Há três anos a literatura esportiva mundial ganhou uma obra de
referência, tanto para leitores “comuns” como para estudiosos e pesquisadores
acadêmicos e jornalistas esportivos que se interessam pelo fenômeno da
violência e “poder” das torcidas organizadas em todo o mundo.
Ainda mais, após os eventos ocorridos no jogo entre Boca Juniors e River
Plate, válido pela Libertadores.
E não há exemplo melhor para ilustrar a que ponto podem chegar certas torcidas organizadas como o caso da maior organizada do clube Boca Juniors, da Argentina. O livro em questão é do jornalista Gustavo Grabia, obra editada pela editora Panda Books, “La Doce”.
O livro espetacular descreve a escalada de violência no futebol
argentino desde 1925, quando um torcedor foi morto. La Doce, a maior torcida do
Boca, ganhou “poderes” superespeciais infiltrando-se no mundo do crime e agindo
nos bastidores extorquindo jogadores e técnicos. Virou um “poder paralelo” no
clube argentino chegando a ter uma ONG para “lavar” o dinheiro que ganhava
ilicitamente.
Antes de falarmos especificamente do
livro de Gustavo Grabia, Literatura na Arquibancada obteve autorização para a
publicação do “Dossiê La 12”, um
artigo escrito por Leonardo Ferro para o site Futebol Portenho
(www.futebolportenho.com.br) criado e editado por Thiago Henrique. Se você quer
conhecer melhor a história do futebol argentino, tão rico e bem documentado,
esse é o espaço.
Dossiê La 12:
Quando o futebol dá lugar ao sangue, guerra e terror
Por Leonardo Ferro
De Buenos Aires – A história
da “La 12”, tradicional e poderosa barra brava do Boca Jrs, é digna de um
filme. Do estilo mafioso à la “O Poderoso Chefão”, o roteiro incluiria traições
nas sucessões de poder, dinheiro sujo em negociatas, assassinatos, acertos com
a polícia e ligações com as mais importantes autoridades da Argentina.
Ingredientes que não faltam na consagrada trilogia de Francis Ford Coppola.
Durante os anos 60, era
Enrique Ocampo ou “Quique el Carnicero” quem ditava as regras nas arquibancadas
da Bombonera. Era uma época distinta e os níveis de agressividade dos
torcedores ainda não eram tão elevados como os de hoje.
Mas, mesmo neste tempo de
relativa tranquilidade, Quique inaugurou alguns costumes que perduram
atualmente, como a participação em reuniões do clube e a exigência de certa
quantidade de entradas para os membros do seu grupo. Seu reinado a frente da
“12” durou aproximadamente 20 anos quando foi destituído do comando por aquele
que viria a ser o líder mais violento que a barra brava do Boca Jrs já
conheceu: José Barrita ou “El Abuelo”.
O segundo mandante da facção
foi o responsável pelo período mais tenebroso e temido da “12”. Governava a
arquibancada com extrema violência e não se privava da companhia do inseparável
revólver calibre 38. O mesmo com o qual obrigou seu antecessor a abrir mão do
poder.
Ganhou o apelido por seu
cabelo grisalho que o destacava dentro da “12”. Não havia quem o detivesse
dentro do clube e era costume que fosse pessoalmente exigir melhor desempenho
dos jogadores. Anos atrás, Maradona contou a um canal de televisão seu primeiro
encontro com o temido chefe da barra, quando ainda era uma jovem promessa.
Seu
período como líder da mais poderosa torcida argentina termina após sua prisão
por ataques à tiros a um caminhão que
transportava torcedores do River Plate antes de um superclássico em 1994.
Neste
momento assume o controle Rafa Di Zeo, braço direito de Abuelo até então. Em
muitas fotos do período anterior a prisão, pode se ver Abuelo ombreado por Rafa
Di Zeo nas arquibancadas da Bombonera Rafa tratou de assegurar uma base que não
ameaçasse seu poder. Arquitetou alianças importantes e tirou de cena o único
que poderia afrontar seu comando: o próprio Abuelo. Quando tentou se
reaproximar da barra após sair da prisão, Abuelo foi alvo de um atentado à
tiros, mas escapou ileso. Depois disso não retornou mais ao estádio onde foi
por anos figura inquestionável.
