduzir ódios antigos ainda presentes nas grandes
rivalidades em torno do esporte. É a parte hooligan (grifado no original) do
livro.
A segunda usa o futebol para
abordar questões econômicas: as conseqüências da migração, a persistência da
corrupção e a ascensão de novos oligarcas poderosos como Silvio Berlusconi,
presidente da Itália (sic)* e do Milan.
Por fim, o livro usa o futebol
para defender as virtudes do nacionalismo ao estilo antigo – uma forma de
evitar o retorno do tribalismo (p.10).
Alguns títulos são muito
interessantes e oferecem uma síntese notável do que virá a seguir: “Como o
futebol explica o paraíso dos gângsteres”; “Como o futebol explica a questão
judaica”; “Como o futebol explica o discreto charme do nacionalismo burguês”;
ou “Como o futebol explica a esperança do Islã.”
O autor buscou generoso apoio
em diversos jornalistas espalhados pelo mundo para realizar sua obra, inclusive
no Brasil (Juca Kfouri, por exemplo). E essa peregrinação parece ter favorecido
a construção de um texto cosmopolita e civilizado. Saliente-se, a propósito, o
fio que conduz toda a obra, isto é, globalismo versus localismo. Há fortes
indícios de que os times de futebol dos países europeus (os times de ponta,
principalmente) convivem pacificamente com o multiculturalismo e com uma visão
“paroquial” do mundo, típica dos nacionalismos estreitos e dogmáticos do século
XX (que tantas atrocidades geraram ou asseguraram).
![]() |
Torcedores do Chelsea |
Contudo, discute até que ponto
as culturas nacionais podem sobreviver ao inevitável fluxo da
internacionalização. Qual o desafio que se coloca para esses povos (as etnias) diante
da modernidade? As palavras de ordem continuam as mesmas? Unificação versus
fragmentação?
Segundo o autor, um de seus
personagens (em “Como o futebol explica um hooligan sentimental”), Alan
Garrison, torcedor do Chelsea (rival do Tottenham em West London), de origem
judaica, ofende seus adversários com insultos antisemitas; ele também tem
saudades de quando seu time levava “dez mil ao estádio”, dos quais “seis mil
dispostos a brigar...” Aquele Chelsea nostálgico acabou?
Sem saber, Alan sintetizou a
essência do argumento cultural contra a globalização (...): o capitalismo das
multinacionais priva as instituições locais de seu caráter local, homogeiniza,
destrói tradições e destitui proletários e camponeses nativos das coisas de que
mais gostam. (p.89)
Alan já não consegue ocupar os
lugares que ele e seus amigos hooligans ocupavam no estádio; boa parte do time
está nas mãos de banqueiros e muitas mulheres freqüentam, hoje em dia, os
campos, para não falar do conforto e segurança que seguem o rastro dos grandes
investimentos no esporte. Mas que times de futebol no Brasil poderiam se “orgulhar”
de sua modernidade? Contam-se nos dedos de uma só mão...
O autor – voluntariamente ou
não –, em seu belo texto, remonta ao dilema fundamental do homem: mudança
versus tradição. Princípio do prazer e princípio do desempenho? A longa e
penosa marcha do homem rumo ao seu destino.
Qual? Civilização ou barbárie.
Marx já sublinhara, há muito
tempo, que o capitalismo trazia em seu germe a destruição do tradicional
(arcaico?) e a construção do novo. Isso não foi (e não é) indolor. Isso não é
uma novidade trazida pela globalização, como pensam alguns. Mas outros fatos
chamam a atenção de Franklin Foer, e ele os retrata com senso crítico, bom humor
e sofisticação. Tome-se, por exemplo, o tema do anti-semitismo. O autor
assegura que o tema, na Europa unificada, não está entre os mais cotados no
repertório racista.
![]() |
Equipe do MKT, década de 1970. |
Segundo ele, a bola da vez são
negros, turcos, árabes etc. Na Hungria, porém, a torcida do Ferencvaros costuma
tratar seus adversários húngaros de “judeus sujos”; um de seus alvos prediletos é o MTK, clube
vencedor que, apesar de seu sucesso, não consegue atrair mais torcedores: o
produto é bom, mas não conquista adeptos.