Di
Zeo implementou uma visão “empresarial” dos negócios ilícitos da “12”. Recebia
ingressos do clube e também garantiu uma parte do dinheiro daqueles vendidos
nas bilheterias. Uma das maiores demonstrações de poder foi o direito de
administrar o estacionamento da rua Del Valle Iberluzea, uma das principais que
dão acesso ao estádio do Boca.
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Rafa Di Zeo |
“Não
sou poderoso, mas tenho o telefone dos poderosos” diz Rafa. Sua rede de
contatos atingia inclusive a funcionários do governo portenho. Tinha acerto com
os policiais da 24ª Delegacia, sediada no bairro de La Boca e inclusive
compartilhava com eles, os mesmos advogados. Um dos fatos inusitados é o casamento
de Rafa Di Zeo com a secretária particular de Felipe Solá, à época governador
de Buenos Aires. Também foi o homem forte no Boca de Maurício Macri, atual
governador da província, quando este era presidente do clube. Foi preso em 2007
em função de uma emboscada que armou contra torcedores do Chacarita durante uma
partida amistosa na Bombonera. As câmeras de segurança filmaram todas as ações
de Di Zeo e seus comparsas.
Mas,
tal como sucede nos melhores filmes de máfia, depois que Di Zeo é preso, assume
o poder seu braço direito: Mauro Martín. Com a promessa de devolver o comando
da barra quando Rafa saísse da prisão. Neste ano Di Zeo foi solto e em uma
entrevista exclusiva a um canal de televisão aberta no final de agosto (confira
a entrevista ao fim da matéria), avisou que queria sua barra de volta.
Tal
retorno, com prometido, aconteceu no último fim de semana. Na partida contra o
Rafaela. E, para o mal do futebol argentino, algo inédito marcou o retorno de
Di Zeo aos estádios. Duas torcidas, duas barras bravas na Bombonera. Uma atrás
de cada gol, olhando-se frente a frente e insultando-se. Pura demonstração de
poder e intimidação. O futebol é mais uma vez deixado de lado.
Di
Zeo chegou pelo lado oposto ao que sempre se acostumou a frequentar a
Bombonera. Entrou pelo gol do Riachuelo, onde fica a torcida visitante. Com
aproximadamente 900 seguidores, vindos em mais de 30 ônibus e peruas, estendeu
a tradicional bandeira com os dizeres: “La Barra de José”, numa tentativa de
ganhar o apoio do torcedor comum que assistia a tudo sem acreditar.
Do
lado de Mauro, “La 12”. Bumbos, bandeiras e faixas, uma delas com os dizeres:
“Mauro = La 12”. Os canais de televisão por momentos esqueciam-se dos jogadores
no campo e do que acontecia no palco principal, para filmar as duas
personalidades penduradas nas arquibancadas. Inclusive com tela dividida e
close nos novos protagonistas da tarde.
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Mauro Martín |
Com
o final da partida, a polícia resolveu mudar o esquema usual de saída de
torcedores nos estádios argentinos. Saíram os visitantes e logo depois os
torcedores comuns do Boca, ficando dentro de uma Bombonera de luzes quase
apagadas, as duas facções da mesma barra, medindo-se e cantando ameaças para o
próximo jogo contra o Vélez, quando teriam que dividir o mesmo espaço na
arquibancada destinada aos visitantes.
Na
saída do estádio e nos programas de televisão conhecidos como “terceiro tempo”,
o que se via não era entrevistas a jogadores ou técnicos, mas um primeiro
quadro de Rafa Di Zeo caminhando com sua gente e dois microfones de redes distintas
captando todas suas falas: “Isso vai acabar como eles quiserem que acabe”,
declarava.
Dentre
os diversos fatores que envolvem essa briga pelo poder, o único que pode ser
descartado é o próprio Boca Jrs. Perto das eleições no clube, a serem realizadas
em dezembro, o aparecimento de Di Zeo neste momento não poderia ser mais
oportuno para a oposição.
O lado de Mauro Martín exibiu no último domingo, uma
bandeira do ex-presidente Néstor Kirchener, e deixou claro que o kirchenismo
está com eles e apoia o atual mandatário e candidato a reeleição, Jorge Amor
Ameal. Rafa Di Zeo, conturbando todo o cenário que poderia ser de calmaria em
função do atual momento do time, parece estar alinhado com a oposição
encabeçada por Daniel Angelici e apoiado pelo macrismo. Antiga associação dos
tempos que o atual governador de Buenos Aires era o presidente do Boca e Rafa o
chefe da “12”.
Di
Zeo já declarou que La Bombonera é sua casa e se sente bem nela. Mas será que
essa casa, é apenas sua? Somente a sua paixão pelo Boca é a que vale? Essa casa
é de todo torcedor do Boca Jrs. Membro da “12” ou não. Todos têm o direito de
sentir-se cômodos em sua própria casa e isso não é o que está acontecendo hoje.
Fonte:
Sinopse do livro “La
Doce”, de Gustavo Grabia, que acaba de ser lançado no Brasil.
La Doce
O
futebol é capaz de aflorar no público os sentimentos mais variados possíveis.
Amor, ódio, alegria e frustração são apenas alguns deles. Provavelmente foi por
isso que o tornou o esporte mais popular do mundo. Em muitos países, os
apaixonados pelo futebol se organizam para acompanhar seu clube de coração ou
até mesmo sua seleção. A partir daí nasce uma torcida organizada, que no início
tinha seu lado romântico, assim como o próprio futebol.
Os
anos se passaram e essas organizações incluíram em seus currículos um histórico
de violência, sangue e morte. Os hooligans na Inglaterra ganhavam fama e temor
pelas cidades do Reino Unido e restante da Europa. Virou até tema de filme. Na
América do Sul, as torcidas organizadas brasileiras também não ficam atrás. A
cada ano sempre vemos nos jornais notícias de morte entre torcedores de equipes
rivais. Mas nada se compara à torcida do Club Atlético Boca Juniors, de Buenos
Aires. A “La Doce”, sem dúvida, é a hinchada mais temida do mundo.
Sabedor
desses fatos, o jornalista Gustavo Grabia pesquisou a fundo a história da
torcida que criou laços políticos dentro da Argentina, extorque homens
públicos, empresários e jogadores e criou uma organização idêntica a de máfia.
Brigas com torcedores rivais parece ser apenas a parte mínima de seu
currículo. O resultado desse brilhante trabalho ganhou o mesmo nome da
barra brava, ”La Doce”.
Conheça a origem, o crescimento, os comandantes e como atua hoje a organizada
mais temida do mundo.
Trechos
do livro:
“La Doce é a torcida que tem mais contatos
políticos, que trabalhou tanto para o justicialismo como para o radicalismo, e
chegou a participar de operações políticas montadas pela Side, antiga
Secretaria de Inteligência do Estado. É a única torcida do mundo que criou uma
fundação legal para a lavagem de dinheiro proveniente da extorsão de políticos,
empresários e desportistas, bem como o financiamento sem escrúpulos pela
revenda de bilhetes, a gestão de ônibus para levar os torcedores ao interior, o
estacionamento nas ruas de La Boca cada vez que havia uma partida, e o
merchandising. Isso sem contar a porcentagem arrecadada pelas concessões feitas
a barracas de alimentos e bebidas no estádio.”
“Quando eu era criança, o plano de ir ao estádio era
muito mais que ir a um jogo de futebol. Era um lugar de conexão para pais e
filhos, para amigos do bairro, um mundo cheio de sensações confortáveis que
excediam, e muito, o que acontecia no gramado. Esse mundo foi quebrado a partir
da violência das barras bravas. E a La Doce é o símbolo mais generalizado dessa
violência.”
Sobre
o autor
Gustavo
Grabia nasceu em 12 de novembro de 1967, em Buenos Aires. É formado em ciências
da comunicação pela Universidad de Buenos Aires e pelo Círculo de Periodistas
Deportivos, iniciando sua carreira na Editorial Abril, passando pela Editorial
Garcia Ferré, pela revista 13/20 e pelos jornais La Razón e El Expreso. Desde
1996, trabalha no jornal esportivo Olé, em que atualmente ocupa o cargo de
editor, ganhando prestígio como o maior especialista argentino em violência no
futebol. Também atua como colunista dos programas de rádio de Ernesto Tenembaum
(Primera manãna, na rádio Mitre) e Roberto Pettinato (El show de la noticia, na
FM 100). Este é seu primeiro livro publicado no Brasil.
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