Sua base de apoio é pequena. Foi fundado por empresários judeus em 1888
e, durante um bom tempo, ser judeu na Hungria não representava qualquer risco;
pelo contrário, eles estavam entre os mais fervorosos nacionalistas húngaros
(informa o autor). Mas, “depois da queda do Império dos Habsburgo e da
desastrosa experiência da revolução comunista de 1919**, essa confortável
coexistência chegou ao fim. Os judeus passaram a ser vistos pelos políticos
nacionalistas como os bodes expiatórios preferidos. Esses políticos e seus
jornais transformaram o MTK num poderoso símbolo do caráter pernicioso do judeu
(...)” (p.81).
O livro de Franklin Foer é uma
bela oportunidade de pensarmos nas ricas e complexas relações entre o esporte e
a cultura (no sentido mais amplo possível) e em alguns mitos que teimam em
invadir mentes desinformadas e preconceituosas. Ou o que dizer da idéia
recorrente e enraizada de que a globalização (ou a internacionalização
intensificada do capital) representa a quebra da tradição, a destruição de
estruturas específicas, o fim de laços de identificação em comunidades, etc. e
tal? O livro de Foer nos convida a refletir de modo menos ingênuo: a lógica do
capital teria, antes, contribuído para reforçar e preservar a diferença, em
lugar de eliminá-la. Seria isso bom?
É difícil julgar o
nacionalismo (e me detenho no tema porque me parece central na obra do autor).
Em termos políticos, ele não representa, necessariamente, uma força reacionária
ou progressista. O nacionalismo é flexível e se adaptou a diferentes posições
políticas em momentos históricos diferentes.
Por vezes, ele se apresenta
como tentativa de construir uma nova formação cultural ou política (o caso das
nações que emergiram da desintegração da URSS é exemplar; novas nações como um
passaporte para a modernidade, isto é, a União Européia...). O sucesso da
Europa, muito antes da própria idéia de unificação, se deve sobretudo ao
sucesso em preservar a unidade de etnias distintas sob um mesmo teto cultural e
territorial, sem esmagá-las. Não há, no mundo moderno, como ter uma única
identidade. Para não pôr em risco a própria sobrevivência de uma comunidade, a
questão da identidade deve ser encarada como um jogo aberto, complexo e
infindável de reconstrução. É como se mover em direção ao futuro sob o olhar
judicioso do eterno retorno do passado.
Se nos perguntarmos o que a
globalização trouxe de bom para o futebol brasileiro, bem que a resposta
poderia ser: aprendemos que, mesmo perdendo para o Equador ou para Honduras,
podemos vencer um campeonato mundial.
Aprendemos com os nossos
erros, mas aprendemos com os erros dos outros.
Nossos jogadores descobriram o
mundo e por ele foram descobertos. Nosso futebol melhorou, também, pelo fato de
que nossos craques deixaram de se achar os melhores e tiveram de provar que
eram os melhores. Onde? Nas terras dos pernas-de-pau (em regra, é claro!).
O livro de Foer nos ajuda a
entender a nós mesmos, entendendo os “outros”.
E isso não é pouco...
Notas referências:
*(De fato, Silvio Berlusconi
era à época primeiro-ministro italiano.138 Revista de Economia & Relações
Internacionais, vol.5(8), jan.2006
** Também conhecida como
Comuna de Budapeste, liderada pelo chefe do Partido Comunista Bela Kun. Vítima de
uma violenta repressão, a Comuna foi destruída e a Hungria tornou-se,
lentamente, um dos governos mais reacionários da Europa no período
entre-guerras, sob a ditadura do Almirante Horthy.
Sobre Antônio Sérgio Bichir:
Formado em Ciências Sociais e
Direito pela USP.
É mestre em Integração da América Latina pelo Programa de
Integração Latino-Americana da USP (Prolam). É professor das Faculdades de
Economia e Comunicação da FAAP.
Oi querido.
ResponderExcluirO tema me interessa, e muito.
Sabe me dizer se é possível adquirir na editora, se não está esgotado?
De qualquer foma, vou especular.
Beijo.
Não sei se está esgotado. Acho q não. Tenta no site das grandes livrarias. Brasília tem FNAC, Cultura? Ou pelo site deles tb...bj
ExcluirOi,
ResponderExcluirCd o livro?